domingo, 12 de agosto de 2012

Verso - encavalgamento e sentido

Juan Soriano - Caballos (1975)

O que é um verso? Giorgio Agamben, em Ideia da Prosa, escreve: "É um facto sobre o qual nunca se reflectirá o suficiente que nenhuma definição do verso é perfeitamente satisfatória, excepto aquela que assegura a sua identidade em relação á prosa através da possibilidade do enjambement". A expressão francesa enjambement pode ser traduzida por encavalgamento. Este "consiste em colocar o no verso seguinte uma ou mais palavras que completam o sentido do verso anterior". Agambem refere que "todo o verso no qual o enjambement não está efectivamente presente será então um verso de enjambement zero", sendo Petrarca o modelo dos poetas que evitam o encavalgamento. 

O que constitui, para Agamben, o verso é então a possibilidade do encavalgamento. O que significa realmente esta técnica poética? Ainda Agamben: "O enjambement exibe uma não-coincidência e uma desconexão entre o elemento métrico e o elemento sintáctico, entre o ritmo sonoro e o sentido, como se, contrariamente a um preconceito muito generalizado, que vê nela um lugar de encontro, de uma perfeita consonância entre som e sentido, a poesia vivesse, pelo contrário, apenas da sua íntima discórdia". O encavalgamento representa, desse modo, uma ruptura entre a dimensão métrica (na qual o verso se organiza) e a sintaxe que organiza a frase (dito de outro modo: há uma desconexão entre verso e frase), um afastamento entre o som e o sentido.

Mas a perspectiva de Agamben não coloca a questão do verso - e, por extensão, da poesia - num âmbito puramente formal? É discurso poético aquele que contém a possibilidade de encavalgamento? Esta dissensão entre a forma sonora e a forma sintáctica é a dissensão essencial da poesia? Pessoalmente, julgo ser a dissensão semântica o elemento central do fenómeno poético. Essa dissensão é trazida pelas chamadas figuras de estilo (onde a metáfora tem o papel central). Estas figuras de estilo, contudo, não são figuras de ornamento do discurso. São, antes, formas de pôr em causa o hábito presente nos jogos de linguagem corrente. Elas são na poesia aquilo que o soberano é na vida política. Elas declaram o estado de sítio e suspendem a ordem semântica regular. Desordenam o discurso ao pôr em causa a significação corrente. É este desordenar que me parece o essencial do poético. Mas este estado de sítio que a figura de estilo impõe é, como o estado de sítio político, uma forma de ordem onde as garantias habituais do léxico e do sentido estão postas de lado. A desordem ordenada trazida pelas figuras, a metáfora em primeiro lugar, é que deve determinar, pois, as desordens subsequentes ao nível dos conflitos entre som e sintaxe, entre ritmo métrico e frase, isto é, aquelas desordens que se referem o encavalgamento tornam manifestas. Dito de outra maneira: a irrupção de um novo sentido, que nasce do conflito semântico, procura novas formalidades que podem, ou não, assentar na dissensão entre verso e frase.

4 comentários:

  1. Aprendendo, aprendendo sempre. E que melhor local para o fazer?!
    Obrigado.
    Uma boa semana
    Abraço

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  2. Estas tuas reflexões curtas são memso boa. Vão no ponto e a gente não precisa ler 20 páginas pra o entender. Quanto ao conteúdo, ele me ajuda a entende ro que me incomoda por vezes na poesia, mesmo as vezes na sua, é que essa suspensão da sintaxe formal, cotidiana, esse conflito próprio da poesia as vezes é buscado em si e por si, como se fosse um truqye do poeta, como se o desfile de metáforas, de palavras sem nexo ou qq coisa assim já indicasse encavalgamento. Eu não consigo cavalgar em coisas assim. Lembro do Herberto Helder, como era fácil subir nas ancas daquelas frases-versos..., como parecia que me levavam mesmo pra algum lugar! Por vezes leio coisas (que acho em geral metidas a, fazedoras de gënero) que não me levam, ou prometem levar a lugar algum, ou me levam a um galope de circo, de demonstração de habilidades bobas, sob ocntrole. Acho que o encavalgamento deve ser um convite a voar no vento, pode ser rumo ao céu ou ao inferno, mas tem de ir a algum lugar. Por isso acho que também o poeta vai a esse lugar quando escrve, não fica ali brincando de dar as palavras a possibilidade do conflito, etc etc só a título de demosntracão. Sabe o que mais, pra cavalgar em direção ao céu e também ao inferno, precisamos de companhia! O legal no poema é também isso, por mais que o leitor e o escritor viagem sós, há aí uam mágica de sentir-se acompanhado (ora, ora, agora que pensei nisso, vai ver que por isso que o Lacan diz que só a posia algança o gozo não fálico...). Enfim, reflexões de quem não conhece a coisa como vc, nem em teoria nem na prática do fazer poesia...

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    1. Toda a poesia é um truque do poeta. Uns serão melhores, outros piores, mas não há poesia sem truque do poeta, não há arte sem artifício. Por outro lado, o encavalgamento é apenas a possibilidade de fazer ligação entre dois versos, é como se o verso de cima lançasse a mão para o verso de baixo. Por fim, o poeta quando escreve não vai a lado nenhum - não vai ao céu ou ao inferno - fica sentado à secretária a escrever. Eu sei que isso não parece lá muito festivo e interessante, mas não conheço melhor sítio para escrever do que estar sentado à secretária. Céus e infernos do poema são apenas palavras, ritmos, truques. Não há outra coisa senão palavras e joga com elas. Só isso. Quanto à companhia, só consigo escrever quando estou só. Falando sério, julgo que quem escreve não pensa se alguém o lerá, nem o faz por solidão ou para comunicar com o mundo. Fá-lo e mais nada, é como a rosa sem porquê. Escrever não é militância cultural. Mas isto sou eu a dizer.

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