sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Poema 41 - Não pára a grande fábrica do mundo

Não pára a grande fábrica do mundo.
Tece e destece, compõe sonhos e figura pesadelos.
Nela trabalham mãos de dedos afilados
e se a tarde chega e o trabalho vai,
logo um novo turno abre as portas
e o mundo, mesmo exausto mesmo moribundo,
levanta as pernas e põe-se a caminho.
Se pudesse, diria: estou neste mundo mas
não lhe pertenço. Ele não perdoaria a mentira,
e entre gritos e imprecações obrigar-me-ia
a provar cada sombra e cada hora de nojo
e, descontente, abrir-me-ia a grande porta
dessa fábrica onde todos trabalham à porfia.

Uma estranha sensação de fim



De tudo se apossa uma estranha sensação de fim. A nova avaliação de Portugal pela troika ou o pedido de resgate da Catalunha a Madrid não significam que se está a remediar uma situação para que ela possa persistir nos antigos moldes. Como a multinacional Unilever bem sabe (pois está a preparar-se para o retorno da pobreza à Europa), estamos perante sintomas de que uma nova configuração da realidade social emerge. Mas não é apenas ao nível económico que esta sensação de fim de estação se manifesta. Também as alterações climáticas e a intensificação de certas catástrofes naturais fazem crescer essa sensação de fim.

O mito escatológico do fim do mundo sempre seduziu a imaginação dos homens, mas essa sedução impede-os de pensar o que está em jogo na expressão. Fim do mundo não significa que o mundo vá acabar, mas que um certo mundo, com a cosmovisão que lhe é inerente, vai terminar. O que acontece, em geral, é que há uma forte inconsciência plasmada ou na crença imaginária de que o mundo, como um todo, vai desaparecer, ou na crença de que a capacidade científico-tecnológica tem um poder infinito para evitar aquilo que sempre foi o normal percurso da história dos homens: o nascimento, a maturação e o fim de uma civilização. E por mais que se saiba que as civilizações morrem, há em nós, arreigada no fundo da nossa alma, a convicção de que a civilização moderna é eterna.

Estas convicções impedem-nos de ver os sintomas e os sinais e de interpretar essa sensação de fim que parece cair sobre todas as actividades humanas. Por isso, as discussões políticas e sociais fundam-se em modelos que são os do passado e têm como adquirido que a solução está nesses modelos. Uns julgam que o socialismo ainda está no horizonte. Outros exibem com despudor a necessidade de retorno a um liberalismo que conduziu a humanidade à primeira Guerra Mundial.

Ninguém quer perceber, porém, que chegou o tempo de uma nova frugalidade e uma nova forma de relação com a Terra. No Ocidente, a religião parece ter perdido o sentido. No entanto, depressa iremos descobrir, se não o estamos já a fazer, que palavras - que fazem parte da linguagem da religião - como sacrifício, jejum e abstinência voltarão ao vocabulário quotidiano. Este novo sentido representa já o fim do  mundo, fim daquilo que foi conhecido como sociedade do consumo ou sociedade do espectáculo. Do ponto de vista do conflito político, não se trata já de como distribuir a riqueza, mas pura e simplesmente como distribuir, com mais ou menos justiça, a nova frugalidade, isto é, a pobreza.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Marx, Steiner e o dom da profecia

Ernst Barlach - Prophet Writing (1919)

A análise marxista da história revelou-se unilateral e muitas vezes absolutamente ao arrepio da evidência. Previsões marxistas cruciais ficaram por cumprir, e não creio que precisemos de ser técnicos ou profissionais da economia para vermos quão desabridamente incorrecto o marxismo se revelou, por exemplo, quanto ao empobrecimento da classe trabalhadora ou à tão repetida profecia do colapso cataclísmico e iminente do capitalismo. (George Steiner, Nostalgia do Absoluto, p. 21)

O tempo é cruel. Esta crueldade deriva da sua natureza infiel. Não deveria o tempo certificar as profecias humanas e assim mostrar a sua fé nos homens? Esta leitura do marxismo e da sua incorrecção desabrida é feita no Outono de 1974. Steiner fá-la com ar entristecido, como se alguma coisa morresse dentro dele. Ao mostrar que Marx era um mau profeta, Steiner esquece o tempo e a sua natureza infiel. Também Steiner, e ele não o sabia, estava a fazer uma profecia sobre as más profecias de Marx. O que ele não podia suspeitar é que a sua profecia era má, talvez pior que a de Marx. 

Haverá aqui um traço que une Marx e Steiner. Esquecem as alterações que a liberdade e a iniciativa dos homens introduzem no decurso da história, esquecem a natureza infiel da temporalidade. Nas condições em que Marx faz a sua análise e a sua profecia, talvez esta tivesse sentido e fosse logicamente viável. Quando, em 1974, Steiner faz esta profecia sobre Marx, aquilo que diz faz sentido. Mas se o tempo é infiel aos homens, a história é perversa. Se em 1974, o capitalismo prometia, e fazia, uma vida mais decente para os trabalhadores, hoje em dia Marx volta a ter razão. Desde os finais dos anos 80 que está em marcha um processo de empobrecimento do mundo do trabalho.

Qual o motivo por que Marx parece ter-se enganado num primeiro tempo? Foi o próprio êxito do pensamento marxista que conduziu ao engano. A influência de Marx, consubstanciada na revolução russa de 1917, gerou um pânico tal no mundo capitalista que este teve de chamar a classe trabalhadora para dentro do contrato social e deixar que os trabalhadores pudessem elevar-se ao estatuto de classe média. Qual o motivo por que se engana Steiner em 1974? Porque não conseguiu prever o colapso da União Soviética e o fim da ameaça do comunista. O capitalismo, apesar das alterações dramáticas que sofreu, retornou ao que era a sua natureza antes de 1917.

Resta saber, porém, uma coisa. Se a profecia marxiana do empobrecimento dos trabalhadores parece estar a concretizar-se, será que a outra profecia citada, o colapso eminente do capitalismo, poderá acontecer? Steiner, na análise que faz, ilude uma coisa. As duas guerras mundiais e o crash de 1929 são cataclismos inerentes ao próprio capitalismo. Não geraram o colapso mas mostraram o grau de destruição inerente a este tipo de sociedade. Não sabemos o que vai acontecer, mas uma coisa é certa, as crises do subprime, nos EUA, e das dívidas soberanas, na UE, têm enormes potenciais cataclísmicos. Falta saber se gerarão o colapso, iminente ou não, do sistema. Dito de outra maneira, falta descobrir se Marx merece ou não ombrear com os velhos profetas do Antigo Testamento. O tempo, com a sua crueldade e amor pela infidelidade aos propósitos humanos, o dirá.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Ciência e Política

Pedro Fernández Cuesta - El Árbol de la Ciencia

Do mesmo modo, as implicações científicas da Revolução Francesa são evidentes na hostilidade franca ou dissimulada que os políticos conservadores imprimiram ao que consideravam consequências naturais da subversão materialista e racionalista do século XVIII. A derrota de Napoleão levantou uma onda de obscurantismo. (Eric Hobsbawm, A Era das Revoluções, p.292)

Um dos fenómenos mais interessantes do mundo moderna é a íntima relação entre ciência e poder político. Por ciência, não me refiro aqui a coisas como a Economia ou Sociologia, mas às ciências duras, as chamadas ciências da natureza. Se escutarmos as vozes dos cientistas, ouviremos o conto de fadas da autonomia da ciência. O cientista, no seu projecto, faz apenas ciência pura, que nada tem a ver com questões políticas. Também o político afirmará a candura e inocência da actividade política. Como a constatação de Hobsbawm mostra, desde muito cedo, diria desde o início e já com Galileu, que a ciência da natureza e a política estão profundamente entrelaçadas. Não há uma ciência pura, completamente autónoma da política. Também não há política que não recorra, para se afirmar e persistir, ao trabalho científico e às consequências técnicas deste.

Por norma, o que acontece é que quem estuda um destes fenómeno não tem em consideração, a não ser de forma lateral, o outro. Politólogos, historiadores políticos e filósofos não pensam o fenómeno do poder na sua íntima conexão com a ciência natural. Por seu lado, Historiadores da ciência, epistemólogos e cientistas tendem a não compreender o acto científico - o trabalho laboratorial ou de campo - como fazendo parte do jogo do poder. Dirão que fazem parte de jogos de linguagem diferentes e, por isso, são autónomos. Esta autonomia, contudo, não é apenas falsa. Ela é uma máscara que não permite compreender, na sua efectiva realidade, nem a ciência nem o poder nas sociedades modernas. Mas a percepção de uma não autonomia das duas esfera é já muito antiga. Platão, por exemplo, percebia a sua íntima conexão. Será a ele que se deverá voltar para iluminar esta obscura e obscurecida relação entre poder e saber.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O enigma da violência

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

Quantas vezes depois de um conflito pessoal ou social, ou mesmo de uma guerra, as partes envolvidas pressentem a inutilidade do combate e a desnecessidade de tais conflitos. Certamente, as partes que se envolvem nesse exercício têm justificações racionais para a sua posição. De facto, a razão tem esse imenso e terrível poder de a tudo justificar e de para tudo encontrar razões. Mais importante do que a razão para lidar com a violência é aquele sentimento, dado a posteriori, da inutilidade dessa violência. 

A razão é incapaz de lidar com enigmas - não foi por isso que ele tentou matar o mito? - e a violência do homem, por mais corrente que ela seja, não deixa de ser enigmática. Muitas vezes pensamos que uma educação racional é um bom caminho para obstar à irracionalidade da violência. O que não pensamos, porém, é a íntima relação que existe entre racionalidade e irracionalidade, como elas são apenas faces da mesma moeda. É esta pertença mútua da razão e da irrazão (ou desrazão) que constitui o enigma da violência. É nesse núcleo onde razão e irrazão/desrazão se pertencem mutuamente que está a fonte da violência, e é ele que torna todos os combates, lutas e conflitos em enigma.

Enigmático é aquilo que o pensamento não consegue abarcar e compreender e, por isso, apenas o sentimento tem o poder não de compreender mas de pressentir a sua extravagância e inutilidade.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Antonio Skármeta, Um Pai de Filme


Como entrar na pequena novela – talvez, e mais propriamente, um conto – Um Pai de Filme, do chileno Antonio Skármeta? É possível que existam outros caminhos mais rápidos (a história da fuga do pai e do seu reencontro) ou mais pitorescos (a ida do jovem professor primário a um bordel para iniciação sexual – O reitor do liceu também vai às meninas, assegura-lhe o amigo –, a qual pela rapidez permite descobrir os interesses da rapariga pela Geografia), mas o que mais me agrada está plasmado na curtíssimo capítulo quatro. O narrador diz «Em Santiago, pelo contrário, a imprensa publica versos monumentais que aludem à antiguidade grega e romana, cinzelados em mármore, e que meditam sobre a eternidade da beleza». E duas linha mais à frente faz, num pequeno parágrafo, a antítese que estabelece a tensão essencial da narrativa: «Aqui, na província, a beleza nunca é eterna».

A poesia serve aqui de metáfora para a vida. Na capital, Santiago, o mundo é, devido à distância, o supralunar da cosmologia aristotélica: perfeito e eterno. Na aldeia ou na cidade de província mais próxima estamos no mundo sublunar dado à imperfeição e à existência efémera. Esta antítese, contudo, não é o centro da história, mas o horizonte onde ela se move, o enquadramento que permite ao autor focar-se naquilo que é humano e por isso imperfeito, precário, dado à corrupção e ao desaparecimento, mas também a uma certa figuração intemporal.

No hora em que o protagonista desce do comboio, regressado de Santiago e com o diploma de professor, para se instalar na aldeia natal e exercer aí profissão, o pai, francês, sobe para o mesmo comboio para, supostamente, partir para França, deixando-o e à mãe no desconsolo de uma aldeia perdida na província chilena. Eis a efemeridade da família, símbolo e desígnio de todas as outras. A partir daqui, Skármeta explora as relações de proximidade que se estabelecem naquilo a que se pode chamar um espaço de partilha e de pertença mútua própria dos pequenos universos. O professor e a amargurada mãe (está sempre em convalescença desde a partida do marido), o padeiro – amigo e confidente do pai e iniciador do professor no universo do prostíbulo –, o aluno espigadote (que sonha, aos 15 anos, perder a virgindade e escrever poesia), as irmãs casadoiras do aluno, não menos inquietas do que o irmão, a puta que gostava de geografia, toda uma paisagem humana que, no que tem de efémero e incompleto, permite esboçar um retrato eterno da condição humana, com os seus desejos, ilusões, decepções, mas também com o que o destino traz de inesperado.

É com esta eternidade nascida do efémero provinciano que a narrativa fecha: «O chefe da estação faz soar o seu apito e confirma pela décima vez no seu pulso que são quatro da tarde e que o relógio do cais de embarque está parado há cinco anos nas três e dez». A reiteração dos gestos e a suspensão do movimento são a eternidade – o mármore – que, a nós pobres provincianos (e quem não o é?), cabe em sorte.

Antonio Skármeta (2010). Um Pai de Filme. Lisboa: Editorial Teorema. Tradução de Jorge Fallorca.

domingo, 26 de agosto de 2012

A virtude moral da dissimulação

José Gutiérrez Solana - El ciego de los romances (1915-1920)

Nós, os capazes de ver, vemos os reflexos dos movimentos da alma nos rostos alheios e, por isso, nos habituamos a esconder os nossos próprios. Os cegos, neste sentido, são absolutamente desprotegidos, pelo que na cara empalidecida de Piotr era possível ler tudo, como num diário pessoal deixado aberto numa sala - nela estava inscrita uma torturante inquietude. (Vladímir Korolenko, O Músico Cego)

Dissimular o que nos vai na alma é uma das maiores virtudes morais que se pode ensinar a alguém. Dissimular não é apenas o exercício de auto-defesa de um eu perante um mundo social adverso ou meramente inquiridor. Dissimular é poupar aos outros aquilo que se passa em nós, negar-lhes o árduo trabalho da comiseração ou evitar-lhes o terem de se confrontar com os nossos juízos negativos. Aprender a dissimular de forma competente é preparar-se para a vida em comum. Nada pior que uma alma transparente ou uma pessoa sempre pronta para proclamar a verdade.

Neil Armstrong e o acontecimento decisivo do século XX


A morte de Neil Armstrong, o primeiro ser humano a pisar a lua, veio relembrar o acontecimento essencial do século XX. De tudo o que o homem fez, desde as coisas mais terríveis até às mais benfazejas (e o século XX está repletas de ambas), o acontecimento decisivo para a história da humanidade está simbolizado nos primeiros passos dado por este homem na lua. Com esses passos, a humanidade, como disse Hannah Arendt, começou a emancipar-se da sua condição terrestre.

Esse acontecimento pouco tem a ver com a exploração técnico-científica do espaço (tem-no, mas de forma secundária), nem com a corrida entre americanos e soviéticos, nem com a velha curiosidade que o homem sente pelo que está distante. Esse acontecimento está ligado à constituição do homem como ser extra-terrestre. Com o passeio de Armstrong na lua, houve uma mutação radical na condição da espécie humana. A Terra deixou de ser o único lar possível para a nossa espécie e foi aberta uma clareira na imensidão do universo, prestes a tornar-se um lugar de múltiplas pátrias.

sábado, 25 de agosto de 2012

Estado social ou soberania popular?

Antonio Tápies - Pequeño arco blanco (1963)

As palavras são muitas vezes testemunhos mais vivos do que os documentos. (Eric Hobsbawm)

A ideia de Estado social está ligada à ideia de direitos sociais. Estes significam que qualquer um tem direito, durante a sua vida, a um conjunto de bens e serviços garantidos pelo Estado, que seria assim um Estado social (ver aqui). É em torno destes direitos (substancialmente consignados na Escola Pública e no Serviço Nacional de Saúde, mas não só) que se trava não apenas uma querela teórica mas um dramático conflito político e social. Como salienta o historiador Eric Hobsbawm, as palavras são testemunhas vivas de uma época, e estas palavras de direitos sociais e de Estado social são o testemunho de um esquecimento, para não falar de um equívoco, em que a nossa época caiu.

Contrariamente ao que a esquerda e a direita afirmam, o que está em jogo não é um putativo Estado social nem os direitos sociais (que a esquerda acrescenta aos direitos de soberania; a direita liberal vê-os como actividades que não competem à soberania e não merecem o título de direitos). Mas o que foi esquecido ou não foi pensado até ao fim, é que aquilo que está em jogo é a questão da soberania e o conjnto dos direitos e deveres do soberano. É Jean Bodin que define o conceito de soberania. Este refere-se à entidade que, na ordem política interna, não tem nenhuma outra entidade que lhe seja igual em poder, e na ordem externa não há outra que lhe seja superior. Com a transição das soberanias monárquicas, fundadas no direito absoluto dos monarcas, para as soberanias populares, o povo ganha uma nova personalidade jurídica e é instituído como soberano. É neste âmbito, que se deve  pensar a questão da Escola Pública e do Serviço Nacional de Saúde.

A Escola Pública não visa educar indivíduos privados para perseguirem o seu bem privado, a não ser indirectamente (por acidente, como diria Aristóteles), mas visa educar o soberano (o povo, no caso, as novas gerações) para o exercício esclarecido da sua soberania (mesmo que este seja o mero consentimento relativo à acção do governo). A escolarização não é, em primeiro lugar, um direito social outorgado ao povo por uma entidade que está acima dele. É um dever do soberano de se auto-educar. E é só como dever soberano que ele se constitui como um direito não social mas de soberania. Sublinhe-se: a Escola Pública, e a escolarização concomitante, visam a formação e a preparação do soberano para o exercício da soberania. Ela só pode ser analogada com a educação que o príncipe, enquanto futuro soberano, recebia a expensas da coroa, isto é, dos impostos.

Também o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não é uma organização social caritativa para diminuir as maleitas que caem sobre os indivíduos privados. O Serviço Nacional de Saúde é o análogo, nos regimes de soberania popular, aos médicos da corte que tratavam o Rei, pagos pela coroa, isto é, pelos impostos. O que faz o SNS? Cuida do bem estar físico e mental do soberano (do povo), para que ele possa exercer a sua função de soberania. O SNS não existe para tratar a minha doença enquanto indivíduo privado (a não ser indirectamente ou por acidente), mas para me tratar a mim, e a todos os outros cidadãos, enquanto membros do corpo soberano.

Os serviços de educação e de saúde públicas são o corolário lógico da ideia central que preside às democracias: a soberania popular. E é por isso que as actividades dos professores ou dos médicos e enfermeiros são actos de soberania. Quando se fala em Estado social e em direitos sociais oculta-se a lógica de soberania subjacente a esses serviços. É por isso que essa linguagem é reveladora de uma época. Que época é essa? É a época em que as soberanias populares estão a ser dissolvidas. As discussões em torno do Estado social e dos direitos sociais constituem um arco, uma abertura, por onde se está a passar de um mundo para outro. Aquilo que erradamente foi chamado de Estado Providência foi o momento onde a soberania popular se consumou e deu conteúdo pleno ao seu conceito. É desse mundo que estamos a ser empurrados para um outro mundo onde a soberania deixa de residir no povo, mas não retorna à figura do monarca. A nova soberania que se prepara, e age já na realidade política, não tem rosto nem figura. Ela é pura força, mas uma força que não tem face, uma existência virtual e arbitrária, por isso despótica (em linguagem teológica dir-se-ia que a  nova fonte de soberania é o diabo). 

Vivemos uma grande época, pois é a época trágica onde as soberanias populares são rasgadas e destruídas e o poder soberano é usurpado por forças difusas e sem rosto, mas que, na prática, se tornaram a única fonte de legitimidade dos governos e respectivas governações. A destruição da Escola Pública e do SNS é apenas o sintoma de uma alteração na fonte do poder soberano, o fim da ficção do contrato social.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Pobre Adão amedrontado

Damir Sagoli/Reuters - Público

A coisa está simbolizada no papel de Eva no processo que conduziu a nossa rica espécie para fora do paraíso. O Adão faz figura de estúpido, mas Eva é insinuante, isto é, inteligente. Deus, cansado de tanta viagem ao paraíso, pôs os dois no olho da rua e trancas à porta. A partir daí é o descalabro que se conhece. No mundo islâmico - que não é assim tão diferente do nosso quanto se pensa - a insinuante inteligência das mulheres tem um preço, como este no Irão: banidas de 77 cursos superiores. Há coisas que são só para homens de barba rija. Por mim, também acho que há coisas que devem ser os homens a fazer e outras as mulheres, mas se as senhoras têm certas propensões para a maquinaria florestal, a engenharia, a química ou mesmo para a contabilidade, que se há-de fazer? Mais seriamente: o Irão resolveu por via administrativa um problema que também se passa por cá. Os homens ainda não recuperaram da condição adâmica, quero dizer, da estupidez natural e não conseguem competir com as mulheres nas universidades. Para não correrem o risco de, amanhã, em cada dez engenheiros mecânicos ou civis, oito serem mulheres, as autoridades universitárias reservaram quotas de 100% para os homens, com esperança que eles consigam fazer os cursos. Pobres Evas islâmicas, tudo tem um preço, a inteligência paga-se caro e o infeliz Adão está tão aterrado que nem consegue dormir.

Os liberais portugueses



Depois do predomínio da esquerda nos meios intelectuais, assiste-se hoje em dia a uma maré cheia de intelectuais de direita que, desde a universidade aos blogues, passando pelos jornais e televisão, tomaram conta do espaço público. Apresentam-se como liberais, muitas referências à Inglaterra e aos EUA (republicano e Tea Party, de preferência), citam Hayek, Friedman, von Mises, fazem do combate ao socialismo, que descobrem nos sítios mais inesperados, um modo de vida e um programa político delirante. Fundamentalmente, odeiam França e tudo o que vem de Paris.

O espantoso nisto é que estes liberais são espécie que nasceu de geração espontânea. Não há memória de haver tradição liberal portuguesa e durante a ditadura de Salazar não se lhes conheceu qualquer manifestação ou preocupação com a liberdade, o núcleo do pensamento liberal. Se lermos os seus textos, depressa descobrimos que o liberalismo que defendem é sui generis. Defendem o liberalismo para evitar a concorrência. A liberdade, para eles, só tem valor quando não os obriga a concorrer com os outros e lhes assegura vantagens e privilégios sociais. As suas declarações de amor à liberdade não assentam numa cultura do mérito, mas na defesa, sub-reptícia, de uma competição social truncada e falsificada, onde eles têm todas as vantagens.

Amam a Inglaterra não porque esta seja democrática, mas porque julgam que, se fossem ingleses, teriam lugar cativo na câmara dos Lordes. Nos textos que escrevem, os mais ricos – isto é, os mais fortes e mais poderosos – têm sempre razão, o resto não passa de escumalha cujo desígnio é servir os fortes e, por extensão e graça, também a eles.

Estão sempre prontos a denunciar as ditaduras de esquerda, o colapso do socialismo real e mesmo do socialismo imaginário e, se formos leitores descuidados, imaginamo-los os campeões da luta pela liberdade. Estes intrépidos cavaleiros sempre prontos a defender a liberdade dos mercados e a sua presciência, inimigos ferozes da regulação da actividade bancária e financeira, que todos sabemos o que ela significa nos tempos que correm, têm um coração frágil e sentimental. Não pense o leitor que se comovem com as desgraças dos pobres. Não, eles amam a competição e os pobres perderam. O que os comove até à exaltação é o Dr. Salazar. Nos seus corações liberais, há um cantinho doce e suave para o homem de Santa Comba. Reescrevem a história, negam os factos e adormecem enlevados na esperança de que o homem, um feroz iliberal, reencarne para os proteger. São assim os nossos liberais.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Sándor Márai, As Velas Ardem até ao Fim



As velas ardem até ao fim, romance publicado em 1942 pelo escritor húngaro Sándor Márai, parece uma reflexão sobre a questão colocada por Aristóteles sobre a amizade entre desiguais. Há, subjacente ao pensamento de Aristóteles, a questão da reciprocidade. Para que uma amizade possa subsistir, na sua verdade, é necessária a reciprocidade e esta só pode existir entre iguais.

O romance de Márai é uma longa reflexão sobre a amizade e a sua impossibilidade na desigualdade. O livro é um exercício de rememoração da relação entre Henrik, rico aristocrata e general, e Konrád, proveniente de uma família polaca decadente. A amizade entre ambos começa no início da frequência do colégio militar, por volta dos dez anos, e prolonga-se por mais 22 anos, quando Konrád abandona o exército e, de um dia para o outro, desaparece, instalando-se no Oriente e vagueando pelo mundo.

Passados quarenta e um anos, Konrád regressa ao castelo do amigo para um longo jantar. Um quase monólogo de Henrik apenas entrecortado, aqui e ali, por perguntas ou frases misteriosas do amigo. O monólogo é, em primeiro lugar, a descrição – ou um libelo acusatório – da traição de Konrád à amizade entre ambos. No dia anterior ao desaparecimento de Konrád, este terá sentido um desejo intenso de assassinar o amigo. Além disso,  manteve um caso amoroso com Krisztina, a mulher do General. Konrad nunca desmente as acusações, mas também nunca as confirma, como se tudo aquilo, passado tantos anos, não fizesse já sentido.

A desigualdade entre os amigos – aquilo que supostamente conduziu a traição de Konrád, e esta é mais o seu desaparecimento do que o desejo do homicídio ou o caso amoroso – reside não no destino das duas famílias de origem (uma nobre e pujante e a outra decaída), mas no facto de responderem a ethos diferentes. Henrik é um militar, na linha da velha aristocracia do império austro-húngaro. Konrád, por seu lado, não tem espírito de militar, é meditabundo, com propensão para a música e, ainda por cima, vagamente aparentado com Chopin. A desigualdade dos amigos nasce no ethos  que os anima e dá forma ao carácter, como se entre o dever e a ordem militares e a criação artística, com um princípio de anarquia subjacente, existisse uma incompatibilidade estrutural.

Contudo, deve-se recolocar o romance na sua época. Publicado em 1942, o monólogo rememorativo em que assenta a acção dramática mostra que essa desigualdade pertence a um mundo que já terminou. O confronto entre dois velhos não passa de cinzas de um mundo que ardeu até ao fim na Guerra de 1914-1918. Em 1942, era tempo de outra guerra, mas a única acção possível para homens de mais de 70 anos é a reminiscência ou o silêncio, a constatação da inutilidade de tudo, mesmo do rancor causado por uma amizade traída.

Sándor Márai (2001). As Velas Ardem até ao Fim. Alfragide: D. Quixote. Tradução do húngaro de Mária Magdolna Demeter.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Quietude

Salvador Dali - Nacimiento del Nuevo Mundo (1942)

Descubro em mim tanto mal como em qualquer outra pessoa, mas, ao execrar a acção, - mãe de todos os vícios - não causo sofrimento a ninguém. Inofensivo, sem avidez, e sem energia bastante nem indecência para afrontar os outros, deixo o mundo tal como o encontrei. (Cioran, Précis de Décomposition)

O homem moderno, pelo menos aquele que descende da revolução industrial inglesa, aspira, acima de tudo, deixar o mundo diferente daquilo que ele encontrou. Deixar uma dedada na história do mundo é aspiração que, mesmo hoje em dia, ocupa a cabeça de muito boa gente. No entanto, tendo em conta ao estado a que se chegou, talvez o essencial seja mesmo deixar o mundo tal como foi encontrado. Não apenas estamos cansados de novos mundos, como estes têm-se mostrado pouco dignos de ser vividos. Sobrestimámos, logo no Renascimento, o poder da acção e hoje não sabemos estar quietos. Mas a quietude é uma virtude que precisa de ser reaprendida.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

De recusa em recusa

Emil Nolde - Couple and Redheaded Child

É assim que o Ocidente se prepara para abandonar os lugares da ribalta mundial. Compreendo perfeitamente os direitos individuais, os da mulher em abortar e, os agora reivindicados academicamente, do homem em recusar  a paternidade não planeada (ter filhos tornou-se um exercício burocrático). Mas de direito em direito, de recusa em recusa, vamos chegar ao momento que uma criança será um acontecimento absolutamente excepcional. Não sei se há solução neste conflito entre os direitos dos indivíduos e a persistência das comunidades. Mas o que parece claro é que esta aporia é um sintoma, mais um, de um estado de decadência, do qual, porventura, não haverá retorno.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O retorno do destino

Luigi Russolo - Dinamismo en un automóvil (1911)

Contrariamente às sociedades tradicionais, o que marca a sociedade moderna - ou pós-moderna - é a aceleração do tempo. Não do tempo cosmológico, o qual continua regido por uma ordem de forças sobre as quais o homem não tem poder. O domínio que, a partir da filosofia cartesiana, o homem exerce, através da reflexividade, sobre si mesmo e o desenvolvimento da técnica desencadearam um conjunto de imperativos sociais cujo núcleo central é a rapidez. Cada vez mais depressa é o lema que conduz a vida nas sociedades actuais. A Internet é o último símbolo desse modo de vida, o lugar onde tudo se faz instantaneamente (ou quase). A própria economia entrou, na sua dimensão financeira, no domínio das transacções instantâneas. Os mercados agem e reagem instantaneamente. 

O problema não está apenas no facto de os seres humanos, por atléticos que sejam, não conseguirem viver à velocidade das luz ou coisa semelhante. Entre o imperativo social da velocidade elevada ao paroxismo e as capacidades da espécie humana há um abismo, cuja tendência é de se alargar infinitamente. Mas o principal reside na irracionalidade da instantaneidade. A razão, no seu uso quotidiano e aplicada ao mundo, é de natureza discursiva, isto é, ela não é intuitiva, não é imediata como, por exemplo, uma sensação. A razão implica sempre um percurso, que é o caminho que o raciocínio deve fazer na ligação entre premissas e conclusão. A razão implica o tempo e não opera na instantaneidade. Caminhar para a instantaneidade, mesmo que seja apenas em algumas dimensões da existência humana, é caminhar para a mais selvagem das irracionalidades, é criar ambientes pura e simplesmente caóticos onde o que ocorre é fruto não do saber mas do acaso ou, numa linguagem antiga, do destino.

domingo, 19 de agosto de 2012

Obrigadíssimo, Ivone

Paul Klee - Domestic Requiem (1923)

A Ivone, de A Ronda dos Dias, teve a gentileza de fazer, no seu blogue, uma leitura do ciclo Missa Pro Defunctis, aqui publicado. Ao ler as três entradas que ela escreveu fiquei com a nítida sensação que ela leu melhor, bem melhor, do que eu próprio o leria. O Paul Ricoeur dizia que o escritor, do ponto de vista da recepção, não é mais do que o primeiro leitor. Um leitor que não tem mais prerrogativas que qualquer outro. Eu diria, porém, que há leitores que lêem bem melhor uma obra, como é o caso da Ivone, do que o seu próprio autor. E isto não é um exercício de humildade da minha parte. O autor, no fundo, nunca abandona os preconceitos que, de maneira mais implícita do que explícita, o acompanham quando escreve. O leitor está livre deles. A Ivone, por outro lado, alia a essa independência um saber de experiência feito (basta ler o seu excelente Ordem Breve ou os poemas que coloca em A Ronda dos Dias) e também uma competência técnica ao nível da análise dada pela sua formação e aplicação prática. Eu só posso agradecer a sua generosidade. Aqui ficam os links:




Tal como antigamente

René Magritte - Time Transfixed (1939)

[Recuperação de um post, de 18 de Abril de 2007, do meu antigo blogue averomundo]


Leio avidamente a obra de W. G. Sebald. Pergunto-me, muitas vezes, o que nos leva a preferir a obra de um escritor à de outro. A resposta não está na mestria da escrita, ou pelo menos não está aí a sua verdade essencial. Há escritores magistrais cuja obra pouco nos diz. Julgo, embora sem uma evidência a corroborar o juízo, que a preferência radica numa espécie de reconhecimento de “si-mesmo” nas páginas dessa obra.

Não se trata de uma identificação com o escritor. Sei muito pouco dos escritores de que gosto. Evito as biografias. De Sebald, por exemplo, tirando a sua nacionalidade e o facto de ter morrido de acidente, nada sei. E, no entanto, pressinto que aquela escrita fala de mim ou, melhor, fala de alguma coisa, indefinível e quase obscura, que me toca, como se me dissesse respeito. É como se entre a obra e o leitor existisse uma comunhão.

Peregrino por “Vertigens. Impressões”, o último livro de Sebald publicado em Portugal. Na página 40, de forma inopinada, surge o seguinte texto: “No regresso fomos dar à Albrechtstrasse e Olga não resistiu à tentação de entrar na escola onde tinha andado em criança. Numa das salas de aula, precisamente aquela onde se sentava no princípio dos anos 50, a mesma professora continuava a ensinar, quase trinta anos depois, exortava, com a mesma voz, as crianças para que continuassem a trabalhar e não conversassem, tal como antigamente.” Ao ler estas palavras senti um desconforto dentro de mim, desconforto esse motivado, descobri-o logo de seguida, por uma experiência semelhante vivida há alguns anos.

Talvez há uns 8 ou 9 anos, por altura das Festas do Espírito Santo, em Meia Via, paro o carro, por um qualquer motivo que não importa, perto da escola primária. Fiz aí a primeira e a segunda classes, antes de nos termos instalado em Torres Novas. Saio e olho o desalentado bairro que nasceu, como um penhor dos tempos democráticos, diante da escola, nuns terrenos antigamente colonizados por sobreiros, se não me engano, e onde se realizavam, na altura da Festa, picarias. Esforçava-me por reter, para além da visão ameaçadoramente suburbana, as imagens dessas árvores sacrificadas ao arbítrio habitacional. A memória era atravessada por vislumbres do passado. Invadia-me a imagem de aí ter havido, nesses longínquos anos em que frequentei a escola, um acampamento de ciganos e de eu ter levado, talvez numa daquelas caritativas iniciativas escolares que haveria na época, material escolar como prenda de Natal para alguma criança do acampamento. Neste andar absorto diante da escola, sinto o vento a bater-me no rosto. É aqui que sinto uma comoção. Fico estático, perplexo, preso ao chão, aspirando avidamente aquele ar. Um passado com mais de 30 anos chegava até mim através do vento que corria. Mais do que as árvores mortas, mais do que o estranho acampamento de ciganos visitado pelo Natal, era a forma do vento correr que me perturbava. Desenterrava uma experiência de que eu não suspeitava sequer a existência. A forma do vento correr diante daquela escola tinha sido, para mim, tão peculiar que nunca, na verdade, a esquecera verdadeiramente. Ela estava ali pronta para, na primeira oportunidade, me assaltar e me fazer regressar a um mundo que eu julgara perdido para sempre.

Quando Sebald diz, logo a seguir, “Olga, como mais tarde me contou, teve uma crise de choro. Pelo menos, quando saiu de novo para a Alberchtstrasse, onde eu a esperava, encontrava-se num estado de comoção como nunca lhe tinha visto”, diz algo que eu compreendo perfeitamente. Esse encontro com um passado insuspeitado, esse reconhecimento de um acontecimento constitutivo de “si-mesmo”, mas que se encontra soterrado, provoca uma comoção. Como a personagem romanesca, também eu, perante o vento que corria, me senti perturbado e inquieto por essa estranha visita do passado, dum passado que vinha sob a máscara tão pouco definida do vento que corre. Ainda hoje, passados anos, sinto uma estranha inquietação quando penso nessa experiência. Toma conta de mim uma volúpia feita de prazer e terror. Prazer do reconhecimento; terror de que entre o que sou hoje e o que fui nesse longínquo passado nada tenha existido, ou o que existiu apenas tivesse sido uma longa e prolongada mentira.

A professora de Olga ensinava, tal como antigamente. O vento corria diante dessa minha primeira escola, tal como antigamente. “Tal como antigamente”; talvez baste esta expressão para iluminar por que razão gosto tanto da obra de Sebald. Enganar-se-á quem pensar que este “tal como antigamente” é uma expressão de saudade. Nessa expressão, encerra-se todo o mistério do tempo e do ser no tempo.

sábado, 18 de agosto de 2012

Um sistema sem saída

Salvador Dali - Explosión de la fe mística en el centro de una catedral (1960-1974)

O sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein, neste artigo, coloca, perante a actual crise mundial, a seguinte questão: E se não houver saída nenhuma? A simples hipótese levantada é já um acontecimento  Por norma, discutem-se as saídas possíveis, partindo do pressuposto que, dentro daquilo que se conhece, estará disponível uma saída. É sobre isto que pretendo reflectir a partir de dois exemplos muito conhecidos. Antes disso, contudo, vale a pena ler um excerto do texto de Wallerstein: É um círculo vicioso e não há saída fácil aceitável. Pode significar que não há saída alguma. É algo que alguns de nós chamamos crise estrutural da economia-mundo capitalista. Produz flutuações caóticas (e selvagens) quando o sistema chega a encruzilhadas, sobre que sistema deveria substituir aquele sob o qual vivemos.

Em 1974, a questão da Guerra Colonial, nas ditas províncias ultramarinas portuguesas, não tinha em si-mesma qualquer saída. Nenhuma das partes - com excepção provável da Guiné Bissau - tinha capacidade para impor uma saída à outra. O horizonte conflitual era absolutamente indefinido. Ora a Guerra Colonial inscrevia-se dentro do sistema político português. Como este não tinha qualquer saída para o problema colonial acabou por implodir. O jogo de forças dava-se dentro de um mundo fechado, onde não havia escapatória para as tensões em presença. O 25 de Abril de 1974 é o resultado dessas tensões e, ao mesmo tempo, a explosão do sistema onde elas ocorriam.

No final da década de oitenta do século passado, os regimes comunistas do bloco de leste, com a União Soviética à cabeça, representavam um sistema absolutamente fechado. Um sistema muito maior que o português, mas tão ou mais fechado sobre si que o sistema político nacional. A economia planificada  e sem iniciativa privada mostrara-se um incomensurável flop, o qual, aliado a sistemas políticos rígidos e sem saídas, gerou tensões interiores tão grandes que o resultado foi o que se conhece: a implosão repentina de todo o bloco comunista. Pareciam castelos de areia a ruir.

Ao globalizar a economia, ao unificar todo o planeta ao nível económico e político, o sistema-mundo (para utilizar um conceito grato a Wallerstein) fechou-se sobre si mesmo. Este mundo, onde se dão as flutuações caóticas e selvagens assinaladas por Wallerstein, sofre, apesar da dimensão ser maior, do mesmo tipo de oclusão do que aqueles que atrás referimos. Por que razão deveria ter um destino diferente? As tensões que o percorrem são cada vez maiores. Tensões económicas, ambientais, sociais, políticas e religiosas. Sem saídas de emergência, o destino do sistema é de não ter saída alguma. Isto significará, a prazo, a implosão do sistema e um recomeço fora do sistema-mundo tal como foi pensado e construído até aqui.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Linguagem, desejo e poder

Kuno Künster - Dos administradores de la felicidad suben a la nave del pintor (1993-1994)

A equivocidade da linguagem é um fenómeno sempre muito interessante. Não apenas como matéria para fazer humor, mas também para reflectir sobre as relações humanas que transparecem através da linguagem. Esta não é um mero instrumento inócuo e nunca é neutra. Falar é sempre tomar partido. Isto significa adoptar um ponto de vista, uma posição sobre o mundo, e nada mais do que isso. No blogue Um jeito manso escreve-se o seguinte: Por vezes escrevo, no fim, quando me despeço, 'Sejam felizes!' ou 'Tenham um dia feliz!' e, ao fazê-lo, estou apenas a exprimir o que vos desejo. Mas já li noutros blogues algumas pessoas dizerem que acham abominável que alguém dê aos outros ordens para serem felizes. Ora, nunca me ocorreria que, ao formular um desejo tão sincero, alguém pudesse lê-lo como uma ordem.

Alguém expressa um desejo e outro alguém entende-o como uma ordem. Não é o facto da expressão do desejo ter a configuração de uma locução no modo imperativo ("Sejam felizes!" ou "Tenham um dia feliz!") que é a fonte mais importante do equívoco. Do ponto de vista da pragmática linguística, estamos perante um acto ilocutório [o sujeito ao escrever ou dizer algo está a fazer determinado tipo de acção; para uma visão rápida dos actos de fala ver aqui], neste caso um acto que expressa um desejo. A finalidade ilocutória dos actos expressivos é manifestarem um estado psicológico (daquele que escreve ou fala) acerca de um estado de coisas no mundo (neste caso, exprimem um desejo sobre o estado afectivo dos leitores).

Se um professor, em plena aula, diz "Estejam calados!", estamos perante um outro tipo de acto ilocutório, o acto directivo, que se expressa, neste caso, por um imperativo. A finalidade deste acto é levar o auditório a praticar a acção referida, a calar-se. Mas esta expressão (este acto locutório) não tem a forma imperativa como os anteriores? Tem, mas... 

O problema começa na nossa afirmação anterior sobre o equívoco. Dissemos que o que está na base do equívoco não é tanto o uso do modo imperativo em ambos os casos mas outra coisa. Aqui afastamo-nos um pouco da Teoria dos Speech Acts, de Austin e Searle. O que gera equivocidade é que em ambos os casos se expressa um desejo. No primeiro caso, o desejo que os leitores sejam felizes. No segundo, que o auditório se cale. O que acontece é que não existe um desejo nu, despido das relações institucionais - formais ou informais - onde o desejo se expressa. 

A dimensão perlocucionária, retornando a Austin e Searle, ajuda a perceber a questão. Esta dimensão dos actos de fala refere-se ao comportamento que o locutor espera do interlocutor. A dimensão perlocucionária do "Estejam calados!" é o silêncio que os alunos deverão fazer, segundo as regras institucionais existentes. Alguém tem um poder e alguém tem um dever. Quando, porém, se diz ou escreve "Sejam felizes!", nem o locutor (a não ser a razão na moral kantiana) tem o poder de mandar alguém ser feliz, nem os interlocutores têm o dever institucional, ou mesmo o poder pessoal, para obedecer àquela injunção, caso fosse uma ordem.

No caso do acto ilocutório directivo do professor, há um poder, neste caso institucional e politicamente conferido, e um dever de obediência do mesmo cariz. O acto de fala é a expressão de uma relação de poder, onde um desejo de um tem a capacidade efectiva de se tornar ordem e gerar obediência, consumando um estado de coisas que satisfaça o desejo. No caso do acto ilocutório expressivo da autora do blogue, há uma irónica confissão de falta de poder. Ao tomar a forma imperativa, o acto ilocutório não está a dar uma ordem, mas a confessar uma impotência, uma fragilidade, está a dizer que desejaria que todos fossem felizes, mas que o seu desejo é impotente para se realizar. O imperativo usado é a confissão de ausência de império, um jogo linguístico que, ao camuflar a ausência de poder, a manifesta.

O interessante deste caso - aparentemente banal - reside na possibilidade de pensar a conexão entre linguagem, desejo e poder. Permite mostrar como a linguagem trabalha de forma multifacetada o desejo e o poder ou a sua falta. Por exemplo, quem sabe dirigir pessoas expressa ordens não através de imperativos, mas de actos locutórios com a aparência de actos meramente expressivos (Agradeço que compre fruta). Não há uma correspondência directa entre os actos locutórios e a sua dimensão ilocutória, pois a tensão, a um nível extra-linguístico, entre desejo e poder, ao repercutir-se na linguagem, força-a à plasticidade, que só os falantes competentes da língua conseguem decifrar na sua aparente equivocidade.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Moedas locais

Hans Memling - O homem da moeda (1477-1479)

Desenvolve-se, um pouco por todo o mundo, a prática local de produzir moeda própria dentro de uma pequena ou média comunidade (ver aqui e aqui, e também aqui). São moedas complementares da moeda corrente e têm uma vigência comunitária. Se compreendermos o dinheiro à luz da linguagem, essas moedas podem ser consideradas como uma espécie de dialectos locais, com os quais os membros de uma comunidade se entendem. 

Estas moedas complementares são uma manifestação comunitarista (não confundir com comunista, pois há comunitaristas de direita e de esquerda), como bem se pode ver na reportagem sobre a de Bristol (Inglaterra). São estratégias, para as comunidades mais pobres, de entrada no mundo da troca económica, e para as mais ricas, formas de defesa da economia local contra a erosão imposta pelos mercados de uma economia globalizada. 

A economia globalizada, dirigida pelos imperativos da eficácia e da eficiência, sendo universal, acaba por não pertencer a lado algum, sendo-lhe completamente indiferente o rasto de destruição comunitário que pode deixar, e que deixa muitas vezes, atrás de si. Ora, estas moedas locais reforçam a protecção da economia local, dão-lhe um sopro de vida e podem representar um dique contra os interesses dos grandes grupos económicos.

Mas não haja ilusões. Não se trata de abrir um processo de substituição da moeda corrente por moedas locais, nem tão pouco do prelúdio de um retorno à Idade Média e a mercados puramente locais. Trata-se, antes, de complexificar o sistema e abrir novas oportunidades que o desenvolvimento da globalização tem fechado. Por outro lado, é preciso perceber que os imperativos de eficácia e de eficiência económicas continuam a ser válidos nessas comunidades. Não se trata de substituir o capitalismo eficiente pelo socialismo ou por um capitalismo ingénuo e ineficiente, mas de o democratizar, abrindo novas possibilidades de criação de classes médias e de criadores de bens e de emprego (aquilo que o nosso governo designa por empreendedores, embora não faça a mínima ideia como eles podem aparecer, mas isso é outra história). 

Depois da derrota do socialismo e da economia planificada, o papel da esquerda política não deverá ser o de pensar como se dá vida a um cadáver mas como democratizar o acesso das pessoas à economia de mercado. Acesso tanto como consumidores como quanto produtores (sejam proprietários ou assalariados). Os dados do jogo mudaram e os problemas também mudaram. Estas iniciativas locais são, apesar de serem ainda um fenómeno frágil, respostas interessantes e que merecem reflexão e ganhos de eficiência económica e social.

Um programa político de esquerda não pode, hoje em dia, querer substituir a iniciativa privada de alguns pela iniciativa do Estado, mas criar condições políticas para uma efectiva democratização da iniciativa dos indivíduos e das comunidades. Não deve, porém, esquecer que este localismo não tem sentido em si mesmo, mas apenas como estratégia de integração dos indivíduos e das comunidades na vida global da humanidade.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Cansaço

Ricardo Baroja Nessi - Cansaço (1951)

Quando eu comecei a estudar, a única coisa que importava era o existencialismo; no final dos meus estudos, todos estavam entusiasmados com a filosofia analítica, e há vinte anos, regressaram o Kant e o Hegel. Nem os problemas do existencialismo estavam solucionados, nem os da filosofia analítica. Toda a gente estava simplesmente farta.  (Eberhard, personagem de  O Fim de Semana, de Bernhard Schlink).

O pensamento moderno, cujo núcleo central se encontra nas ideias de movimento e de mobilização, tende a ver as transformações do mundo como o resultado da iniciativa dos homens, fruto da acção de vontades esclarecidas e decididas. Mas a realidade não é assim tão simples. As coisas mudam porque as pessoas se cansam, porque já não podem mais suportar um determinado estado de coisas. No mínimo, o que se pode dizer é que toda a iniciativa se funda no cansaço gerado por aquilo que está. Como diz Eberhard, as pessoas fartam-se. Não é a indignação da injustiça ou o arrojo do inovador que são motores do mundo, mas a náusea, o absurdo da iteração, o mero cansaço. 

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A cidade abandonada

André Masson - La ciudad abandonada (1924)

A cidade grega, a pólis, constituiu, ao mesmo tempo, o fundamento originário e o ideal orientador das concepções políticas do Ocidente. Se a religião nos chegou do médio-oriente e o direito de Roma, a forma de conceber a vida em comunidade e a organização política chegaram-nos de Atenas. Aquilo que é central nessa concepção da vida em sociedade não é a ideia de democracia mas a da submissão do oikos à pólis, da vida económica privada à vida pública. Este ideal regulador, porém, com a emergência das ideias liberais começou a ser posto em causa. Talvez o conceito de economia política seja já o sintoma daquilo que viria a acontecer. Mas é apenas nesta época que a inversão do arquétipo grego é consumada. O domínio político tornou-se secundário e subserviente relativamente ao domínio económico. Vivemos no tempo em que a cidade foi abandonada.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Europa e medalhas olímpicas


Observe-se a seguinte tabela:

Unidade Política
Ouro
Prata
Bronze
Total
População
Medalha/por número de habitantes
European Union
90
102
107
299
494 070 000
1 652 408
USA
46
29
29
104
308 745 538
2 968 707
People’s R. of China
34
27
23
88
1.338.612.968
15 211 511
Russian Federation
24
26
32
82
142.914.136
1 742 855
Australia
7
16
12
35
22 996 361
675 038
Japan
7
14
17
38
127.433.494
3 353 513
New Zeland
6
2
5
13
4 414 400
339 569
Islamic R. of Iran
4
5
3
12
68 467 413
5 705 618
Brazil
3
5
9
17
192 376 496
11 316 264
India
0
2
4
6
1 210 193 422
201 698 904


Adicionando as medalhas ganhas pelos atletas dos 27 países que constituem a União Europeia (ver quadro global aqui), o resultado é esclarecedor: A União Europeia é, de longe, a maior potência desportiva mundial. Se se medir a produtividade desportiva pela relação entre o número de medalhas e a população existente, verifica-se que a União Europeia é, no âmbito das grandes unidades políticas, a mais produtiva (precisa de 1 652 408 pessoas para produzir uma medalha, enquanto  os EUA necessitam de 2 978 707, a Rússia de 1 742 855 e a China de 15 211 511), só ultrapassada pela Austrália e a Nova Zelândia. Há algum motivo para meditação política nesta distribuição de medalhas?

Em primeiro lugar, a tabela torna evidente que unida a União Europeia é uma força poderosa, sem rival. Veja-se a desproporção de medalhas entre a União Europeia e os EUA, a China ou a Rússia. Os três somados têm menos medalhas do que a UE. Estes resultados provam não apenas a qualidade dos desportistas europeus como a primeira qualidade dos dispositivos técnico-científicos e institucionais da Europa desportiva.

Em segundo lugar, a força da Europa nasce da união, mas de uma união diversificada, onde os parceiros mantêm a sua singularidade. Seria provável que se a União Europeia se apresentasse nos Jogos Olímpicos com uma única representação, na qual estivessem os melhores dos europeus, acabasse por ganhar menos medalhas do que aquelas que ganhou. Os processos de selecção poriam de lado atletas que acabaram por ser medalhados.

Em terceiro lugar, isto permite pensar que os dois modelos políticos disponíveis (o Estado-Nação e a Federação) não se coadunam com a natureza política da União Europeia. A eficácia política - que se deverá reflectir na eficácia económica e social - exige que se invente uma nova conformação política que, não sendo uma federação tipo Brasil ou EUA, mantenha e, ao mesmo tempo, supere os velhos Estados nacionais. É o problema central da Europa e não tanto a questão das dívidas soberanas.

Por fim, esta reflexão não anula o habitual pessimismo sobre o destino da Europa. Apenas chama a atenção para o que é óbvio, a força da Europa, apesar de tudo aquilo que se tem passado. Precisamos de novas instituições políticas democráticas, de uma nova carta política e de um novo contrato social, no qual nos sintamos todos parte integrante. Precisamos, também, não apenas de pensadores mas  fundamentalmente de homens políticos que saibam olhar para longe e não para o seu pequeno, grande que seja, umbigo. E é aqui que vem a negra nuvem do pessimismo.

P.S. Portugal, para igualar a média europeia, deveria ter ganho seis (6) medalhas e não apenas uma (1), como foi o caso. Como curiosidade veja-se que Portugal e Brasil têm resultados muito semelhantes. Portugal conquista uma medalha por 10 561 614 habitantes e o Brasil, uma por cada 11 316 214.

Post modificado às 21:01.