sábado, 18 de fevereiro de 2012

D'Annunzio e o ideal de uma nova oligarquia


O Estado não deve ser mais que uma instituição perfeitamente disposta para favorecer a elevação gradual de uma classe privilegiada para uma forma ideal de existência. Sob a egualdade economica e politica a que aspira a democracia, vós outros os encaminhareis a formar uma nova oligarchia, uma nova escola de força; e conseguireis, antes ou depois domar as multidões em vosso proveito. Não vos será muito difícil, na verdade, reconduzir a grey à obediência. As plebes conservam-se sempre escravas e teem uma nativa necessidade de estender as mãos ao vencedor. Jamais existirá n'elles, até ao fim dos seculos, o sentimento da liberdade (...) [Gabriele D'Annunzio, As Virgens, (trad. de Vasco Valdez), Livraria Editora Guimarães, Lisboa, 1905], retirado do contra mundum

Gabriel D'Annunzio foi um dos precursores do fascismo italiano, um intelectual que influenciou decisivamente Benito Mussolini, e um dos escritores mais importantes de Itália, representante da corrente estética do decadentismo. Mussolini ascende ao poder em Outubro de 1922, mas o romance onde se encontra a citação acima apresentada, Le vergini delle rocce, data de 1896. Este tipo de ideias era extremamente popular à época. Um jurista italiano, com um importante papel no desenvolvimento da criminologia, Raffaele Garofalo, na sua crítica ao socialismo, não defendia coisa diferente. Entre nós é Júlio de Matos que é um dos defensores deste tipo de elitismo, uma defesa fundada na leitura de Garofalo e de Herbert Spencer, com o darwinismo social como pano de fundo. 

No ambiente da época, o uso ardiloso da democracia para fundar o poder dos mais fortes era uma ideia corrente. O que está por detrás deste tipo de discurso - discurso que se fundava numa estética - é a recusa do cristianismo, fundamentalmente da ideia de livre-arbítrio. Este é substituído pela ideia de um destino previamente traçado, mas que cumpre realizar na história. Tudo isto conduziu a uma dada esteticização da vida política, onde a força era o elemento central do fenómeno estético. O fascismo e o nazismo são os rebentos destas ideias.

O fim da guerra, com a derrota das potências do eixo, deixou estas ideias em estado larvar. A retórica democrática evitou o louvor das novas oligarquias. Não deixou, todavia, de as sustentar e de permitir que elas cortassem os laços com as plebes democráticas, para falar ao gosto de D'Annunzio. Se durante décadas, nas sociedades ocidentais, se viveu sob a impressão de que o destino de cada um dependia do mérito fundado no livre-arbítrio, hoje em dia, as pessoas sentem, atónitas e estupefactas, o regresso de uma realidade onde o destino parece levar de vencida a crença no livre-arbítrio. As potências que dominam as vidas privadas, com os seus desejos e aspirações, não parecem comover-se com o hipotético mérito de cada um. 

Cada vez mais, o lugar social onde se nasceu é determinante do tipo de vida que se vai ter. D'Annunzio, em 1896, estava convencido que jamais existiria, nas plebes, o sentimento de liberdade. Hoje, as pessoas que constituíram as amplas classes médias estão a começar a perceber que o sentimento de liberdade em que viveram durante algumas décadas não passa de uma ilusão. Mais lentamente ou mais rapidamente (quanto mais na periferia mais rápido), essas classes médias estão a retornar à sua condição plebeia. No fundo, o ideal de D'Annunzio, Garofalo, Spencer ou Júlio de Matos nunca foi abandonado. Não é por acaso que o cristianismo, apesar de tudo, sempre teve má fama. O livre-arbítrio é um inimigo do fatalismo pagão subjacente a estas correntes.

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