quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Burocratas e caçadores


[Recuperação de um post, de 7 de Fevereiro de 2010, do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação.]

Não gosto de pessoas que são tão senhoras dos seus passos e das suas ideias, que dizem: «hoje, farei três visitas, escreverei quatro letras, acabarei esta obra já começada.» A minha alma está de tal modo aberta a toda a espécie de ideias, de gostos e de sentimentos, ela recebe tão avidamente tudo o que se lhe apresenta!... E por que razão recusaria ela os prazeres semeados sobre o caminho difícil da vida? São tão raros, tão espaçados, que seria necessário ser louco para não parar, para não se desviar mesmo do seu caminho, para colher todos aqueles que estão ao nosso alcance. Não há nada mais atraente, penso eu, que seguir no rasto das nossas ideias, como o caçador persegue a caça, sem afectar possuir qualquer caminho. [Xavier de Maistre (1794), Voyage autour de ma chambre]

Quando Xavier de Maistre publicou isto, em 1794, ainda não estava em vigor a gestão por objectivos. De certa forma, ela já assomava no horizonte, daí a crítica às pessoas senhoras de si. Mas mais que um imperativo económico-existencial como acontece no mundo de hoje, a gestão por objectivos seria um defeito de carácter. Como é que um carácter defeituoso acabou por impor a sua lei ao mundo? Pergunta ociosa. Talvez o mundo seja propício aos caracteres defeituosos. Há no texto citado uma oposição que importa compreender, mas esta não é entre a razão (que seria figurada pelas pessoas senhoras de si) e a sensibilidade (aqueles que se entregam aos prazeres semeados pelo caminho da vida). A verdadeira oposição é entre uma razão burocrática e calculadora, uma razão de carácter deficiente – digo eu –, e uma razão lábil como a do caçador, uma razão que se adapta com inteligência àquilo que se apresenta no horizonte. Todos nós percebemos já como a nossa vida está determinada pelo mau carácter dos burocratas. Começamos a descobrir também a sensação de que o fundamental era ser inteligente como um caçador.

9 comentários:

  1. Quando a "Cinegética", enquanto metáfora, derrota a burocracia...
    Excelente!

    Abraço

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    1. O problema em Portugal, apesar dos caçadores serem multidão, reside em haver muito mais burocratas do que caçadores.

      Abraço

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  2. Isto da gestão por objectivos, que existe também nas empresas, tem que se lhe diga. Convém que haja um rumo, que esse rumo seja divulgado e desdobrado pela cadeia abaixo mas, diria eu, só faz sentido se forem objectivos em sentido alargado, uma coisa flexível que se vá adaptando às inflexões. Mas se não forem coisas administrativas e estúpidas é uma forma de 'alinhar' toda uma organização pelos mesmos grandes objectivos.

    Mas acontece, de facto, que isto, por vezes, cai nas mãos de burocratas e perde a lógica e o propósito.

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    1. Estas coisas têm uma certa graça. Quando escrevi o post, vai para três anos, deveria andar farto das maluquices da política educativa dos governos do Sócrates. O problema mais interessante, porém, é que os "inventores" destas coisas, por norma, falta-lhes uma certa informação histórica e não percebem muito bem o que estão a fazer e a propor. Subjacente à gestão por objectivos está uma crença que afirma que as pessoas definindo e conhecendo claramente os objectivos os realizam. Os inventores destas coisas ficariam de boca aberta se lhes dissessem que isso é puro platonismo. De facto, Platão também pensava que as pessoas faziam o mal porque não conheciam o bem. Se o conhecessem realizá-lo-iam. O esquema intelectual é o mesmo. Mas a realidade nunca se fez rogada em refutar Platão. Aliás, mais sensato foi S. Paulo que dizia que quero fazer o bem, mas faço o mal. É evidente, e estou de acordo consigo, que uma organização tem de ter um rumo, um objectivo a realizar. A gestão por objectivos - então aplicada na educação - parece-me uma doença que nasce da fobia de se perder o rumo, devido à pouca qualidade dos timoneiros, como se os objectivos definidos minuciosamente substituíssem lideranças competentes e mobilizadoras.

      Boa-noite.

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    2. Volto aqui apenas para perguntar: mas quando as lideranças são incompetentes e pouco mobilizadoras (e não há como 'eliminá-las'), como tentar colmatar esse problema, tentando, apesar disso, que a coisa não se perca? Se não se traçarem alguns objectivos e não se tentar ir aferindo o andamento da 'coisa', como garantir que as coisas não descarrilam e, às tantas, já andam todos por conta própria?

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    3. Eu não tenho nada contra a existência de objectivos. Nisso eu estou de acordo consigo. Aquilo que me põe mal disposto é a burocratização dos processos, a sua especificação até ao pormenor, os imenso planos disto e daquilo, mais os projectos, etc. Isto na educação - área que conheço - resulta numa divisão dos objectivos gerais a atingir numa miríade de pequenos objectivos, nos quais se perde o sentido da totalidade. Isto passa-se tanto ao nível da organização como ao nível da sala de aula. Neste caso existem planificações e mais planificações que acabam por não planificar nada, pois os processos de aprendizagem dependem de factores que os professores, na sua maioria, não podem controlar. De tal maneira, que muitas escolas acabam por ter por objectivo ter tudo planificado e não terem tempo para ensinar. É esta perversão que me indispõe.

      Depois, há outro problema. Aquilo que é válido para umas organizações pode não ser para outras. Por exemplo, o trabalho de equipa. Pode ser muito interessante numa empresa. Numa escola, julgo que ele não deveria ser imposto, como muitas vezes é tentado. Deveria ser opcional. Bastava definir objectivos gerais (levar x alunos a exame e obter y aprovações, ou coisas desse género e com esse grau de amplitude) e permitir o individualismo como método. Isto significa: o professor tem toda a liberdade para ensinar como entender e responde pelos resultados dos seus alunos. Aliás, para mim é a única coisa que faz sentido. Numa escola isto é possível (mas tem imensos obstáculos). Um dirigente escolar relativamente sábio conjugaria os professores mais gregários, e que gostam de trabalho em equipa, e os individualistas metodológicos, por norma caracteres mais fortes e impressivos, mais capazes de marcar alunos. Para mim o ideal de escola era esta ser composta por professores individualistas metodológicos que respondessem pelos resultados obtidos. Uma coisa que eu noto é o progressivo desaparecimento desse tipo de professor e a sua substituição por professores gregários. Numa empresa, nunca pensei nisso, mas talvez seja preciso muito team work e alguns solistas, mas não sei.

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    4. Percebo o que quer dizer e concordo.

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  3. Não sei se corresponde a um quadro mental masculino, a imagem do Caçador, mas por ora escolho as respigadoras. Saber usar o joio para inventar o pão.
    Boa Noite.

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    1. Claramente um quadro masculino. Mesmo para quem não é dado à caça propriamento dita, a imagem do caçador continua pregnante e funciona como metáfora disponível para um movimento de liberdade.

      Boa noite.

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