domingo, 3 de junho de 2012

Missa Pro Defunctis (X)

10. Sequentia: vi. Confutatis

A esponja de vinagre, risco de carvão na parede,
E o espelho quebrado à entrada.
De uma, mil imagens batidas pelo sol,
Labaredas azuis e amarelas, laranjas ácidas,
As frutas que ficavam do inverno.
Quando as crianças se sentavam à mesa,
Um rumor vindo da rua, insectos a zumbir,
O balançar do vento na ramagem dos pinheiros.

A morte vem, espectáculo de rua,
Traz as mãos cobertas de serapilheira
E a voz insone, arrasta-se, sentencia,
Argui a lógica da decisão em campo de cebolas,
Prontas para a colheita, ansiadas no mercado.
Vem luminosa, uma elegia, segue a estrela polar,
E abre o livro, tão branco, sem palavras, o vazio;
O morto deita-se nele, adormece, não mais voltará.

Dentro do livro há labaredas – invisíveis e acres –,
A garrafa de vinagre, o esboço de uma cronologia,
Uma velha colecção de calendários gastos.
Ela desenha corpos esventrados, a esplanada incendiada,
Gritos na rua: um estrondo abalou prédios, quebrou vitrines,
Deixou uma sementeira de vida exangue,
Pronta para a colheita, ranchos de homens e mulheres cantam,
Dançam, espigas ao ar: queimam-nas no fogo do carvão.

Se alguém chama o passado ou pede um táxi, a morte cala-se,
Ateia a palha do colchão e espera a incúria dos bombeiros,
A falta de água nas torneiras, o sábado, todos esquecem a vida,
E bebem o vinho espumoso, ela o traz na algibeira.
Há quem sonhe com a infância, o sopro do vento nas parras,
E leia o jornal desportivo, velho livro de orações,
Joelhos no chão, quase a sangrar, e os lábios inquietos,
Entre o medo da cinza e o temor da derrota,
Segredam um pedido, a absolvição,
Que o inferno do estádio se encha para sempre,
E as almas cansadas cantem hossanas entre bandeiras e olés,
E a morte, sentada na bancada central, se desmemorie,
Esqueça o livro branco e vazio e, entre dois golos, oiça
O rumor vindo da rua, insectos a zumbir,
O balançar do vento na ramagem dos pinheiros.

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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

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