segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A poesia como um expor

Umberto Boccioni - The City Rises (1910)

O poeta Paul Celan disse que "a poesia não se impõe, ela expõe-se". Nesta frase há toda uma demarcação e um programa. A primeira coisa que compreendemos é que a poesia não pertence à área do poder, seja o poder político ou qualquer outro. Só se impõe aquilo que, ao pôr-se, tem poder e força suficientes para impor. Ao afirmar essa ausência de poder e força, o poeta reconhece uma fragilidade própria do poético. De onde nasce essa fragilidade? Nasce do facto de a poesia se expor. Antes de perceber a poesia como uma exposição ou um patentear, é necessário pensar o próprio "expor". Aqui pensa-se um afastamento ou uma separação do acto de auto-posição. A poesia não põe seja o que for. Ela expõe-se, isto é, afasta-se da sua auto-posição, separa-se de si, distancia-se do que é no próprio momento de ser.

A poesia é um movimento, um acontecer, e aquilo que acontece é o estranhamento contínuo a si mesma. Expor-se significa o movimento ininterrupto de afastamento de um terreno sólido onde ela possa ser reconhecida. É isto que constitui a fragilidade da poesia, o facto de ela se arriscar continuamente ao não reconhecimento. Mas não só. É também o risco de deixar de ser poesia, de se tornar prosa. A poesia - por isso ela interessa a cada vez menos pessoas - vive na situação paradoxal de ter de deixar de ser o que é (de se expor, de se afastar de si) sem que possa deixar de ser o que é (sem se tornar prosa e deixar de ser poesia).

Se eu digo "poesia", o vocábulo é identificado como um substantivo feminino. Ora, o substantivo designa uma entidade, uma substância, e a poesia não é um substância ou uma entidade concreta ou abstracta, a poesia não é uma coisa, ainda que nobre. Ela é o puro acontecer da sua continua exposição, do seu contínuo auto-afastamento. A poesia é um acontecer, uma acção. Sendo assim,  o vocábulo poesia não é um substantivo, mas um verbo, uma palavra que designa uma acção, designa o acontecer do estranhamento a si da própria poesia.

6 comentários:

  1. Que texto fantástico, este. Leio e volto a ler sem me preocupar em perceber tudo o que pretende significar, leio apenas pelo prazer de ler palavras escritas em volta do tema 'poesia'.

    No seu caso, quando escreve poesia pensa no que está a escrever? Preocupa-se em dar-lhe um sentido? Um sentido que o represente a si que a escreve? Ou deixa fluir sem saber de onde vêm aquelas palavras e o que significam? Ou deixa que a sua poesia exponha, ela própria, as ideias que nasceram independentes de si?

    No caso da sua Missa (que acho que deveria publicar, acho mesmo, e, se me permite a sugestão, se conhecer alguém com aptidão e a devida sintonia, acho que deveria arranjar alguém que, para cada poema, fizesse uma ilustração para colocar, no livro, ao lado do poema), que tem uma sequência própria, uma estrutura bem definida e conta uma história paralela com os tempos que correm, tudo isso foi cuidadosamente pensado, burilado, oleado, certo? Nesse caso foi um exercício de racionalidade vestido com palavras de um outro território?

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    1. Respondendo às questões:

      1. Não penso no que estou a escrever nem me preocupo em dar-lhe um sentido, a percepção do sentido do poema vem sempre depois de escrito, nas primeiras leituras. E há sempre um sentido.

      2. Não pretendo que aquilo que escrevo seja uma espécie de autobiagrafia poetizada. Há uma experiência da vida, mas ela apenas serve para o que o poema quer dizer e não para aquilo que eu quero dizer. Aliás, quando escrevo poesia não quero dizer nada, mas apenas que algo fale através de mim.

      3. Nem na "Missa Pro Defunctis" ouve essa racionalidade. Houve uma decisão, claro, de a escrever, mas cada poema encontrou o seu caminho, sem que fosse projectado. Havia apenas o texto do requiem católico como pano de fundo, como uma melodia que desencadeava a vinda das palavras.

      4. Depois de escritos, vou revendo os textos. Mas o essencial já está lá. No fundo, tento cortar aquilo que a minha subjectividade interpõe no texto.

      5. No entanto, tudo o que escrevo tem a ver com o indivíduo que sou, embora não seja a expressão da sua racionalidade, da sua vontade ou da sua afectividade, em suma da sua subjectividade.

      6. Os textos que escrevo sobre poesia, de índole teórica como este, não são programáticos, mas reflexivos. Não são o programa que cumpro ao escrever, mas uma reflexão que faço depois do acto da escrita.

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  2. Um belo texto.
    A poesia é um movimento contínuo, uma arma carregada de futuro, nem que para isso tenha, por vezes, que 'sugerir' a prosa...
    Abraço

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    1. Sobre o que o JRD diz tenho dúvidas sobre duas coisas. Que a poesia seja uma arma. Isso significaria que ela era já um poder - nem que fosse em potência. A poesia é miserável, é o que há de mais pobre. Também não sei se ela tem futuro. Terá? O futuro o dirá.
      Abraço.

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  3. Caro JCM,
    Não sou poeta (e se gostava...) mas sinto como meus os versos do grande poeta basco Gabriel Celaya.

    (...)
    Tal es mi poesía: poesía-herramienta
    a la vez que latido de lo unánime y ciego.
    Tal es, arma cargada de futuro expansivo
    con que te apunto al pecho.
    (...)

    Percebo a sua "angústia de poeta", mas vamos acreditar que se a poesia tiver futuro como teve passado, talvez o "Mundo" se salve...

    Com tempo, vou ler os seus poemas e depois talvez me atreva a um modesto comentário.

    Abraço

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    1. Muito obrigado, JRD. De resto, não se trata de angústia. As coisas são o que são e este tempo é um tempo onde o que se mantém é aquilo que dá lucro. É perante esse padrão que o tribunal julga as coisas e mostra a verdade delas. Como todos estamos rapidamente a aprender, com a rapaziada desempoeirada que nos governa, escrever poesia não é uma coisa competitiva, só os falhados a escrevem, digamos assim.

      Abraço

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