quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Joe Wright, Anna Karenina


Segundo uma informação da Wikipedia, a versão cinematográfica de Joe Wright de Anna Karenina, de Tolstoi, é a décima terceira. Para além do cinema, o romance de Tolstoi tem sido adaptado para os mais díspares modos de espectáculo, desde a ópera à televisão, passando pela rádio e o teatro. Esta sobre-adaptação do texto torna qualquer nova tentativa um desafio desmedido ao talento e à capacidade de invenção do realizador, para que o produto final traga alguma coisa de novo. Talvez por isso, o realizador britânico tenha tentado um caminho muito discutível. Quem viu a Flauta Mágica, de Mozart, realizada por Ingmar Bergman, percebeu que o realizador sueco utilizou o seu talento para mostrar uma ópera, quase apagando os traços cinematográficos, dissimulando-os para criar a ilusão de que se estava a ver uma ópera. O que o realizador de Anna Karenina faz é montar um produto onde tenta fundir o teatro e o cinema, com o recurso, para um número importante de cenas, ao palco, sublinhando assim o carácter dramático dessas cenas. Este estratagema arrasta consigo uma retórica visual que introduz uma visão histérica da intriga romanesca. Há um efeito perverso nesta multiplicação dos modos de ficcionalização. A narrativa de Tolstoi é a primeira ficção, que agora é ficcionalizada cinematograficamente como se fosse ficcionada dramaticamente. A utilização da referência ao teatro como mediação entre a literatura e o cinema torna-se um elemento distractivo e que, contrariamente ao que acontece com Bergman na Flauta Mágica, nunca cria no espectador uma ilusão de que se está perante uma obra literária. 

Seja como for, vale a pena interrogar o que, naquilo que o filme mostra, se joga em Anna Karenina. Não se trata, claro, nem do amor nem do adultério. O que está em jogo é a questão da regra, a sua sobreposição à lei, e a oposição entre um mundo ordenado segundo a regra e aquele que segue uma determinada lei da natureza. Em última análise o que está em jogo é a verdade e a vida verdadeira. O erro de Anna Karenina, que a leva à exclusão da sociedade e ao suicídio, não reside em ter infringido a lei. A rejeição a que é votada pela sociedade a que pertence por direito natural não se deve a que tenha cometido um crime. Se isso tivesse acontecido, a rejeição seria, como é sublinhado a determinada altura, muito menor. Também não é a infracção, através do adultério, da lei moral ou da lei divina que se torna problemático. Tudo isso é aceitável, desde que não se infrinja as regras. Que regras são estas? São regras que não foram escritas, nem foram reveladas por Deus, nem resultam da razão moral. Estas regras desenvolveram-se experimentalmente através da história e permitem que uma determinada casta funcione e se perpetue enquanto tal. São modos de falar, de referir acontecimentos, de apreciar o mundo e, fundamentalmente, modos de comportar-se que mantenham as aparências. Não é o adultério, nem o amor e a paixão de Anna por Vronsky que são problemáticos, mas a sua visibilidade, a sua imposição aos outros, a sua manifestação pública. 

O espaço público é um espaço de aparências. Mas estas não são manifestações directas da intimidade, pelo contrário. A desordem das paixões íntimas precisa e exige a regulação da aparência exterior. Caso contrário, a ordem do mundo fica ameaçada e a casta corre o risco de entrar em dissolução. O que fez Anna Karenina, e de certo modo Vronsky, de grave foi não perceber a natureza do jogo, deixar o íntimo tornar-se público, quebrar a regra que mantém um mundo na existência. A regra é o suporte da arte da dissimulação. Ora a dissimulação é a essência da vida em sociedade, o substrato dos seus rituais, a finalidade do espírito e da arte de viver com os outros. A regra é, para a sociedade, mais importante que o direito, a moral e a religião. E estes só são importantes se participarem na regra que sustenta a dissimulação. Este é o centro de Anna Karenina, mas não é o seu fundamento.

A moralidade tolstoiana, digamos assim, reside na rejeição tanto do comportamento desregulado de Anna como no da sociedade que vive segundo a regra da aparência e da dissimulação. Há, percorrendo todo o filme, uma contraproposta social à sociedade regulada segundo o princípio da aparência. Uma espécie de sociedade natural onde as relações são verdadeiras e, entre os homens, existe uma efectiva fraternidade. Ao amor infeliz e desregulado de Anna por Vronsky contrapõe-se o amor feliz de Konstatin por Kitty, um amor fundado na natureza e na terra, na realização pelo trabalho e pela solidariedade para com os outros. A felicidade depende da verdade e esta não é um mero cálculo racional, mas um modo de vida. A vida do camponês é verdadeira e por isso é fonte de felicidade. A vida em sociedade, na sociedade aristocrática, é falsa, pois funda-se na regra da aparência, e gera a insatisfação (o caso de Stiva) e a infelicidade (o caso de Anna).

Se hoje em dia, depois da mecanização e da industrialização da agricultura, a crença numa vida verdadeira fundada no trabalho no campo perdeu o sentido utópico que Tolstoi ainda lhe encontrava, se a efervescência sentimental, mesmo que rompa certas regras, não gera mais do que um cansado encolher de ombros, aquilo que continua a ser pregnante é a importância da regra da aparência na vida social. Aquilo sobre o qual se devem guardar as aparências mudou desde o século XIX, mas a teia da aparência continua a ser o cimento que permite a coesão de um grupo. A arte da dissimulação é o bem mais precioso de uma vida em sociedade. Foi isto que Anna Karenina, pelo seu exemplo negativo, deixou como sabedoria e ensinamento, mais do que uma utopia de uma vida verdadeira centrada na mãe-terra.

24 comentários:

  1. Vi o Guerra e Paz em versão russa, 9 horas, 3 sábados seguidos, no Teatro Circo de Braga, 3 horas por sessão. Li a obra que foi fundamental para a minha mundividência.

    Nunca li Ana Karenina mas tinha uma curiosiosidade ansiosa por vê-la.

    Graças a Deus que li o teu comentário a tempo.

    Obrigado !

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    1. Embora o filme não seja uma grande obra cinematográfica (acho que está longe disso, pois tem algum histerismo) vê-se com agrado.

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  2. Interesante análise...ou de como o poder da regra se sobrepõe até ao da Lei...recorda o tema da Idade da Inocência, de Edith Wharton, brilhantemente realizado por Scorsese...Li Anna Karenina, claro, na adolescência...é altura de o reler...quanto filme, receei que fosse demasiado «vídeo clip», parece que não...o seu comentário incentivou-me a ir ver.

    Quanto à questão da ruralidade idílica, alguns dos Pais Fundadores americanos, como Thomas Jefferson, faziam a apologia de uma América rural e não industrializada, receando os vícios da urbe e do mundo financeiro que a envolve...lutaram por isso...ganhou a outra facção, a que defendia a AMérica industrializada...infelizmente. O que o mundo não poderia ser hoje...Tolstoi também sabia disso. Obrigada pela sua análise e Bom Ano!

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    1. O filme é um bocadinho "vídeo clip", mas visível. Não se perde o tempo e, depois, o texto de Tolstoi, mesmo mediado pelo script, faz o resto.

      Bom Ano!

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  3. Maria Correia: O problema está em que em breve 4 em cada 5 habitantes do planeta vai habitar uma cidade ...

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  4. Não vi o filme e já li o livro há décadas.
    Apenas me questiono: Amor adultero será a resultante de um amor "adulterado"?...

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    1. sem ler o livro nem ver o filme, direi que "não"

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    2. A adulteração deriva sempre de uma regra e não da própria coisa. A regra, que determina a classificação dos amores, é que pode ser, ela sim, adúltera.

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    3. então, diríamos, que não há regras ? ou abolem-se (sic?) as regras ?

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    4. Agradeço ambas as respostas, mas a minha(?)concepção de "adultério", se é que ele existe, transcende a história de Tolstoi.

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    5. Regras existem sempre, mas não quer dizer que uma regra, por o ser, seja moralmente boa. Aliás, é a regra que torna um determinada acção má. Bem, esta minha leitura é muito cristã. Substituição da Lei pelo amor. Por falar em abolir as regras, o cristianismo originário é o maior dissolvente de regras de que há memória. Nem a adúltera foi apedrejada como fazia parte da regra. O episódio é muito curioso por vários motivos, mas aquele que acho mais interessante é a parte final (Jo 8 10-11), em que Cristo a despede (Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais. Jo 8:11) como se dissesse, vai-te e que não me aborreçam com essas tretas, quem quer saber disso? E o texto deve ser lido no contexto. Ora logo a seguir, no versículo 12 e ss, Cristo vai tratar daquilo que é importante, vai ao templo anunciar quem ele é, a luz do mundo. Portante e quanto ao adultério, que não o aborreçam, ele tem mais que fazer e o importante é outra coisa. Pura dissolução da regra.

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    6. Oh!Diabo! Já me ia embora e tive de voltar atrás. É que Jesus Cristo dissolveu a regra de resolver esses casos à pedrada mas deu uma regra: "não peques mais".
      Mas, é verdade, que tem a ver a Anna Karenina com isso?

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    7. Não deu regra nenhuma, mas deu um conselho de prudência, o que é muito diferente. Mais, deu um conselho de forma casuística, para aquela pessoa e naquela situação, que é a de ter sido apanhada em flagrante. Aliás, na leitura que faço dos textos evangélicos nunca descubro um Cristo preocupado com as condutas sexuais, coisa que se tornou, depois de S. Paulo, uma obsessão para a Igreja.

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    8. C'mmon, o conselho não foi para não ser apanhada em flagrante. Falou em pecado coisa que está démodé. Mas respondendo à minha pergunta, acho que a luta da razão com o coração tem tudo a ver com Anna Karenina (AK), o Primo Basílio, o Crime do Padre Amaro, Mme Bovary, enfim, o tema querido do Romantismo. Só depois é que me apercebi que, se calhar AK cai nesse paradigma. Fico-me pelo Guerra e Paz.

      A Igreja, se esteve obcecada, foi com o desejo que a pessoa tivesse o maior prazer com o sexo. Até havia o débito conjugal (bom, aí era para o homem ...), se o casamento não é consumado não há casamento e, finalmente, que sexo sem preservativo é muito mais prazeiroso (!) do que com ele. Se houve Instituição preocupada com o prazer e a felicidade (sobretudo a eterna) foi a Igreja Católica.

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  5. Agradeçamos então a Tolstoi! Irei ver o filme...

    José Carlos Costa Reis, assim é, infelizmente, no meu entender. Teremos de desurbanizar o mundo e regressar ao ideal de ruralidade comunitária de Tolstoi...

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  6. O tempo, Maria, não volta para trás, como diz a canção ... No princípio do séc XX o planeta tinha 1000 milhões de pessoas, agora 6000 milhões. Não dá para fazer agricultura de subsistência ...

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  7. Concordo com Jorge Carreira Maia, Cristo nunca se preocupou com histórias de amores, a preocupação Dele era maior, era o Amor.

    Quanto à agricultura, José Carlos Costa Reis, haverá formas de dar para a subsistência, sim, há milhões de hectares abandonados, veja-se o que aconteceu em Portugal e o retorno de muitos ao campo e à horta...as cidades é que estão sobrelotadas e não providenciam nem trabalho nem pão para todos, especialmente sob este regime neoliberal em que a Finança se tornou predadora da Economia...e do Homem. Não é demais repetir que urge um novo paradigma.

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  8. Maria: novo paradigma? Qual?
    Eu diria que Cristo se preocupou com ambos.

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  9. Um paradigma humano. Cristo preocupou-se com o Homem, com a igualdade entre os homens, não com os vendilhões do Templo. A Humanidade seguiu os vendilhões e afastou-se do Homem. É isso que é preciso repensar o que, aliás, já está a ser feito. O problema é que o Templo se transformou num monstro e os vendilhões em vampiros.

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  10. Maria: não está a ser pessimista? Há tanta coisa boa na Humanidade! Por outro lado, Cristo levou os Homens a Deus. Só em Deus o Homem se encontra consigo próprio.

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  11. Em primeiro lugar peço desculpa ao Jorge Carreira Maia por ocupar este seu espaço para responder a José Carlos Costa Reis, mas, quando me interpelam, não costumo não responder...

    Sim, José Carlos Costa REis, há muita coisa boa na Humanidade, mas foi o pior que veio ao de cimo e nos domina. Sou uma pessimista com esperança, tendo em conta também que um pessimista é um realista...

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  12. É verdade que há tempos em que parece que o diabo anda à solta. Mas, no fim, estamos de acordo: eu também sou um pessimista com esperança.
    Um detalhe: todos os pessimistas dizem que são realistas. Nenhum optimista o faz.

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  13. Sim, eu também sou um pessimista com esperança.
    Curioso: um pessimista diz sempre que é um realista ...

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