terça-feira, 27 de março de 2012

A privatização do Big Brother

Penitenciária americana construída segundo o modelo do panóptico de Bentham

Zygmunt Bauman, no seu Liquid Modernity, lança uma censura feroz à Teoria Crítica da segunda escola de Frankfurt. A perspectiva de Bauman assenta em dois postulados. O primeiro diz-nos que o mundo ao qual se referia a Teoria Crítica acabou. A ameaça do Estado interferir de uma forma que vai do paternalismo até ao Big Brother pertence a um passado que foi descrito, ao nível romanesco, por Orwell, Huxley ou Koestler, mas que perdeu efectividade e actualidade. O segundo postulado de Bauman, complementar do primeiro, refere que na modernidade líquida o que está em jogo é a dissolução dos laços entre a elite e o homem comum. Essa dissolução acarretaria para cada um a responsabilidade por si mesmo como contraponto de uma liberdade a que, utilizando a expressão de Sartre, se está condenado. O problema não seria o ataque à liberdade dos indivíduos, questão que preocupava a Teoria Crítica, mas a dificuldade que, numa sociedade de consumo, a grande maioria dos indivíduos sente, pois os laços sociais foram desfeitos, para dar um conteúdo significante à sua liberdade.

Notícias como esta mostram uma terceira possibilidade entre o tradicional Big Brother, de natureza política, e o insustentável peso de uma liberdade individual desligada das teias tradicionais, agora liquefeitas, do relacionamento social. Se há empresas de recrutamento de pessoas que pedem o acesso ao perfil do Facebook dos candidatos, então estamos perante um outro fenómeno. A análise de Bauman tem sentido, mas é limitada. Essa liberdade insustentável que coage, hoje em dia, os indivíduos tem uma contrapartida: a privatização do Big Brother. Os mecanismo de vigilância e controlo políticos não foram substituídos apenas pela condenação dos indivíduos à vagabundagem e, em certos casos, à circunscrição a um gueto. A vigilância tornou-se privada e a intromissão na vida dos indivíduos não é agora um assunto de interesse público, mas de múltiplos interesses privados.

As empresas sempre gostaram de olhar para a vida de quem recrutam. A entrevista é um mecanismo de intromissão na esfera privada, um jogo hermenêutico onde se tenta decifrar se o candidato é próprio ou impróprio para o que se pretende. Mas como em todos os jogos o resultado nunca está seguro. O entrevistador pode perder. O acesso das empresas às redes sociais (por que não exigir acesso ao email ou às cartas que se escreveram a terceiros?) seria uma forma de surpreender a natureza do candidato, olhar para ele sem a máscara que apresenta na entrevista. Vê-lo na sua nudez e na sua intimidade. A pós-modernidade não será tanto uma época em que a modernidade se liquefaz, mas o lugar onde começa a consumar o seu destino originário: a captura do indivíduo pelo indivíduo, da intimidade pessoal pelo interesse privado. Isso exige a privatização da vigilância e dos mecanismos de observação, a privatização do Big Brother

Não se trata, nesta perspectiva, de salvar a Teoria Crítica e a Escola de Frankfurt, mas de voltar a crítica contra ela mesmo. No caso em apreço, o entrevistador ou o recrutador de mão-de-obra (intelectual que ela seja, não deixa de ser mão-de-obra) é uma figura que emana da própria crítica moderna. O que deve ser questionado é a própria essência da modernidade. E não como estratégia para retorno à Idade Média, obviamente.

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