quinta-feira, 15 de março de 2012

Argumentação como instrumento de fé


Por vezes alguém expende, perante mim, uma qualquer opinião sobre a pobre pessoa que sou, uma referência a uma suposta idiossincrasia ou a uma hipotética crença. Há muito que, perante a falsidade da opinião, desisti de argumentar que as coisas não são assim, que eu não possuo essa característica, por louvável que seja, ou que não acredito ou já não acredito nessa crença. Não vale a pena. Mesmo perante alguém que tenha em certa consideração, a qual me levasse a um exercício de veracidade, é pura perda de tempo. Nunca se consegue desfazer uma crença alheia por mais errónea e estapafúrdia que seja. Esta experiência mostrou-me os limites da argumentação.

Um argumento só convence quem está convencido a priori. Quando ensino que a filosofia é uma disciplina argumentativa, onde os filósofos opõem teorias argumentadas contra outros filósofos, dando a entender que uma boa argumentação poderia converter alguém a uma suposta verdade, faço um exercício de puro cinismo. Não conheço nenhuma filósofo a quem a argumentação de um outro tenha convencido e levado a abdicar da sua posição, para passar a defender a do crítico. A argumentação só serve para convencer os convencidos, para os ajudar a ficarem mais solidamente convencidos. A argumentação é um exercício não da razão mas de uma qualquer fé irracional, um monólogo que almeja apenas tapar as fissuras da crença que se possui. Se isto é assim na filosofia, imagine-se como será na vida quotidiana, esse lugar onde todas as crenças têm coloração afectiva. Nada há de mais irrefutável do que um sentimento.

2 comentários:

  1. Ò JC! Até escreves coisas boas mas, por vezes, transformas com demasiada facilidade o estado de espírito em argumento e cegas para os contraexemplos. Não te lembras de Kant totalmente convencido pelo Hume de que toda a sua filosfia estava errada? Ou achas que ele já estava convencido do transcendental que ainda não tinha inventado? Acreditas mmo q a argumentação de Sócrates n teve nada a ver com a conversão de Platão? ou foi só paixão? Mas o Sócrates até era feio pá! Mas havia a dizer mas não dev ser preciso pq o teu estado de espírito já deve ser outro :-)
    Abraço

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    1. Viva caro Júlio. De facto, uso o blogue como expressão de estados de espírito. Melhor, é uma espécie de fenomenologia da consciência, daquilo que me vai passando por ela, dos fluxos e refluxos que a pobre sofre, das suas contradições, desconfianças, amores e ódios, momentâneos ou eternos. É, por norma, uma exercício da doxa, com tudo o que a doxa tem. Se estivesse a escrever um trabalho académico escreveria de outra maneira, embora o conteúdo pudesse ser semelhante, e não fosse menos doxa, pois também há uma doxa académica, como bem sabes, travestida de episteme.

      Relativamente aos dois contra-exemplos evocados, duas coisas. Os contra-exemplos são excepções que apenas confirmam a regra geral. Em segundo lugar, Kant não se converteu ao cepticismo de Hume, mas aproveitou-o para descobrir a sua própria fé, digamos assim. Já a conversão de Platão está ligada à sua descoberta da filosofia e abandono da poesia (se é que ele a abandonou, se ela não voltou em forma de romance nos diálogos, mas isso é outra história). Depois, de facto, não sei se Sócrates não funcionou para Platão como a estrada de Damasco para Saulo de Tarso. O fascínio da razão não deixa de ser tão irracional como outro qualquer.

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