quarta-feira, 8 de agosto de 2012

A paixão de ter razão

Pérez Villalta - El ámbito del pensamiento (1989)

Isso porque neste caso é odioso não só quem nos combate, mas até mesmo quem simplesmente não concorda connosco. Pois não aprovar o que um homem afirma nada mais é que acusá-lo, implicitamente, de errar naquilo que está dizendo; de modo que discordar num grande número de coisas é o mesmo que chamar de louco aquele de quem discordas. (Thomas Hobbes, Do Cidadão, I - I 5)

A psicologia hobbesiana revela aquilo que múltiplos discursos sobre a bondade do pensamento e do pensar por si mesmo tendem a ocultar: o carácter eminentemente narcísico do pensamento. Sobre isto duas notas apenas.

Se olharmos, por exemplo, para a blogosfera política, mas não apenas para a blogosfera, encontramos muito facilmente um discurso de desprezo absoluto, muitas vezes disfarçado de condescendência, pelas ideias dos outros. Por norma, isso é entendido como manifestação de interesses - de classe ou outros - em confronto. No entanto, isso é apenas secundário. O que está em jogo é o narcisismo centrado no pensamento, a paixão por ter razão, a idolatria de si mesmo, fundada na convicção de que a luz natural da razão só a si, e aos que pensam da mesma forma, foi dada, tendo sido sonegada aos que pensam de maneira diferente. O narcisismo fundado no pensamento é mais perigoso e feroz do que aquele que nasce da beleza própria. Ser feio é um acaso da natureza ainda suportável, ser estúpido é aquilo que, apesar de ser igualmente dádiva  da natureza, nem o mais estúpido consegue suportar. Percebe-se que a democracia seja ao mesmo tempo um milagre (pois, os adversários não se matam) e o exercício da mais obstinada surdez. Os adversários falam, mas é apenas a estupidez deles que vem ao de cima, pois a razão está, obviamente, do nosso lado. Só nós estamos na verdade.

A segunda nota liga-se ao exercício da filosofia (e, por consequência, das ciências). A filosofia nasce como uma forma de indagação e questionação da realidade, mas de imediato ela foi exercício de exposição da verdade a que essa questionação conduz. Se olharmos para as obras de todos os grandes filósofos, o que vemos é um longo argumentário para demonstração de como a verdade se dá no seu pensamento,  ao mesmo tempo que, de forma directa ou indirecta, se demonstra que os outros permanecem no erro, ou numa verdade muito limitada. Isto ensina-nos, porém, uma coisa sobre a verdade. Esta não é o resultado da investigação, mas o produto do exercício do narcisismo fundado no pensamento, da paixão por ter razão. A verdade dos filósofos é a coroa de louros do seu narcisismo; a filosofia, o campo de batalha entre os mais refinados narcisistas que a espécie humana já produziu.

5 comentários:

  1. Afinal expor uma ideia e fazê-lo com assertividade, com paixão, não passa de um mero exercício de narcisismo?

    Os grandes pensadores, cujas ideias gostamos de conhecer e que, de certa forma, nos influenciam, são afinal uns seres quase imaturos, que gostam de falar ao espelho ou de se ouvir?

    Não há o pensamento puro que é oferecido aos outros como acto de generosidade?

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    1. Por detrás de todas as ideias que são oferecidas há um "dever ser": isto deve ser assim ou tu deves ser ou agir assim. Por outro lado, na própria palavra filosofia há o reconhecimento dessa imaturidade. Ela é um amor à sabedoria, um desejo de sabedoria, mas não a sabedoria. O pior não está, porém, aí, mas no passo a seguir, quando se julga ter uma sabedoria ou uma ciência a oferecer ao mundo. Tudo isto, contudo, não significa que não valha a pena ler os filósofos. Valem e muito. Mas há limites para a fé, digamos assim.

      Outras tradições sapienciais nunca pensaram colocar no pensamento discursivo a crença de que ele poderia estar na verdade. O narcisismo, por seu lado, é um elemento tão poderoso - como o Hobbes o compreende - que a sua erradicação é quase (este quase é a minha dose de generosidade para com a nossa espécie) uma impossibilidade.

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  2. Boa noite,
    Peço desculpa pela "ligeireza" dos meus comentários relativamente a alguns postes como, por exemplo, este.
    Penso que a maioria dos 'narcisos' poderia ser recuperada, se alguém os convencesse, de uma vez por todas, da sua imbecilidade e os ensinasse a utilizar o cérebro em lugar do cartão partidário ou da intolerância ideológica.

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    1. Caro JRD, não sei se o cérebro resolveria o problema. O cérebro é a central produtora da ilusão narcísica, e já vimos um povo altamente educado e com o cérebro perfeitamente oleado a exterminar outro povo só porque sim, porque eram a encarnação do mal. Ao contrário de Monsieur Hercule Poirot (como eu gostava das suas aventuras!), eu desconfio da bondade das celulazinhas cinzentas.

      Abraço

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