quinta-feira, 1 de março de 2012

Lev Tolstói, A Morte de Ivan Illitch


Podemos ler um livro de múltiplas maneiras. Uma delas é mobilizar aquilo que se sabe da psicologia e dos traços ideológicos do autor para dar um sentido à leitura, para legitimar essa leitura, dando-lhe uma certa tonalidade verídica. Entre os múltiplos pecados que cobrem a minha alma está o de nunca me interessar pela biografia dos autores. Quando leio as suas obras leio apenas as suas obras e não quero saber da sua vida. Sou um leitor egoísta, pois procuro numa obra aquilo que ela me faz pensar e não a projecção mimética de quem a escreveu, até porque não acredito que a arte seja projecção mimética seja do que e de quem for. Eu não quero encontrar o autor, quero descobrir-me a mim através da provocação que uma obra me lança. Descobrir-me significa não tanto construir a minha pretensa identidade - coisa que duvido que tenha - mas destruir as construções ilusórios que faço dela. 

Vladimir Nabukov, alguém com uma autoridade literária infinitamente maior que a minha, diz que a A Morte de Ivan Illitch trata "não da Morte de Ivan mas da Vida de Ivan." E este dizer está escorado naquilo que Nabukov sabe ser o pensamento de Tolstói, a preocupação deste com o destino do homem espiritual. Diz Nabukov:  «De acordo com  Tolstói , o homem mortal, o homem pessoal, o homem individua, o homem físico, vai pelo seu caminho físico para o caixote do lixo da natureza; de acordo com Tólstoi, o homem espiritual regressa à região sem nuvens do amor divino universal, um lugar de felicidade neutra tão caro aos místicos orientais.» Será assim, mas nada disso me ajuda a compreender a novela em causa.

Qual o papel da morte em A Morte de Ivan Illitch? Obviamente, que a morte, através da sua delegada a doença, tem a função de ir destruindo o corpo físico de Ivan Illitch. A minha leitura, porém, situa-se numa outra perspectiva. A morte tem, na novela, a dupla função de separação e de individuação. Quando ela surge no horizonte da existência de Ivan Illitch gera um processo de separação com a realidade habitual, com a vida familiar, as relações de amizade e os compromissos de trabalho. Esta separação que, num processo relativamente longo e marcado pela agonia final, a morte opera não significa uma etapa de indiferenciação e de dissolução dos limites do indivíduo.

Pelo contrário, ao separar da vida habitual, a morte (deveria escrever a Morte) vai constituir Ivan Illitch num indivíduo. A morte é aquilo a que os filósofos medievais - não se referindo a ela - chamam princípio de individuação. O que se assiste é, a partir do momento em que Ivan Illitch suspeita que está condenado, à operação da sua verdadeira singularização. O texto é muito curioso a este respeito. Narra como Ivan Illitch, transferido para S. Petersburgo, está entusiasmado com a decoração que ele próprio faz da sua casa, como ele a acha singular. Mas esta percepção da personagem não é corroborada pelo narrador, que evidencia que aquele tipo de decoração é idêntico ao de todas as casas das pessoas da mesma classe social. Na verdade, Ivan Illitch é como todos os Procuradores, é mais um na massa do estrato social a que pertence, com gostos e idiossincrasias idênticos. São o sofrimento físico provocado pela dor e o sofrimento moral motivado pela impotência perante a morte que o confrontam com a sua singularidade e o mostram não como um mero elemento da espécie ou da casta social mas como ser singular e irrepetível. O texto narra longamente como a morte se vai insinuando no horizonte da existência de Ivan Illitch e como ela o leva a questionar a própria vida que, com tanto êxito, tinha levado até ali. Este questionamento das antigas assumpções, as quais estavam de acordo com aquilo que era socialmente correcto, faz parte de processo de singularização e de individuação da personagem, o qual não teria sido possível sem o papel operador da morte.

O que o texto me revela - a mim leitor que não quer saber do pensamento do autor - é o papel da morte como operador da nossa individualidade. A vida é um puro magma indiferenciado. É a morte que, ao operar sobre ela, ao trabalhá-la, ao exercer o seu papel de negação, vai extraindo desse magma indiferenciado um indivíduo, um ser singular e irrepetível. Não me torno indivíduo pela forma como vivo a vida, mas pela forma como a morte opera sobre mim, questionando-me, limitando-me e separando-me desse magma a que chamamos vida.

1 comentário:

  1. Lembro bem quando li esse livro, lembro de ter lhe dito pra o ler, ou reler, mas não sei se já falava ocntigo quando o li. Mas enfim, o principal é que pensei algo bem perto do que disseste aqui, apenas com o adendo de que a morte só deveria encerrar esse processo de individuação que, resto vai aocntecendo ao longo da vida. Só não é assim se a gente se enrreda demais na superfície das coisas. A "realidade habitual, a vida familiar, as relações de amizade e os compromissos de trabalho" podem ser superificiais (nesse caso, ocupam um tempo e um espaço falso em nós), como era superficial, artificial, a impressão dele quanto a singularidade da sua casa. Se a gente se detem a valer num trabalho a valer, em amizades a valer, em um amor a valer, vamos nos individualizando na vida e a nossa morte será sentida a valer, como a nossa morte, a morte de fulano, a morte de Ivan Ilitich, ou de Jorge Maia, ou de Glaucia Campregher.

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