quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Ratzinger - uma leitura do marxismo

David Lynch - A Bug Dreams of Heaven (1992)

Como o marxismo estava aparentemente alicerçado em métodos estritamente científicos, substituindo a fé pelo saber, e do saber fazendo prática, isso conferia-lhe o seu imenso fascínio. Todas as promessas não cumpridas das religiões pareciam ser resgatadas pela prática política cientificamente fundada. O desmoronar desta esperança tinha de trazer consigo uma enorme desilusão, que ainda está longe de ser ultrapassada. Parece-me perfeitamente concebível que novas formas de construção marxista do mundo se aproximem. Por enquanto ficou a perplexidade. O fracasso do único sistema cientificamente fundado de uma solução dos problemas humanos, só podia justificar o niilismo ou, em todo o caso, o relativismo. (Joseph Ratzinger, A Questão da Verdade e as Religiões (1996)

Não vale a pena sublinhar a generalidade do acerto da leitura efectuada por Ratzinger sobre o marxismo e o seu fim. Uma leitura clara e distinta, que mesmo os marxistas não poderão deixar de aceitar. Os dezassete anos que passaram sobre a apresentação do texto apenas vieram confirmar o seu acerto geral. Há no entanto uma ideia que parece ser contestável em absoluto, a ideia de que novas formas de construção marxista do mundo se podem aproximar. Julgo que esta profecia do então cardeal Ratzinger não se coaduna com as novas realidades instauradas pela desarticulação das sociedades de inspiração marxista e pelo triunfo das sociedades de mercado.

O marxismo não é uma doutrina científica como ele próprio pretende ser, mas uma interpretação crítica do mundo e um programa de acção. Nasceu e desenvolveu-se num determinado contexto social, económico e político, que desapareceu. O capitalismo que originou o marxismo extinguiu-se. As relações de trabalho, a posição relativa da economia e da política, a natureza geopolítica da comunidade internacional, tudo isso se alterou drasticamente. Os laços e os vínculos que existiam e que ligavam as várias classes foram desfeitos e as próprias classes sociais tornaram-se tão fluidas que parece estarmos na presença de correntes de águas ou massas de ar indiferenciadas, embora dirigindo-se para destinos muito diferentes e com forças e potências diferentes. 

São as próprias consequências do desmoronar do marxismo, o niilismo e o relativismo, que impedem novas formas de construção marxista do mundo. O marxismo pôde ser pensado e pôde construir sociedades sobre os alicerces sólidos do mundo burguês, mas essa solidez desapareceu, foi pulverizada pelo triunfo do capitalismo financeiro e da globalização. O velho fetichismo da mercadoria, pensado por Marx, foi substituído por formas mais voláteis e virtuais de fetichismo. Que as mercadorias tenham a aparência de uma vontade independente dos seus produtores é já pouco relevante, pois o trabalho tornou-se ele próprio irrelevante.

O sonho de uma construção científica da sociedade morreu no final dos anos oitenta do século passado e, para esse sonho, apesar da agonia da sua paixão, não haverá uma páscoa da ressurreição. Resta, de facto, o relativismo crescente e, o seu culminar, o niilismo. Isto não significa que não haverá lutas de classes, que não haverá conflitos, que não haverá dor e sofrimento. Haverá tudo isso, haverá, muito provavelmente, em quantidades cada vez maiores, mas não haverá um objectivo a alcançar ou um mundo ou paraíso a conquistar. 

À dor seguir-se-á a dor, por vezes com um breve e ilusório intervalo. A desordem crescerá e o marxismo precisa da velha ordem burguesa para fazer valer a sua. Haverá teorias libertadoras voláteis e efémeras, haverá ideologia que durará uma semana, haverá Grândolas e Ocuppy Wall Street, mas nada disso trará qualquer nova sociedade. Isso mostrará a indignação e tornará claro que há patifes e escroques e que ambos comandam o mundo, mas não haverá mundo onde não haja patifes e escroques no comando. Nos tempos que correm, patifes e escroques multiplicam-se à velocidade da luz, que é a velocidade em que se desloca o dinheiro, coisa que Marx nunca poderia ter pensado. Claramente, Ratzinger é um intelectual brilhante, mas não é um profeta.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

E a justiça por cá?

Rafael Sanzio de Urbino - A Justiça (1508-1511)

A condenação a prisão perpétua de um político grego ou a penhora dos bens do genro do rei de Espanha fazem-nos corar de vergonha. A nossa justiça é um brinquedo na mão dos poderosos, que encontram na lei o amparo para os seus desvarios. De facto, não somos como os espanhóis, nem sequer como os gregos. Somos uma sociedade falsificada, viciada, uma sociedade em que a lei é perversa, em que os valores foram truncados pela habilidade do legislador. O sentimento de impunidade é tão grande que ninguém quer saber da corrosão do carácter nem do ressentimento social. Tudo se desagrega nas mãos de uma casta que se apossou do país e que só pensa em vampirizá-lo impunemente, ao mesmo tempo que reduz a população a níveis miseráveis de existência.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Um circo de aldeia

Marc Chagall - Circus in Villlage (1969)

As eleições italianas vieram reforçar, através da distribuição de votos, a natureza irrelevante em que se está a tornar a democracia na Europa. Os eleitores não encontram alternativas em que confiem e votam nos animadores do grande circo mediático. Berlusconi, depois de todos os escândalos em que se viu envolvido, quase ganhou as eleições. Berlusconi, dono de quatro dos cinco canais de televisão italianos, e Beppe Grillo, um comediante convertido a político populista anti-sistema, somam mais de 50% dos votos. Na verdade, desde que o poder se transferiu do Estado para a economia, tudo se transformou num inenarrável circo de aldeia.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Europa, para que vos quero?

Elmer Bischoff - Europa (1957)

Segundo o Eurobarómetro, 40% dos portugueses não se sentem europeus (contra 59% que se reconhecem como tal), para além de haver uma percentagem considerável que não conhece os seus direitos, enquanto cidadãos europeus, nem quer conhecer. Há nestes números, por certo, factores conjunturais relacionados com a actual situação política e económica, bem como o papel que nela têm tido as instituições europeias. Seria, contudo, ilusório pensar que o sentimento não europeu é meramente circunstancial. Ele tem uma natureza estrutural, por vezes atenuada, e que se deve a uma longa história onde a possibilidade de sobrevivência esteve ligada à deambulação por esse mundo fora. Ser europeu, para muitos portugueses, foi um mero acidente, pois o seu lar repartia-se pela faixa ocidental da Península Ibérica e pelo vasto mundo onde a necessidade e a liberdade os levavam. Na verdade, a Europa sempre foi para nós demasiado grande e demasiado pequena. O mar que nos levava mundo fora era um obstáculo mais fácil de transpor do que a planície manchega e os Pirinéus.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Poema 52: As Quatro Estações - Outono

Jean-Baptiste Armand Guillaumin - Paisagem de Outono (1876)

52. As Quatro Estações - Outono

Quando chegas, o encanto retorna,
o mistério de todas as coisas acorda,
estende os braços
para o chão marejado de folhas,
e toca ao de leve os céus
para que uma sombra de cinza
venha em forma de nuvem.

Nesses dias, estamos em casa
e o mundo ameno desenha,
entre a luz macilenta,
rosas silvestres em jardins delicados.
Tudo se apresta para o grande sono
e o sol declina entre árvores.

As alamedas abrem-se para nós,
aqueles a quem o destino deu
a melancolia meditativa,
e mostram-nos o caminho a percorrer.

Ecoa ainda o cântico das vindimas,
mas somos homens da cidade
e não sabemos contar os dias
pelo calendário que a terra nos deu.

Oiço um murmúrio ao longe
e entoo os primeiros salmos.
Sento-me no vestíbulo do Inverno,
deixo que um lento esquecimento
se abra sobre a memória
e, sonâmbulo, entro na noite que acorda.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A austeridade está a falhar?

Jackson Pollock - Alquimia (1947)

Na vida normal, um resultado como este (Krugman refere-se à situação na Europa) seria considerado uma confirmação esmagadora da proposição "a austeridade tem um grande impacto negativo". (...) Parece seguro dizer que temos aqui um caso no qual teorias rivais fazem predições diferentes, as predições de uma teoria provam ser completamente erradas enquanto as da outra são totalmente justificadas  mas os aderentes da teoria que falhou, por razões políticas e ideológicas, recusa aceitar os factos. (Paul Krugman)

Estarão os austeritários errados como defende o Nobel da Economia Paul Krugman? Contrariamente ao que afirma, eles não estão errados. Estariam errados se a agenda deles fosse o desenvolvimento da economia e uma maior distribuição da riqueza entre as pessoas. A agenda dos governos europeus e de todos os adeptos da austeridade não é essa, mas destruir a natureza providencial dos Estados, desarticular as classes médias, criar enormes exércitos de mão-de-obra disponível, fazer descer drasticamente os salários, transferir o dinheiro das classes médias e baixas para os muito ricos, aproximar o mercado de trabalho dos níveis desprotecção asiáticos.

A grande questão é que esta agenda nunca é assumida. Esta é a agenda do governo de Passos Coelho, mas não foi com ela que ele se apresentou ao eleitorado. Ninguém diz às pessoas que tem o programa de as tornar drasticamente mais pobres. Mas nota-se a clara satisfação que o empobrecimento das pessoas provoca nos governantes. Mais, é muito interessante que a avaliação das políticas governativas, por parte da troika, seja cada vez mais positiva, enquanto o país se afunda e as pessoas desesperam. A verdade é que o objectivo é esse mesmo.

Não é apenas por razões políticas e ideológicas que os adeptos da austeridade não aceitam que estejam a falhar. Eles não estão a falhar, apenas são moralmente perversos e usam a mentira para manipular as populações.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Aspirinas

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

O retorno é uma palavra com imensa fortuna nos dias de hoje. Retornar à indústria, retornar às pescas, retornar à agricultura. O entusiasmo é tanto que há deputados desejosos de encontrar um novo engenheiro Sousa Veloso e ressuscitar o TV Rural. Depois de se terem criado condições para destruir as várias áreas económicas do país, assiste-se, nestes dias de completa impotência política e económica, ao crescimento de um coro de vozes a exigir o retorno ao que fizemos no passado. Muitas vezes os regentes do coro são os mesmos que dirigiram a orquestra, quando ela se desfazia daquilo que agora nos há-de salvar para sempre, isto é, a indústria, as pescas e a agricultura.

Esta desfaçatez e esta desvergonha nem se devem a uma maldade intrínseca das personagens, mas a uma acentuada e rápida perda de memória e, mais importante ainda, ao facto de ninguém saber o que há-de fazer com o país, para que ele faça alguma coisa e tenha um futuro à sua frente. Não há muitos anos, Portugal era inundado pela retórica da economia do conhecimento, pelo investimento em educação, os quais, por milagre da santa da Ladeira, nos iriam guiar aos primeiro lugares da inovação económica e da riqueza material. 

Todas estas fantasias não resistiram ao primeiro sopro de um vento agreste e mal disposto. Como um castelo de cartas, a economia nacional do conhecimento e o investimento em educação desabaram e andam pelas ruas da amargura. A ideia de retorno à mirífica época da industrialização, bem como às pescas e à terra, não passa de um exercício diletante e sem qualquer conteúdo sólido. Não é que não precisemos de indústrias. Não é que não precisemos de voltar ao mar e à terra, mas onde estão as condições objectivas que tornem isso possível? 

Como é que essa nossa futura indústria vai competir com a produção asiática? E onde iremos inventar uma frota de pesca para fazer frente às potências que se instalaram no mar enquanto nós vendíamos os barcos? Para além do vinho e do azeite (coisas que aprendemos a fazer bem), que produtos agrícolas os nossos parceiros da UE nos deixarão agriculturar para satisfazer os nossos arautos do retorno à terra? Mas mais que tudo isso, onde estão os capitais e os investidores dispostos a levar para frente tão imaculado projecto? 

O mundo mudou, as fronteiras estão abertas e nada indica que vão ser fechadas. Na verdade, estamos metidos numa alhada e ninguém, mas ninguém mesmo, faz a mínima ideia como sair dela. Proclamar bem alto a necessidade de retornar ao que acabou é como querer curar um cancro à força de tomar aspirinas.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A potência do símbolo

Maurice Denis - The Road To Calvary (1889)

Uma dos grandes poderes das religiões reside na sua carga simbólica. Os símbolos, ao substraírem-se sempre às meras interpretações lexicais e discursivas, propiciam imagens, metáforas e alegorias que permitem interpretar e dar sentido ao que os homens vão vivendo. Mesmo numa cultura secularizada como a nossa, os velhos símbolos do cristianismo mantém uma força e um potencial semânticos que não é de descurar. Por exemplo, o caminho do calvário nunca deixa de ser apropriado ao sofrimento dos indivíduos. O mesmo se pode considerar relativamente aos povos. As actuais políticas de austeridade, impostas por potências externas aos países em dificuldade, são autênticos caminhos do calvário para esses povos. Devemos, contudo, seguir o símbolo do calvário até ao fim. Apesar de não ser isso o que pretendiam aqueles que impuseram a cruz e o calvário, este tornou-se um momento de redenção e de libertação do jugo opressor (e não há jugo mais opressor que o da morte). O calvário que está a ser imposto às pessoas pode ter um efeito surpreendente e inesperado para quem o impõem. Pode ser que conduza à redenção e à libertação daqueles que agora são oprimidos. Talvez o calvário ajude as pessoas a libertarem-se de gente como Passos Coelho ou do inefável ministro Relvas.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Exercícios de desespero

Alexandre Séon - O desespero da Quimera (1890)

Grândola Vila Morena, de José Afonso, tornou-se um símbolo de impotência, de uma dupla impotência. As pessoas que a cantam contra a presença dos governantes simbolizam com ela o desespero que as atormenta - que nos atormenta - e também a sua impotência. Simboliza, por outro lado, a impotência dos próprios governantes que perderam o poder e a autoridade para mandar calar as pessoas. Tornaram-se estranhos ao seu próprio povo. A sua acção é entendida como sendo mandatada por um estranho e invisível poder exterior, a sua voz é, cada vez mais, a voz do inimigo. Na verdade, a sua voz é a da impotência, a nossa impotência e a dos próprios governantes. O tempo das quimeras acabou-se, e resta-nos o confronto entre desesperos, o conflito entre impotências. Agora é  Grândola, amanhã será outra coisa qualquer. Há que passar o tempo de qualquer maneira enquanto tudo se desagrega e se assiste, impotente, à demolição de um país.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Uma imensa burricada

Mateo Hernández - Asno

A Comissão Europeia confirmou uma coisa que quase toda a gente sabia. O benefício público com o ensino superior representa o triplo dos gastos. A educação superior não é um gasto, um desperdício, mas um verdadeiro investimento no bem das pessoas e no bem comum. É evidente que em Portugal temos outro ponto de vista. Investir em educação, em boa educação, é um desperdício, um luxo. Por isso, Portugal, juntamente com a Roménia, é o único país, mesmo entre os que estão em situação difícil, que está a cortar nesse sector. Percebe-se facilmente porquê. Há duas razões essenciais. A primeira está ligada à profunda convicção das nossas elites que a plebe não deve ser instruída. Não o dizem, mas pensam-no. Em segundo lugar, os principais dirigentes políticos sabem que o fundamental não é estudar, mas ganhar currículo nas juventudes partidárias No fundo têm razão. Com asnos por governantes, não se justifica que o povo não seja uma imensa burricada.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

As dificuldades da esquerda moderada

Beatriz Talegón (IUSY/Flickr)

O discurso da jovem espanhola Beatriz Talegón (pode ser escutado aqui) é interessante não porque ela seja a porta-voz da rua juvenil, como diz o Público, mas porque torna claras as dificuldades que a esquerda socialista, trabalhista e social-democrata passa nos dias de hoje. Herdeira de uma tradição reformista e de moderação, habituada a ser a alternativa plausível à direita dos interesses e da moral conservadora e à esquerda bolchevique e revolucionária, essa esquerda, com o afundamento do comunismo, ficou sem o seu antigo papel. A possibilidade de equidistância entre a apologia do capitalismo e a defesa da revolução social eclipsou-se e, com o processo de globalização intensificado com a Queda do Muro de Berlim e as suas consequências no bloco de Leste, emergiu apenas um eixo político, marcadamente liberal, em torno do qual tudo passou a girar. 

Como a equisdistância entre os dois antigos pólos assegurava a posição dessa esquerda, o desaparecimento de um deles, fez com que ela fosse atraída inevitavelmente pelo outro, tendo-se tornado num agente político útil ao processo de liberalização em curso. A grande questão não será, para esta esquerda, o de fazer revoluções em hotéis de 5 estrelas, como pensa a jovem e brilhante discursadora de Cascais (ver o vídeo no You Tube). A questão é encontrar um espaço político moderado e reformista sem se tornar numa espécie de esquerda radical nem ceder à tentação da subserviência ao dinheiro (coisa em que se tornou, nos últimos tempo, especialista). Para tal, teria de inventar um pólo forte, mas politicamente moderado, que se opusesse ao extremismo político vigente. Mas há muito que essa esquerda deixou de pensar e se concentrou nos votos e no dinheiro. Mais tarde ou mais até a jovem Beatriz Talegón perceberá a natureza das coisas.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Poema 51: As Quatro estações - Verão

Edvard Munch - Dia de verão (1904-1908)

51. As Quatro estações - Verão

As inúmeras páginas onde o Verão se escreve
abrem-se para a janela do esquecimento.
Incêndios na poeira das horas,
um rasto de destruição sobre as areias,
o naufrágio do coração ao meio-dia.

Cega-me tanta luz, cansa-me o Meridião,
a vitória faustosa, o fulgir do sol sobre as águas.
Aguardo a noite para abrir as janelas
e adormeço humilhado pelo calor,
a esperança da nuvem que não chega.

Não fora a vida precária,
não fora a promessa do Outono,
as horas seriam uma campânula de cinza,
a punição cruel de ver a luz,
um cansaço perdido em cada pétala.

Não sei a cor dos frutos estivais,
não sei em que leitos me deitei em cada Verão.
Oiço sussurrar as ondas pela praia,
sento-me à espera que os barcos cheguem
e no cais o silêncio anuncie as primeiras chuvas.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O insustentável peso da realidade

Öyvind Fahlström - Mitos como realidade

[Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo. Post de 20 de Fevereiro de 2010]

Esta imagem grandiosa de D. João II, apesar dos espinhos de que sempre se revestiu a sua evocação para alguns, remonta ao século XVI e às crónicas de Rui de Pina e de Garcia de Resende, tal como, aliás, a ideia de um tempo dourado, insistentemente retomada pela posteridade próxima e distante. No entanto, a ponderação crítica do que hoje se conhece sobre o tema obriga, naturalmente, a matizar a imagem corrente dos anos de ouro do reino de Portugal. Em boa medida, como antes se sublinhou, o pioneirismo da expansão portuguesa para territórios remotos explica-se pela pobreza relativa do reino e pela distância face aos centros de poder da Europa da época. O pequeno território ibérico, que nunca chegou a ser verdadeiramente uma grande potência, teve sobretudo margem de manobra no fim do século XV e no princípio do século XVI, isto é, nos anos anteriores à estabilização de potências europeias de uma outra escala, como foram as grandes monarquias dos Valois, em França, e dos Habsburgo, senhores de territórios por toda a Europa. [Nuno Gonçalo Monteiro, (2009). "Idade Moderna (Séculos XV-XVIII)", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 199-200]

Em primeiro lugar, refira-se o confronto entre o processo de mitificação do reinado de D. João II, (1455-1495) iniciado já pelos cronistas Rui de Pina (1440-1522) e Garcia de Resende (1470-1536), e a história crítica, a qual se sente obrigada "a matizar a imagem corrente dos anos de ouro do reino de Portugal." Esta imagem dilatada da nossa realidade, uma espécie de idade de ouro à qual se reporta continuamente o sentimento de decadência nacional, é um produto onírico. A sua construção não provém da análise racional dos factos mas de processos fundados na imaginação criadora que recria e engrandece a realidade que sempre foi mais ou menos diminuta ("O pequeno território ibérico, que nunca chegou a ser verdadeiramente uma grande potência").

Para além da importância efectiva de D. João II e da «viragem significativa» que representou o seu reinado, importa realçar como a reflexão sobre um momento decisivo da história nacional é, desde logo, uma des-realização do real e a produção de um sonho, sonho esse que acaba por ser o padrão contra o qual as gerações seguintes vão ser obrigadas a confrontar-se e a medir-se. A uma imagem hiperbólica do reinado de D. João II, a que se aliavam e continuaram a aliar outras imagens hiperbólicas de reinados anteriores, imagens referentes a um passado irrecuperável e não testemunhável, contrapunha-se e contrapõe-se a realidade efectiva, com a sua pequenez, a miséria geral, as elites prepotentes, egoístas e mais ou menos incultas, o estado de dependência e de impotência da maioria da população. A clivagem entre a imaginação sonâmbula do passado e o peso de cada um dos presentes, que se foram vivendo no devir da história, conduziu a uma patologia da vontade.

O ideal que se persegue em Portugal é de tal maneira elevado que a vontade, impotente para o realizar, se sente fragilizada. Nessa fragilidade, ela apenas encontra forças para subsistir, subsistência essa tão bem caracterizada na expressão popular "a gente desenrasca-se". Ninguém sabe, porém, que o ideal é o produto do delírio da razão. As próprias elites, mesmo se aparentemente cultas, acabam por ser o veículo fundamental desse delírio. Veja-se, por exemplo, as ilusões que perpassam na cabeça das elites políticas, das centrais às municipais, e que se consubstanciam em obras faraónicas e desenquadradas das reais necessidades do país e dos concelhos. No fundo, a vaidade dos indivíduos encontra um sólido álibi numa mitologia nacional construída desde há muito. Para além destas elites, que realizam os seus delírios com o dinheiro vindo dos impostos pagos pelos outros e, no caso actual, da União Europeia, a sociedade vive esmagada pelo sonho e incapaz de recentrar a sua vontade em formas de vida realizáveis e à medida das possibilidades de cada momento.

Os portugueses são vítimas de um excesso de imaginação, de uma imaginação presa ao passado. Como essa imaginação não é confrontada com o princípio da razão, ela é incapaz de olhar o presente e fazer dele a matéria da vida. A presença da realidade só pode, então, assustar-nos.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Bento XVI

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Vi na televisão leituras do pontificado de Bento XVI absolutamente vergonhosas. O pobre homem, se se desse crédito a essas palavras, não passaria de um idiota e o seu papado teria sido a coisa mais espúria acontecida à Igreja de Roma. Joseph Ratzinger tem três espécies de detractores. Fora da Igreja, aqueles que sempre estão contra tudo o que emana do Vaticano. Dentro da Igreja, os movimentos que gostariam de uma abertura radical às suas pretensões e aqueles que têm por modelo de Papa o pietismo sentimental de Karol Wojtyla. 

Bento XVI, ao contrário de João Paulo II, não é um político. É um intelectual puro, um homem dado ao estudo e à reflexão, um homem da Razão e não do sentimento. E é esta marca que ele deixa. As suas encíclicas são documentos profundos e esclarecedores. São textos que abrem caminhos de discussão e de meditação. Por outro lado, a preocupação com a Fé e a Razão fez-lhe lançar pontes tanto com outras confissões cristãs como com outras religiões, assim como permitiu incrementar o diálogo com a ciência moderna. Os encontros que estabeleceu com a Igreja Ortodoxa parecem-me mais do que meros encontros ecuménicos. Há neles um claro sinal de preocupação com a unidade dos cristãos para enfrentar os graves problemas trazidos pelo triunfo, nas sociedades ocidentais, das ideologias ultraliberais. 

Teve uma das mais espinhosas tarefas que couberam a um Papa, a de fazer frente aos escândalos de pedofilia na Igreja Católica. Foi no seu papado que o problema foi enfrentado e que, pela primeira vez, foram tomadas medidas severas para combater o hediondo fenómeno. 

Gostava, por fim, de sublinhar duas vertentes do seu pensamento e da sua acção. Em primeiro lugar, a questão da Europa. Bento XVI talvez seja a personalidade europeia que melhor noção tem da encruzilhada em que nossa civilização se encontra. Vale a pena ler os seus livros sobre o assunto. Depois, a grande atenção que é dada, durante o seu pontificado, aos problemas sociais, à degradação das condições de vida dos trabalhadores, aos pobres e desvalidos do mundo. 

Se o pontificado de João Paulo II representou a derrota dos regimes comunistas e o florescimento de uma piedade popular de cariz sentimental, o de Bento XVI é um pontificado menos espectacular, mais secreto, mas talvez tenha lançado os alicerces para enfrentar os excessos introduzidos pelas sociedades de mercado e para promover o diálogo com os homens e as mulheres modernos, com aqueles que crêem na autonomia da razão e na autodeterminação da vontade. Muitas vezes o que não se vê é mais determinante do que aquilo que todos vêem.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Um liberalismo policial

Frantisek Kupka - La Libertad. Portada para L'Assiette au beurre (1906)

Parece que Francisco José Viegas (FJV) escandalizou meio mundo ao dizer o que faria, à saída de um estabelecimento, se um agente tributário o abordasse para saber se ele tinha pedido factura. O desabafo blogueiro de FJV compreende-se perfeitamente. Esta coisa de transformar o país numa agência de fiscais das finanças, fiscalizados por outros fiscais de finanças, só pode sair de cabeças ociosas e ignorantes. Na verdade, há uma parte da economia que passa ao lado da tributação. Ora o papel do Estado é resolver o assunto e não criar uma sociedade policial, onde todos vigiam todos, para assegurar que o café que tomo pague imposto. O que é interessante no meio de tudo isto é a propensão burocrática e totalitária dos nossos governantes liberais. Tanto querem libertar a sociedade que estão a criar um estado policial. Um liberalismo policial

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Poema 50: As Quatro Estações - Primavera

Vincent Van Gogh - Park at Asnières in Spring (1887)

50. As Quatro Estações - Primavera

A exuberância da vida trazida pela cor,
a transitoriedade apagada pela esperança,
promessas de frutos e água pura,
uma boca que te espera ao entardecer.

Ouve-se o zumbido dos insectos,
a música encobre a distância,
e tudo refulge batido pelo musgo solar.

Na beleza assombrada do dia,
cresce um ruído,
o latir dos cães no fundo do jardim,
o artifício de um deus no firmamento.

Não é tempo de interrogações.
Deixa o corpo despir-se para a luz,
entregar-se ao poder da claridade,
adormecer no cansado mistério 
de um mundo que se abre e recomeça.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Decomposição com duas linhas

Piet Mondrian - Composition with two lines (1931)

Felizes aqueles que nascem apenas com uma linha pela frente. Seguem-na até que a morte chegue. Há outros menos felizes, mas ainda assim felizes, que possuem inúmeras linhas. Divertem-se saltando de linha em linha. A verdadeira maldição é daqueles que nascem com duas linhas. No início nem dão por isso, mas com o tempo as linhas afastam-se e o pobre desgraçado vive estilhaçado entre ambas, tentando desesperadamente não perder qualquer delas. Haverá quem pense ser o problema de fácil resolução. Basta que abandone uma das linhas e se entregue todo e completo à outra. Puro devaneio. Não apenas não há como decidir qual deve ser abandonada, e se essa hercúlea tarefa é conseguida, por alguns instantes, logo uma intensa nostalgia se inscreve naquele lugar a que chamamos, por comodidade, coração. Nada a fazer, logo volta às suas duas linhas originais, como a duas amantes que não consegue amar nem abandonar. Cada um tem o destino que tem, e aquele que nasceu com duas linhas apenas pode aceitar o rasgão que a vida lhe impôs.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Bento XVI, um gesto seminal

Para lá das múltiplas especulações que se disseminam na esfera pública, umas sobre os reais motivos de renúncia do Papa e outras sobre os cardeais em melhor posição para lhe suceder, o gesto de Ratzinger tem um interesse especial para o exercício futuro do poder no Vaticano, que é, como se sabe, uma espécie de monarquia electiva. Apesar de haver outros casos de renúncia (cinco segundo o Expresso), a prática consolidada ao longo da História da Igreja Católica não é a de Bento XVI. O último caso de renúncia foi há 600 anos. O gesto do actual Papa abre o caminho para que questões de eficiência e eficácia política (na gestão dos assuntos da Igreja, claro) sejam tidas em consideração por aquele que ocupa o lugar de Pedro. 

O que merece relevo é a novidade (embora não inédita) introduzida. E a novidade introduzida é a de uma outra atenção ao kairos, ao tempo propício, e ao papel da consciência de si. Qual é a hora em que um Papa deverá dar lugar a outro? Qual o tempo certo? Uma instituição como a Igreja Católica rege-se por uma longa tradição. Para ela, o ensinamento de Tomasi di Lampedusa, em O Leopardo, é fundamental. É preciso que tudo mude para que tudo se mantenha. Ora Ratzinger, com o seu gesto, sublinha que o tempo da natureza (o tempo da morte natural de um Papa) e o tempo da Igreja não são os mesmos. 

No actual estado da cultura humana e perante os desafios que a humanidade e a Igreja Católica defrontam, a necessidade de mudança, para que o essencial permaneça, é muito mais rápida do que outrora. A vida pode prolongar-se por muito tempo num corpo e numa mente debilitados, e a acção governativa da Igreja pode perder eficácia. De uma forma mais teológica, o que Bento XVI, com o seu gesto de renúncia, sublinhou foi que a acção do Espírito Santo pode ser deslocada da esfera da natureza para esfera da consciência de si e do exame crítico das suas possibilidades e limitações (pode ser que alguém veja nisto uma concessão ao livre-exame protestante, mas a verdade é que este auto-exame crítico do Papa se inscreve na sua infalibilidade). Tudo isto era já conhecido em potência, agora tornou-se conhecido e vivificado em acto. O gesto do Papa é importante por isso e, também, porque abre um precedente que pesará sobre os vindouros, que serão confrontados, na liberdade da sua consciência, com a eficácia da sua presença, a partir de determinada altura, na cadeira de S. Pedro. Um gesto seminal.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

A ruína. Conto de edificação e moralidade

Lluis Rigalt - Ruínas (1865)

Primeiro, foram apenas uns grãos de areia que se soltaram aqui e ali. Quase sem se dar por isso, a caliça começou a cair das paredes. Houve quem desconfiasse, mas o mestre-de-obras da altura, sorriu e disse, tranquilizador, que não havia problema. Era mesmo assim. Era preciso que a caliça fosse caindo. Uma espécie de prevenção, acrescentou. Bastava retocar e repintar, a solidez do edifício era inquestionável. Quando as paredes abriram as primeiras frestas, houve discordância de vozes. Os que não gostavam do edifício, sem coragem até ao momento, sentiram que começara a chegar a sua hora. Chamaram arquitectos amigos e sugeriram a necessidade de o derrubar. Aquele espaço seria ocupado de forma mais competitiva por outra coisa e outras gentes. Sem que se tornasse visível, estas vozes, por um estranho malabarismo desconhecido da física, emitiam ondas sonoras em certos comprimentos que afectavam os alicerces do edifício. Pensaram que seria difícil derrubar a casa se ela se mantivesse com uma aparência sólida. Muita gente se abrigava nela. O vozear, sempre naquele estranho comprimento de onda, não mais parou. Quando as primeiras telhas caíram, os que não gostavam do edifício sorriram, enquanto alguns moradores, poucos entre os muitos que havia, tiveram o primeiro vislumbre do destino. Falaram alto, mas riram-se deles. No dia que caíram duas varandas, os moradores entraram em pânico. A intervenção dos bombeiros não foi, longe disso, apaziguadora. A medo, disseram que talvez fosse altura de evacuar o edifício. Para onde vamos, onde poderemos ter um abrigo? Foi a interrogação dos moradores. Os que não gostavam do edifício, sorriram. O novo tempo tinha chegado.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

A natureza arquitectural da filosofia

Frantisek Kupka - Arquitectura filosófica (1913-1923)

Pergunta-se, por vezes, que relação pode haver entre a realidade da vida e o pensamento filosófico, tão comprometido este com a abstracção dos conceitos e a validade dos argumentos. A pretensa obscuridade da questão desvanece-se numa simples analogia. A filosofia é uma arquitectura da vida. Nos edifícios, nas praças, nas cidades, o que nós vemos são volumes, espaços preenchidos ou vazios, materiais organizados. Sob a camada material, porém, reside o trabalho arquitectónico, o exercício, por vezes ingénuo ou adulterado por interesses não estéticos, da concepção. A filosofia não passa de um trabalho de arquitectura, mais despojado ainda do que o do arquitecto, por isso mais abrangente, mais universal e também mais vital. Se na arquitectura se concebe o espaço, na filosofia é o continuum espaço-tempo, que estrutura a existência, que é conceptualizado e pensado segundo múltiplas modalidades, metafísicas, epistemológicas, éticas, estéticas. Um trabalho arquitectónico.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Um caso sintomático

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

A nomeação de Franquelim Alves, antigo administrador da Sociedade Lusa de Negócios, entidade que tutelava o BPN, para secretário de Estado do Empreendedorismo (uma secretaria de Estado consagrada à irrelevância) é um caso sintomático da natureza do poder político em Portugal. O novo governante, diga-se, não é acusado de nada, nem sequer é alguém técnica ou moralmente diminuído. O problema não está nele, mas naqueles que o escolheram e o nomearam. 

Como todos sabemos, o caso BPN está a arrastar a vida de milhões de portugueses para um verdadeiro inferno. Não é a única causa da situação em que se encontram as finanças públicas, mas é uma causa com elevado potencial de degradação dessas mesmas finanças. Se fôssemos governados por pessoas que compreendessem a natureza do poder político em democracia, não seria possível que uma personalidade ligada a um assunto tão tóxico quanto o BPN fosse chamada à governação. Não apenas porque se encontra à partida politicamente diminuído – nunca deixará de ser, aos olhos da opinião pública, um tipo do BPN – mas por respeito pelos cidadãos, que se sentirão desconfortáveis ao serem governados por alguém que administrou aquilo que, sem qualquer proveito próprio, lhes custa os olhos da cara. 

Tudo seria diferente se os governantes compreendessem uma coisa muito simples: eles são servidores do povo, por quem são pagos e a quem devem respeito. Esta noção, nos países nórdicos, por exemplo, é levada à letra. Tanto cidadãos como políticos sabem qual é o lugar de cada um na escala hierárquica. E esta é muito clara. Os cidadãos estão em cima e os políticos, enquanto políticos, são meros servidores desses cidadãos. Estando isso claro, não haverá lugar para truques nem para situações obscuras, muito menos para situações de claro desrespeito pelo sofrimento das pessoas. 

Em Portugal, todavia, os governantes (não apenas estes, sublinhe-se) estão acima dos cidadãos, a quem desprezam e enganam sempre que podem. Durante as campanhas eleitorais, esta gente arrasta-se boçalmente por ruas e praças, bajula os eleitores, beija as criancinhas ranhosas e dança com as peixeiras. Eleição obtida, tomam banho e vestem fato novo, e de bajuladores boçais tornam-se em maiorais impiedosos, que ocupam o poder para dar largas à sua vontade. O poder em Portugal não é um lugar de serviço, mas o sítio usado por uns egos, mais ou menos exaltados, para realizarem a sua vontadezinha despótica, com a esperança de se concubinarem com a história pátria, essa grande rameira que se deita com qualquer um.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Pauline Réage, História d'O




Em 1954, Anne Desclos, sob o pseudónimo de Pauline Réage publicou História d’O. A revelação da verdadeira autoria demorou quarenta anos. Segundo a autora, a escrita do romance foi uma resposta a Jean Paulhan, com quem mantinha um caso. Este era um admirador de Marquês de Sade e ela, perante o desafio e o espanto de Paulhan, escreveu um romance sadiano em forma de uma série de cartas de amor. Há três coisas que são absolutamente inúteis para a leitura do texto de Anne Desclos. A primeira é a classificação segundo o género literário. Por norma, classifica-se História d’O como literatura erótica. Ora a literatura é literatura e nada mais do que isso. A segunda é o culto que a subcultura BDSM (Bondage/Discipline, Sadism/Masochism) presta ao livro. A terceira é a crítica feroz que a obra recebeu dos movimentos feministas.

Uma abordagem possível do livro seria confrontá-lo com uma das mais importantes obras de filosofia política. Uma obra escrita em 1548 (quatro séculos antes) e que analisa o mecanismo de submissão ao tirano. O Discurso da Servidão Voluntária, de Étienne de La Boétie, sustenta que aquilo que mantém um político (e um político, seja qual for a forma como ascendeu ao poder, é sempre um tirano) no poder nunca é a boa governação, nem sequer é o medo da violência, mas o hábito de servidão, estruturado pela religião e pela superstição, existente no povo. Este grau de obediência é superficial e diz respeito aos ignorantes. O segredo de toda a dominação reside, contudo, em fazer participar voluntariamente os dominados na sua dominação. É o que acontece com aqueles que envolvem (a corte) o tirano. Estes têm o dever não apenas de obedecer como de antecipar os desejos do tirano (para uma visão geral aqui; a obra em francês aqui; a obra em inglês aqui).

O que a História d’O faz é explorar o desejo de submissão e tornar evidente a natureza sexual desse desejo de servidão voluntária. Note-se que não há na obra a mais leve referência à política ou a uma meditação sobre esse fenómeno. Esta ausência completa do fenómeno político é absolutamente suspeita. O é uma fotógrafa parisiense que é levada, com o seu consentimento, para um palácio em Roissy, onde é sujeita a uma dura aprendizagem da submissão e da disponibilidade. Submissão e disponibilidade para um conjunto de homens, aparentemente pertencentes a elite social, mas também aos criados. A educação passa por vários estágios onde é amarrada, amordaçada, chicoteada, mas também onde está disponível, para qualquer um, solitário ou em grupo, praticar com ela (seria mais exacto dizer praticar nela) sexo vaginal, oral, anal.

Está-se perante uma verdadeira ascese, decalcada, de certa forma, das asceses monásticas que visavam a mais perfeita obediência do monge ao seu superior. A vertente religiosa do texto não deve ser posta de lado. O que O procura é o total abandono de si e a entrega a um senhor. Quando vai para Roissy é o desejo de se submeter a René, o seu amante. Mas quando sai de Roissy (onde, digamos assim, foi iniciada nos pequenos mistérios), René dá-a, literalmente, a Sir Stephen, um senhor mais dominador e exigente na submissão. Esta dominação e esta exigência é sempre reforçada pela anuência de O. O clímax da submissão é o momento em que, em casa de Anne-Marie, é treinada para ser marcada a ferro quente, como os animais, e receber, nos lábios vaginais, uma espécie de piercing onde consta as iniciais de Sir Stephen. Ela agora é pura coisa, puro objecto (iniciação aos grandes mistérios).

Leituras que sublinhem o masoquismo da personagem ou a sua transformação em puro objecto de satisfação do desejo masculino, tal como nós os entendemos, são possíveis, mas julgo que pouco pertinentes. Não é o prazer de sofrer que move O, nem o desejo de promover o prazer dos homens. É algo mais fundo e fundamental. A vontade tem o projecto de se autodestruir. Tornar-se coisa ou objecto é renunciar a ser pessoa, é renunciar a ser agente, é entregar-se à pura passividade. Mas há mais do que isso, há algo mais escandaloso do que isso. Para o compreendermos teremos de recuar às concepções tradicionais que o Iluminismo obliterou.

Na generalidade das tradições religiosas e sociais, a essência do homem é vista como sendo activa e a mulher como passiva. O escândalo do texto de Anne Desclos (Pauline Réage) está na reivindicação desse estatuto tradicional para  mulher. A pura passividade perante o homem. Que essa reivindicação seja feita por uma ascese particularmente violenta abre para uma discussão entre duas possíveis interpretações. A primeira interpretação (uma interpretação progressista) dir-nos-ia que a passividade da mulher tradicional seria um exercício de uma longa violência consentida. Mas a segunda interpretação (uma interpretação tradicionalista) permite pensar num outro sentido. As sociedades modernas são incapazes de perceber a essência passiva das mulheres e só o exagero da violência consentida e da dominação requerida permite acordar os modernos para a verdadeira natureza da mulher (não admira que as feministas se sentissem indignadas).

Podemos voltar à servidão voluntária de La Boétie. O poder político é possível porque há nos seres humanos uma passividade fundamental que não apenas permite a existência do poder como o requer. Essa passividade reside na renúncia da vontade a si própria, reside na vontade da não vontade, para que um princípio activo, uma potência, possa fecundar a terra e a vida brotar daquilo que, por vontade própria, se aniquilou. É por isso que a ideia de que o soberano é o povo é sentida, apesar de toda a retórica em contrário, como uma incongruência. O que a História d’O sublinha, por outro lado, é que a natureza da sexualidade dos seres racionais implica uma potência activa e uma passividade fundamental. No campo do amor, não há lugar para o Iluminismo nem para a complacência. É preciso que haja poder e a servidão voluntária da mulher é ainda um estratagema da natureza para que esse poder se manifeste e a vida triunfe. Mas isto é um discurso que nós, os modernos, já não entendemos. 

Pauline Réage (2012). História d'O. Alfragide: Edições Asa. Tradução de de Luísa Saraiva.