segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

A prática salazarista em democracia

Giovanni Battista Tiépolo - O Olimpo

Em seu redor, neste Olimpo da «alta política», circulava a nata, a elite do regime, um grupo restrito e de difícil acesso girando promiscuamente entre os altos cargos políticos e as administrações das empresas. Ao contrário do que faz constar uma difundida lenda urbana recente, Salazar inaugurará o hábito, quase uma praxe, de compensar os seus servidores  mais chegados com substanciosos lugares no mundo dos negócios ou nas boas sinecuras do Estado. (Fernando Rosas, Salazar e o Poder. A Arte de Saber Durar, p. 43)

Esta citação do último livro de Fernando Rosas ajuda a perceber muito do que é a democracia em Portugal, e o mal estar que hoje em dia se vive. De facto, a transição à democracia não representou, em muitos aspectos, um corte substantivo com as práticas salazaristas, mas a sua democratização, isto é, a sua distribuição por um grupo mais alargado de agentes políticos e económicos. A lenda de um Salazar incorruptível, que chegou remediado ao poder e remediado morreu, sempre ocultou o outro lado da história. A natureza corruptora do regime, a forma como o ditador se servia das paixões e dos interesses humanos para os explorar em favor do seu projecto pessoal de poder.

A falência do regime democrático, contrariamente ao que se pretende difundir em certos círculos não se deve ao facto deste ter cortado com o santo ethos salazarista. Pelo contrário, aquilo que correu mal, e continua a correr, deve-se à continuidade desse ethos, apesar de existir um regime formal de democracia e de liberdade. A pluralização das elites políticas não representou a construção de um Estado independente do poder económico, mero árbitro do jogo do mercado e dos interesses privados, mas, antes, uma porosidade diferente entre poder político e poder económico, com as andanças conhecidas entre os ministérios e a administração de grandes empresas. 

Para Salazar, ou para a sua retórica, esta praxis estava ligada à promoção de um Estado nacional forte. Na verdade, estava ligada à criação de um poder pessoal forte. É isto que é transferido para o regime democrático (inclusive no PREC), com as suas oscilações de poder, obrigando os grupos empresariais ao contorcionismo necessário para estar de bem com o governo e com a oposição que, num futuro sempre próximo, substituirá o poder em vigor. É isto que torna o regime democrático frágil e o Estado fraco. É isto a origem de toda a corrupção. Quando se fala, como muita gente o faz hoje em dia, em mudar de regime, está-se a falar em abstracções. O importante seria cortar radicamente com a velha prática herdada do salazarismo. Coisa que não aparece interessar a ninguém, o que torna ociosas todas as melancólicas meditações sobre a salvífica mudança de regime.

3 comentários:

  1. A corrupção, o tráfico de influências a acomodação de interesses são atavismos históricos.
    Uma espécie de cangas impostas ao país ao longo da História.
    Na ditadura do Estado Novo eram usadas por debaixo dos panos. No estado actual fazem parte do funcionamento do sistema às "escancaras".
    Sistema que se desmorona se elas interromperem a sua acção.
    Digo interromperem, porque não acredito que algum dia sejam banidas dos usos e costumes.

    Abraço

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    1. É por coisas destas que o liberalismo é impossível em Portugal, pois o Estado nunca será apenas um mero regulador do jogo, mas um interventor e aliado de uma parte, ou de várias. Em última análise, isto não tem solução. E o que não tem solução, solucionado está.

      Abraço

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  2. Peço desculpa pela falta de vírgulas e outros lapsos.
    Sou um inepto (apressado) com as teclas.

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