domingo, 31 de março de 2013

Meditações dialécticas (4) Felicidade e Liberdade

Christian Bérard - Oedipus and the Sphinx (1932)

Cada época é uma esfinge que se precipita no abismo logo que o seu enigma seja resolvido. Heinrich Heine.

A história mundial não é um solo onde cresça a felicidade. Períodos de felicidade são páginas vazias na história do mundo. George W. F. Hegel

Estas duas citações fazem parte de um grupo de quatro que Tony Judt antepõe ao prefácio do seu livro Pós-Guerra. Não é a obra de Judt que aqui nos interessa, mas o curto-circuito provocado pela aproximação das citações de Hegel e de Heine. Comecemos por Hegel. O que nos diz vem na sequência da constatação kantiana de que a finalidade da Razão não é a felicidade. Hegel desloca a constatação kantiana do âmbito da moralidade para o da história do mundo. A história do mundo não é mais do que o devir da Razão, a sua autocompreensão como Absoluto. Esse devir é obra do negativo, da destruição de um mundo. Porque a história é esse trabalho do negativo não é solo onde a felicidade possa ser cultivada. A proposição final de Hegel é lapidar: Períodos de felicidade são páginas vazias na história do mundo. Apesar de lapidar, a frase é ambígua. Pode significar que a história não é lugar onde a felicidade possa emergir, mas também pode querer dizer que são páginas por escrever, que um dia se poderá realizar no mundo a felicidade dos homens. Foi assim que Marx a entendeu. A nossa experiência histórica tende a corroborar uma visão muito mais céptica que a de Marx.

Perante a frase de Heine, poderemos perguntar qual o enigma da nossa época cuja resolução a obrigará a precipitar-se no abismo da história. Cruzando os textos de Hegel e de Heine, dir-se-ia que esse enigma é a fonte da infelicidade da época histórica que nos cabe viver. Também a esfinge, aquela que Édipo obrigou precipitar-se no abismo, era fonte de infelicidade. A nossa época é aquela onde a liberdade se tornou no motor essencial do desenvolvimento histórico. É ela que alimenta o negativo que opera a destruição histórica a que assistimos. O facto de percebermos que o enigma que a nossa época coloca é o da liberdade isso não significa que a esfinge – isto é, os tempos que estamos a viver ou a nossa época – esteja pronta a precipitar-se no abismo. O enigma da liberdade está longe de estar resolvido. A liberdade foi festejada e foi vituperada. Hoje a liberdade é incensada, não havendo, mesmo entre os tiranos, quem não lhe preste culto. Mas ela está muito longe de ser compreendida na sua essência. A resolução de enigma da liberdade passa pela resposta a duas questões: 1. O que é a liberdade? 2. Por que razão a liberdade é fonte de infelicidade?

Para quem ache, porém, que a resolução do enigma da liberdade seja o caminho para que se inscreva a felicidade nas páginas vazias da história, recordo o destino do sagaz Édipo. Fugiu à infelicidade derrotando a esfinge, obrigando-a a precipitar-se no abismo, e abriu caminho para um novo tempo de infelicidade.  

sábado, 30 de março de 2013

Meditações dialécticas (3) - O discurso literário e a verdade do mundo

Paul Klee - Open Book (1930)

Nos textos literários não existe qualquer referência, nenhum significado distinto do sentido que se lhes dá. As figuras e metáforas usadas nesses textos não são mais do que aquilo que o autor comunica ou evoca por meio delas, ou o que emerge através de tal evocação. (Robert Spaemann, El rumor inmortal, p. 17)

A tese de Spaemann radica numa crença realista sobre o mundo a que um enunciado científico ou do senso-comum se referiria. De forma diferente desses enunciados, os literários não se refeririam ao mundo mas apenas a um universo interior do autor que assim se expressa e é comunicado. Duas objecções.

Em primeiro lugar, convém salientar que os materiais que a literatura usa - a linguagem e as suas estruturas diversas - são materiais intramundanos e, só por isso, eles não só se referem ao mundo como são partes do mundo. A linguagem é uma das estratégias auto-referenciais do mundo. Sendo assim, as obras literárias, as metáforas e todas as outras figuras têm não apenas um sentido, como um significado que se refere, por estranha que possa parecer a referência, ao mundo.

Em segundo lugar, está pressuposto na tese de Spaemann que haverá referências ao mundo cuja aceitação não implica a suspensão das descrença (para usar a velha expressão de Coleridge). Dito de outra maneira, haverá descrições do mundo - por exemplo, as científicas - que se referem efectivamente a algo real, enquanto as ficcionais (literárias, mas também pictóricas, musicais, etc.) remetem para uma dimensão sem realidade ou de realidade ontologicamente diminuída. O problema é que os enunciados, mesmo os científicos, remetem para outros enunciados que são apresentados como justificativos. Desse ponto de vista, são ficções (Popper chama-lhe conjecturas) que funcionam enquanto não são falsificadas. Ao serem conjecturais estabelecem um ponto de contacto com as ficções artísticas, não se descortinando razões para afirmar uma diferença de qualidade entre enunciados científicos e ficcionais, pois todos são ficcionais.

Se se considerar as duas objecções, estamos perante dois discursos que são estratégias auto-referenciais do mundo, não havendo razão para distinguir entre um discurso que visa a verdade do mundo e outro meramente imaginário sem conexão com a realidade, não podendo aspirar ao estatuto de verdade.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Sócrates, o retornado


Sócrates retorna à intervenção pública e política porque quer ser Presidente da República. Contrariamente ao que muitos pensam, Sócrates tem algumas possibilidades de conseguir realizar o seu objectivo. Recorde-se o discurso de derrota nas últimas eleições. Foi, técnica e politicamente, um excelente discurso. Não havia ressentimento nas palavras nem se acusava ninguém. Tinha ido à luta e tinha perdido, nada mais natural em democracia. O discurso era o primeiro passo para o novo objectivo. 

O segundo passo foi retirar-se. A vozearia contra ele teve o silêncio como resposta. A única intervenção que fez foi para dizer o óbvio, a dívida não se paga mas gere-se. Sócrates deixou que o governo e Passos Coelho se enterrassem, deixou que os portugueses fizessem a experiência do que a direita tinha para dar. O terceiro passo vai começar na televisão. 

Porquê agora e não daqui a uns meses? Este é o momento em que toda a gente já percebeu que as opções do governo falharam. Toda a gente compreendeu que o ir além da troika de Passos Coelho e de Gaspar está a destruir o país. Sócrates não deixará de lembrar aos portugueses que foi obrigado a pedir o resgate porque o PEC IV foi derrotado por uma coligação entre a direita e esquerda radical. Estando isso percebido, Sócrates posiciona-se para ocupar o lugar de candidato na área socialista. 

Terá Sócrates hipóteses de chegar à Presidência? Sócrates tem muitos anticorpos à direita e à esquerda. Mas o caminho para Belém está mais aberto do que parece. O descalabro do governo, os silêncios de Cavaco, a impotência de Seguro, o desprezo com que os portugueses continuam a ver o PCP e o BE e o aturdimento geral ajudam. Partido Comunista e Bloco de Esquerda não têm qualquer hipótese de apresentar um candidato ganhador. Mesmo que odeiem Sócrates, como odiavam Soares, quando chegar à hora da verdade terão de engolir o sapo. Restam os verdadeiros concorrentes ao lugar, Guterres, na área socialista, e Durão Barroso, na direita. 

Sócrates tem uma vantagem sobre eles. Dirá que nunca fugiu às dificuldades, que não trocou a governação do país por um lugar ao sol no estrangeiro. Dirá que sempre deu a cara pelas suas ideias e opções. Depois, há que distinguir entre a opinião publicada, hoje muito desfavorável, e a opinião pública, mais maleável e desorientada. A essa, onde residem os votos, Sócrates vai começar a trabalhá-la semana a semana. Por muito que não se goste da personagem, é preciso perceber que Sócrates ainda não está morto, não tem medo da política e o mito de D. Sebastião está agora do lado dele. 
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P.S. O artigo foi escrito antes da entrevista de Sócrates à RTP. O facto de o ex-primeiro-ministro ter dito que não era candidato a nada não altera a convicção de que ele quer ser candidato presidencial. A tese não é original, mas explica a razão por que ele se dispõe a enfrentar todas as resistências negativas que a sua pessoa gera.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Meditações dialécticas (2) - A questão liberal e o contrato

William Allan - Slave Market at Constantinople

No sistema da natureza, o homem (homo phaenomenon, animal rationale) é um ser de escassa importância e tem com os restantes animais, enquanto produtos da terra, um valor comum (pretium vulgare). Mesmo o facto de ter de ter sobre aqueles a superioridade do entendimento e de poder propor-se fins a si próprio só lhe dá um valor extrínseco pela sua utilidade (pretiun usus), a saber o valor pelo qual o homem é superior a um outro, isto é, um preço, como o de uma mercadoria, no comércio com estes animais considerados coisas, comércio onde ele, no entanto, tem um valor ainda inferior ao meio universal de troca, o dinheiro, cujo valor é, por essa razão, denominado eminente (pretium eminens).

Somente o homem, considerado como pessoa, isto é, como sujeito de uma razão prático-moral, está a cima de todo o preço; pois que, como tal (como homo noumenon), não pode valorar-se apenas como meio para fins alheios, mas sim como fim em si mesmo, isto é, possui uma dignidade (um valor intrínseco absoluto) mediante a qual obriga todos os demais seres racionais do mundo a guardar-lhe respeito, podendo medir-se com qualquer outro desta espécie e valorar-se em pé de igualdade. (Kant, A Metafísica dos Costumes - Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude III. Do servilismo, § 11.)

O liberalismo contém no seu cerne uma contradição que parece irresolúvel. Foi essa contradição que gerou no seio do Iluminismo a cisão entre os programas iluministas liberal e marxista. Os termos da contradição, não a contradição, encontram a sua exposição na longa citação de Kant feita acima. Do ponto de vista teórico, o pensamento liberal valoriza a iniciativa do homem como expressão da sua liberdade, e é esta liberdade que está no centro da dignidade dos homens, e que lhes confere a dignidade que os faz possuir um valor intrínseco, merecedor do respeito por parte dos outros, e permite considerá-los como iguais entre si.

A relação entre seres racionais, dotados de liberdade, é mediada pelos contratos, onde as partes se comprometem livremente em pé de igualdade. O problema surge na ideia subreptíca de que os contratos são formas neutras de acordo em que os contratantes estão em pé de igualdade. Estando a dinâmica la liberdade ligada ao poder de iniciativa, o que acontece é que, no jogo mundano dos interesses, as partes contratantes combinam em modos diferenciados a liberdade e a necessidade, apresentando-se, no momento do contrato, já assinalavelmente desiguais, e com capacidades negociais diferentes. Sendo assim, o contrato não é o resultado de duas iguais liberdades, mas a estratégia como uma liberdade mais poderosa aniquila, ou diminui, outra liberdade mais frágil. O contrato legitima e santifica socialmente a violência da imposição da liberdade mais forte.

O resultado do contrato e dos pressupostos liberais é a cisão dentro da comunidade humana, entre pessoas que possuem um valor em si mesmas, e uma dignidade merecedora de respeito, e animais racionais de escassa importância, cujo valor é um valor de uso, que têm preço, como assinala Kant, e por isso têm uma valor inferior ao dinheiro, o valor universal de troca, como também refere Kant. Que isto é assim, basta olhar para o que se está a passar em Portugal e na União Europeia. As crises financeiras foram poderosos reveladores de uma dinâmica interna do liberalismo, a qual subverte os próprios princípios liberais, que se revelam a milhões de pessoas como a origem da aniquilação da sua própria dignidade.

Marx compreendeu desde muito cedo a natureza contraditória do liberalismo. A resposta que deu, contudo, foi a mais terrível das respostas: aniquilar todas as liberdades e reduzir o homem ao reino da pura necessidade, como se daí pudesse um dia chegar o reino da liberdade igualmente partilhado por todos. A resposta política marxista já mostrou que não é a solução para a contradição existente no pensamento liberal. Com a queda do Muro de Berlim, disseminaram-se duas ideias. A primeira, diz-nos que o marxismo não é uma solução viável para manter a dignidade humana. A segunda, diz-nos que não há qualquer problema com o liberalismo, que ele é o fim da história, por esta ter atingido nele um estado de perfeição inultrapassável. A primeira ideia é verdadeira. A segunda é absolutamente falsa, como estamos a constatar todos os dias. O problema que o olho clínico de Marx detectou continua a existir e a espalhar o mal no mundo, destruindo, todos os dias, milhões de liberdades que, na sua fragilidade, não conseguem suportar o violento embate das liberdades dos mais fortes. Este é o problema central da filosofia prática.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Poema 56 - Os sóbrios alvores da madrugada

Javier Clavo - Amanecer (1978)

56. Os sóbrios alvores da madrugada

Os sóbrios alvores da madrugada,
essa hora sem definição
em que o mundo indeciso
abandona a noite e o sono
e se entrega à lassidão da vida.

Contemplo a clara obscuridade
e espero que chegues
do mundo antigo do sonho,
rosa invisível cantada
na memória de cada pétala perdida.

Quando chegas com voz outonal,
olho em silêncio a queda das folhas
e traço uma fronteira de seda
para que o teu corpo ao atravessá-la
se cubra na luz do desejo.

Tens ainda a última palavra,
antes que irrevogável o dia chegue.
Penumbra azul e nevoeiro,
súbita sombra onde arde
a deslumbrada voz do coração.

terça-feira, 26 de março de 2013

Um problema de desejo

Emil Nolde - Couple and Redheaded Child

A Europa está infectada por uma estranha falta de desejo de futuro. Crianças, o nosso futuro, são percebidas como uma ameaça ao presente, como se elas tirassem qualquer coisa às nossas vidas. As crianças são vistas, de preferência, como um compromisso, e não como fonte de esperança. Há uma clara comparação entre a situação actual e o declínio do Império Romano. Nos últimos tempos, ainda funcionava como uma grande estrutura histórica, mas na prática ela apenas subsistia segundo modelos destinados a falhar. A sua energia vital estava esgotada. (Joseph Ratzinger (2006), Without Roots - The West, Relativism, Christianity, Islam. Kindle Edition, loc. 664-668)

O interesse deste diagnóstico de Ratzinger, efectuado já no ano de 2004, não reside na comparação entre a moderna Europa e os dias finais do Império Romano - comparação que se banalizou e, nessa sua trivialidade, deixou de ter qualquer efeito sobre as forças de preservação e de conservação do espírito europeu - mas na combinação entre os temas do desejo e do futuro. Uma leitura apressada colocará o problema do futuro na questão demográfica e no sentimento de que as crianças são percebidas como meros compromissos que inibem a liberdade individual e não como fonte de esperança. Isso não é falso, mas não capta o essencial do texto.

O diagnóstico de Ratzinger coloca o problema do declínio europeu numa perturbação do desejo. Esta perturbação nem sequer é já uma parafilia, um desvio do desejo para objectos estranhos à normal orientação desse mesmo desejo, mas numa falta de desejo, numa estranha falta de desejo. Este conceito de desejo é esclarecido na parte final do texto citado, aquando da comparação com os tempos últimos do Império Romano. Esta falta de desejo significa que a energia vital está esgotada, como se o desejo fosse um excesso criador que, agora, desapareceu. De forma absolutamente inesperada, o então cardeal Ratzinger ecoa a grande crítica nitzscheana à cultura ocidental, à sua perda de vitalidade, de que o platonismo e o cristianismo (um platonismo para o povo) seriam, segundo Nietzsche, sintomas.

O essencial do texto citado reside na compreensão do homem a partir da dinâmica do desejo. Se compreendêssemos, à luz da psicanálise freudiana, o desejo como falta, a expressão de Ratzinger seria contraditória pois assinalaria não um momento de crise mas de plenitude, pois seria a falta de uma falta, seria a afirmação de que nada nos faltaria. Se a leitura do conceito de desejo for mediada por Deleuze e Guattari, o desejo não será uma carência mas uma disponibilidade para a criação, disponibilidade para responder a um encontro. Ora foi isso que desapareceu na Europa, a disponibilidade para o encontro e nesse encontro recriar a vida e abrir-se ao futuro. Os europeus tornaram-se indisponíveis e, desse modo, cortaram a ligação com o futuro. 

Se a crise demográfica e a forma como se encara a vinda de uma criança são exemplos paradigmáticos dessa falta de desejo e do corte com o futuro, eles não são os únicos. A crise das dívidas soberanas e a actual tipologia das relações entre os parceiros europeus são marcadas por essa mesma indisponibilidade. O que se passa, no âmbito da política europeia, é que já não há um desejo de futuro. Os países do norte e do centro estão cansados dos do sul e estes já não suportam o moralismo protestante dos do norte e centro. Nenhuma parte deseja a outra e a todos falta energia vital. O excesso, que todo o verdadeiro desejo representa, foi substituído pela carência e pela penúria. Um problema de falta desejo, essa infecção que cada vez mais parece ser fatal.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Jean Giono, O Homem que Plantava Árvores




A novela O Homem que Plantava Árvores, de Jean Giono, foi escrita em 1953. É um pequeno texto que se tornou uma espécie de bíblia dos movimentos ecologistas. O próprio Giono disse que a tinha escrito “para que as pessoas gostem de plantar árvores”. Independentemente dos propósitos naturalistas do autor ou das leituras ambientalistas que foram feitas da novela, esta tem o particular condão de colocar o homem, na figura da personagem Elzéard Bouffier, na encruzilhada entre história e natureza.

Em linhas gerais, o narrador, numa das suas viagens a pé pela Haute Provence, acaba por conhecer Elzéard Bouffier, um pastor solitário e de poucas palavras. A região que habita é praticamente desértica, onde, com a excepção da alfazema, nada parece crescer. A vida humana ter-se-ia retirado para longe daqueles lugares inóspitos. O narrador vai descobrir e acompanhar, com os interlúdios impostos pela história humana, a tarefa desmesurada a que o solitário se entregava, a saber, a reflorestação da zona, utilizando apenas uma vontade determinada e instrumentos rudimentares. Vontade e ausência de recurso aos meios técnico-científicos são os traços fundamentais de Elzéard.

A personagem é monolítica. Não há nela uma metamorfose ao longo da narrativa. É encontrada já completamente formada, solitária, empenhada no seu destino. O que a conduz ali não sabemos. Conhecemos apenas a sua vontade e os resultados dessa vontade, as transformações regeneradoras que a natureza sofre – transformações que ele produz entre 1913 e 1947 e que, quando se tornam visíveis, as autoridades julgam dever-se a uma resposta espontânea da natureza – e que vão permitir o retorno da vida humana àqueles locais.

Quem é o solitário Elzéard Bouffier? Qual a sua verdadeira identidade? Voltemos à velha definição dada por Aristóteles na sua Política (1253a 3-5): o homem é, por natureza, um ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por acaso, não tiver cidade, será um ser decaído ou sobre-humano, tal como o homem condenado por Homero como “sem família, nem lei, nem lar”. Bouffier não tem cidade, não se inscreve no âmbito da cidadania e os acontecimentos históricos – e que acontecimentos históricos – passam-lhe completamente ao lado. Giono desenha assim uma personagem que, sendo humana, não é um homem, não é um ser vivo político.

Como nada sabemos da motivação de Elzéard nem do que o conduziu à solidão, não há uma história das peripécias e dos acasos que o conduziram aquela situação e o instituíram naquela missão, podemos suspeitar que é a sua própria natureza, e não os acidentes da vida, que o colocam ali. Portanto, Elzéard Bouffier só pode ser ou um ser decaído ou um ser sobre-humano, um deus. Apesar de não ter família nem lei, e de o lar ser absolutamente rudimentar, embora completamente ordenado, descobre-se que o pastor, pelos resultados da sua acção, só pode ser um deus.

Ele encarna a essência do Deus de Espinosa. É uma natureza naturante cuja produtividade se manifesta na chamada natureza naturada. Elzéard Bouffier, com a sua vontade determinada, é um deus criador que produz e conserva, no silêncio e desconhecimento dos homens, a obra da sua criação. Um deus é idêntico a si mesmo, a sua biografia não resulta dos acasos e acidentes do mundo, a sua identidade não nasce de um processo de construção mas está dada a priori. Ele constrói ou reconstrói a natureza.

Só um deus, em plena França da primeira metade do século XX, pode passar incólume pelos acontecimentos históricos. As guerras de 1914-1918 e de 1939-1945 passam ao lado de Elzéard Bouffier e da sua obra. Os homens matam-se, mas o deus prossegue sereno e determinado a sua missão de reconstrução da natureza, de produção das condições de possibilidade da vida humana, plantando mais e mais árvores. É fora da história que ele age. Não age contra ela, mas ignorando-a. A anistoricidade da personagem de Giono coloca problemas bem mais pregnantes do que a leitura ecológica da sua acção. Será possível a vida humana sem que alguns homens se coloquem fora da cidade e da história?

A história é o produto da vida em sociedade, mas é também o lugar do conflito e da destruição. Deixada a si mesma a história, bem como a vida social, arrasta a destruição, pois a sua essência é o devir e a destruição do dado, a substituição interminável dos factos por novos factos. Elzéard Bouffier simboliza aqueles que, abdicando de uma biografia social e histórica, se recolhem num além da cidade e da política para assegurar que a natureza e a própria cidade sejam ainda possíveis, apesar da história, da cidade e da política. Aristóteles, talvez devido à metodologia de investigação que usou, não compreendeu que a existência da cidade depende daqueles homens e mulheres que estão para lá dela. Descobriu que eles são sobre-humanos, mas não compreendeu que essa sobre-humanidade é a condição de possibilidade do próprio homem e das suas instituições. A novela de Jean Giono, na sua singularidade singela, deixa-o perceber.

Jean Giono (2012). O Homem que Plantava Árvores. Barcarena: Marcador. Tradução de Manuel Oliveira.

domingo, 24 de março de 2013

Brincar às destruições criativas

Henri Regnault - Execution Without Trial (1870)

O chefe de missão do FMI para Portugal é, como a generalidade dos técnicos da troika, um patusco. Ignorante da história do país, desconhecedor completo da realidade que vinha, sem processo de julgamento, sentenciar, acolitado por um governo nacional tão ignorante como ele, este senhor, depois de ter ajudado a dizimar centenas de milhares de empregos e de ter destruído milhares de empresas, vem dizer que a evolução do desemprego em Portugal é infeliz, que é mesmo muito pior que o esperado. Esqueceu-se de dizer que houve muita gente que avisou que as medidas adoptadas só poderiam levar onde têm levado.

O mais interessante, porém, é as suas lamentações perante o facto das telecomunicações e a energia não terem descido de preço. Vale a pena reproduzir as palavras do senhor Abebe Selassie: "Penso que o principal objectivo para os preços da electricidade, das telecomunicações e de outros sectores não transaccionáveis é se estão em linha ou começam a cair à medida que a concorrência aumenta ou a procura diminui. Até agora não o estamos a ver e isso é muito decepcionante. Se não responderem às condições económicas penso que definitivamente teremos de olhar para o que o se passa e revisitar as reformas".

Como é possível dizer coisas destas? Quem conhece minimamente a história de Portugal sabe perfeitamente que isto era o mais previsível. Sempre que se liberaliza qualquer coisa, sempre que o Estado deixa de intervir, os serviços pioram e os preços aumentam. Tanto na cabeça do governo português como na destes senhores a realidade - histórica e geográfica - não conta para nada. Pensam que o capitalismo se desenvolve em todos os lados da mesma maneira (deveriam ler o John Gray). Pensam que a história não interessa nada para compreender a economia, coisa que um conjunto de idiotas com lugar cativo na opinião não se cansa de proclamar. Depois têm surpresas.

Portugal está entregue a uma turba de técnicos ignorantes e de governantes sem o mínimo sentido da realidade. A dor inútil que essa gente espalhou é enorme. Como salientava o Expresso deste fim-de-semana, os 23,8 mil milhões popupados em medidas de austeridades apenas diminuíram pouco mais de 6 mil milhões no défice do Estado. As políticas do governo e da troika destruíram 17 mil milhões de euros. É o que se chama brincar às destruições criativas.

sábado, 23 de março de 2013

Meditações dialécticas (1) - O drama da filosofia

Alfonso Parra Domínguez - Realidad dialéctica (1977)

Se estamos a fazer o retrato da verdadeira e última estrutura da realidade, o esquema canónico é para nós o esquema austero que não conhece citação que não seja directa, e que não conhece atitudes proposicionais para além das constituições físicas e do comportamento dos organismos. (Willard O. Quine, Word and Object)

Quine estabelece uma conexão entre a verdadeira e última estrutura da realidade e as constituições físicas e comportamentos dos organismos, isto é, aquilo que pode ser dado na experiência empírica. Este esquema austero, como é designado, faz do limite da capacidade de receber informações empíricas o limite da realidade. Nada nos garante, porém, que a realidade última ou a sua estrutura tenham mesmo uma constiuição material que afecte a nossa sensibilidade. Foi este sentimento - o de uma realidade não captável pelos sentidos - que conduziu o homem à arte e à filosofia. 

A imaginação e a razão - naquilo que Kant criticou como uso dogmático - sempre sentiram que a sua tarefa não era conformar-se aos dados empíricos, às limitações da nossa sensibilidade, mas aventurar-se no não visível, no não sensível. O drama que aterroriza os filósofos reside aqui: por um lado, verem-se confinados à austeridade da informação empírica; por outro, aventurarem-se no não sensível, para além da experiência possível, e cair na razão dogmática. E não há nada mais contrário ao senso comum filosófico do que o dogmatismo. Mas se o dogmatismo contiver em si a dúvida e um princípio crítico?

sexta-feira, 22 de março de 2013

O Papa Francisco


Jorge Mario Bergoglio irrompeu na esfera pública global com uma força inesperada. Esta força deve-se, claro, ao seu carácter, ao carisma pessoal, à bonomia e simplicidade franciscana em que sempre tem vivido. O acolhimento que tem recebido é também sintoma da exaustão a que os homens modernos estão submetidos. Não é apenas a crise económica e financeira que predispõe os homens, mesmo os que são religiosamente indiferentes, a acolher o novo Papa, a sentir alguma curiosidade com a figura que ocupa o lugar de Pedro. 

É a própria vacuidade da vida contemporânea, o fastio a que conduz uma existência fundada no prazer pessoal e na busca contínua de mais e mais experiências exaltantes, num mundo que cada vez tem menos coisas que causem exaltação. O acolhimento que o Papa Bergoglio tem tido é também um importante sintoma das patologias sociais e culturais que se abatem sobre os homens modernos. O que tem a sociedade contemporânea – a sociedade mais desenvolvida tecnologicamente – a oferecer aos homens? A uma minoria, oferece dinheiro e mais dinheiro, talvez um conjunto de prazeres cada vez mais caros e, ao mesmo tempo, mais fúteis. À grande maioria oferece a pobreza e a inveja, oferece a raiva e a impotência. 

É no vazio espiritual de um mundo que perdeu todas as causas que Bergoglio e o seu discurso sobre os pobres parecem ser uma radical novidade. Não o são, na verdade. Mas o facto de agora haver essa aparência permite perceber que se pode estar a dar uma alteração na capacidade do homem moderno escutar. Isto não significa que vamos assistir a uma vaga de conversões ou reconversões ao catolicismo. Significa antes a situação de grande carência em que os homens se encontram. Significa que talvez comecem a perceber o estado de errância que é o seu, que talvez possam compreender que as suas vidas são, devido à manipulação das sociedades do espectáculo e do consumo, destituídas de sentido e de dignidade. 

Ratzinger é um homem brilhante, um dos intelectuais mais lúcidos desta nossa velha Europa, mas a sua capacidade de diálogo com os homens comuns é diminuta. As pessoas suspeitam nele a superioridade que ele, de facto, tem e sentem isso como uma ofensa e um incómodo. Bergoglio é diferente. É um latino e tem uma maior capacidade de ir direito ao coração dos homens. Talvez seja isso o que as pessoas esperam. Um Papa que trabalhou com os pobres, que recusou viver num palácio, que andava em transportes públicos, que gosta de futebol e de tango e que, por tudo isso, representa uma promessa de sentido para uma vida que parece ter perdido qualquer sentido.

quinta-feira, 21 de março de 2013

História e ficção

Vincent Van Gogh - O 14 de Julho em Paris (1886)

O traço mais visível, mas não necessariamente o mais decisivo, da oposição entre o tempo da ficção e o tempo da história é a libertação do narrador - que não confundimos com o autor - relativamente à obrigação maior que se impõe ao historiador: a de se vergar aos conectores específicos da reinscrição do tempo vivido sobre o tempo cósmico. Dito isto, damos apenas uma caracterização negativa da liberdade do artista da ficção e, por implicação, do estatuto irreal da experiência temporal fictícia. Personagens irreais, dir-se-á, fazem uma experiência irreal do tempo. Irreal no sentido em que as marcas temporais desta experiência não exigem ser ligadas a uma única rede espácio-temporal do tempo cronológico. (Paul Ricoeur, Temps et récit - III Le temps raconté, p. 185)

Não é tanto a tese de Ricoeur que se pretende questionar. O que se pretende sublinhar é outra coisa. A inscrição do tempo histórico vivido no tempo cósmico e cronológico é surpreendentemente ficcional. O tempo cronológico não é ele mesmo uma evidência de uma realidade que exista em si e por si mesma, mas uma pura construção ficcional. Datar os acontecimentos históricos significa inscrevê-los num determinado calendário. O calendário, porém, não passa de uma construção ficcional da espécie humana. Melhor, de uma construção ficcional de determinada cultura que faz parte da espécie humana, pois existem múltiplos calendários fundados em diferentes ficções, as quais utilizam adereços (por norma, elementos extraídos da observação do cosmos) para compor um cenário ficcional onde se inscrevem os eventos.

O consenso cultural que suporta um calendário - ou o consenso da espécie relativamente à necessidade de construção de calendários - recalca a natureza ficcional onde nos habituámos a inscrever os acontecimentos históricos. Este recalcamento deve ser tomado no sentido psicanalítico. O que é o recalcamento em psicanálise? É um processo pelo qual se elimina da consciência partes inteiras da vida afectiva e relacional profunda. É indispensável à simplificação da existência corrente. (ver aqui). Compreendemos, facilmente, que o calendário simplifica a vida quotidiana, ajuda a estruturar a memória, fornece um apoio à imaginação e um horizonte à razão. Mas o recalcamento não é apenas isso. A simplificação é uma eliminação da consciência de qualquer coisa que interfere com os níveis mais profundos da espécie humana, recalca o terrível momento em que o homem descobre o passar do tempo, certamente uma experiência muito arcaica. O calendário é a domesticação dessa experiência, cujo impacto foi recalcado. E o recalcamento não se dá apenas por uma questão de utilidade na gestão dos negócios quotidianos, mas porque deve ter sido uma experiência absolutamente devastadora e dolorosa. O calendário é o resultado de uma dor, é uma ficção analgésica.

É nessa ficção analgésica que a vida histórica deve ser inscrita pelo historiador. Mas se o cenário onde se inscrevem os acontecimento históricos é uma ficção, que estatuto poderão ter esses mesmos acontecimentos? Não serão, também eles, ficções analgésicas? Ao ficcionalizar a natureza ontológica do tempo através do calendário, não apenas diminuímos o doloroso impacto, sobre a consciência dos homens, dessa coisa informe que aprendemos a chamar tempo, como criamos uma estratégia - a História, a descrição e a explicação históricas - para diminuir o impacto doloroso que os eventos têm sobre essa mesma consciência.

O narrador de uma ficção relacionar-se-á com o tempo de forma diferente do historiador? Em aparência sim, pois a narrativa não tem de se inscrever no calendário adoptado numa dada cultura. Cada narrativa ficcional pode ficcionar o seu calendário - de forma explícita ou implícita - e inscrever nesse cenário as acções e os eventos narrados. Se o calendário que o historiador utiliza para ordenar a vida histórica é uma ficção cultural ou, no melhor dos casos, da espécie, haverá uma diferença ontológica entre História e ficção? Ora se não houver, como se pode muito legitimamente suspeitar, acabamos por descobrir que as narrativas ficcionais são também elas formas analgésicas do encontro do homem com o tempo e os acontecimentos, recorrendo à imaginação para antecipar e, desse modo, amortecer o encontro com aquilo que, ao mesmo tempo, nos horroriza e fascina. Fazemos História e contamos histórias não para pensar mas, muito justamente, para evitarmos pensar naquilo que dá que pensar.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Saber e ensinar

Marlene Dumas - The Teacher (sub a) (1987)

O médico cura não porque tem a saúde em acto, mas porque tem o conhecimento da arte médica; já o professor ensina precisamente porque tem o conhecimento em acto. (S. Tomás de Aquino, De Magistro, art.º 2 - Resp. às obj. 6)

Duas linhas de Tomás de Aquino bastam para mostrar quanto as teorias pedagógicas do século XX e XXI (tão dominantes em Portugal) são absurdas. O que marcou estas pedagogias foi a secundarização da posse do conhecimento em acto (conhecimento que está presente e age no agente, o professor) e a sua substituição pelo domínio de técnicas pedagógicas que, segundo os corifeus do pedagogismo, abririam a mente e a vontade dos alunos à suprema vontade de aprender a aprender (voltarei, com Tomás de Aquino, ao aprender a aprender). O pedagogismo seria, para falar como Tomás de Aquino, um conhecimento da arte de ensinar que permitiria a um professor, que não tivesse conhecimento de uma matéria, tornar os alunos sábios. Um puro devaneio.

Esta gente, que nunca leu Tomás de Aquino ou qualquer outro autor que mereça ser lido, não compreende que só o domínio, por parte do professor, de um conhecimento lhe permite ensinar. Um professor não precisa de técnicas pedagógicas inovadoras, precisa de mastigar aquilo que ensina até que se torne carne e sangue da sua carne e do seu sangue. Estando assim o saber adquirido e consolidado pelo professor, logo lhe ocorrerá, em cada situação, qual o caminho para chegar aos seus alunos, logo lhe ocorrerá criar as situações de aprendizagem mais adequadas. Que este ensinamento de Tomás de Aquino já não seja compreendido atesta bem o grau de degradação a que a nossa época chegou.

terça-feira, 19 de março de 2013

Deutschland über alles

Joerg Immendorff - Café Deutschland IV (1978)

Vasco Pulido Valente recordava, no artigo da passada sexta-feira, no Público, que "desde o fim do século XIX existiram duas correntes no imperialismo alemão: uma, donde veio o nazismo, que favorecia a construção de um império clássico fundado na força; outra que preferia um império económico, que a Alemanha regeria através de Estados clientes, embora aqui e ali com uma ocasional intervenção armada". O que estamos a assistir, onde se inclui a trapalhada inominável do confisco em Chipre, parece dar completa razão a Pulido Valente. Vale a pena olhar para a história, para a história relativamente recente e tentar perceber algumas linhas de força.

A criação da CEE - posteriormente, União Europeia - visava um certo equilíbrio entre as potências europeias, nomeadamente a Alemanha e a França. Os demónios do nazismo estavam demasiado vivos e o orgulho alemão bastante quebrado pela derrota. Foi possível, nesse quadro, lançar um projecto económico e político de solidariedade e desenvolvimento comum. Por norma nunca se refere - portanto algo que é recalcado - que esse projecto nasceu e foi possível não apenas porque a Alemanha fora derrotada mas porque estava dividida. Havia duas Alemanhas, o que tornava a República Federal comedida e relativamente inofensiva nas suas pretensões.

Podemos pensar que o actual processo de destruição das solidariedades europeias se liga à nova situação criada com a queda do muro de Berlim e a unificação alemã. Mesmo que os primeiros anos da unificação tivessem sido muitíssimo caros para os alemães, a verdade é que o equilíbrio entre economias e potências europeias se foi desfazendo a favor da Alemanha, por mérito desta, mas também por cobardia de outros. É uma Alemanha unificada e com uma economia saudável que vai aproveitar a oportunidade aberta pelas crises do subprime  nos EUA e, logo a seguir, das dívidas soberanas dos países do sul da Europa. 

Nesta crise, a Alemanha tem se comportado não como um parceiro entre parceiros, mas como um rival que vê os adversários no chão e, em boa lógica de guerra, os subjuga, através das políticas do Banco Central Europeu e de outras instituições europeias, até não mais poderem respirar. De facto, a economia tem servido muito bem o desígnio de certas forças alemãs que nunca deixaram de sonhar com uma política imperial. E quando tudo parece, para nós europeus do sul, desabar, os dirigentes alemães passeiam-se impávidos e serenos aceitando tributos e bajulações. Os alemães primeiro compraram-nos com os seus gadgets e dinheiro para os comprar e agora são impiedosos com os escravos. As coisas são o que são, e a política nunca deixará de ser um jogo de domínio e de submissão.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Brincar com o fogo

Paul Klee - Fire ande Death (1940)

A agência de rating Standard & Poor's alerta para o risco de implosão social na zona Euro devido ao elevado desemprego. Também há dias, depois de ter dito que os demónios da guerra na Europa continuam a existir, o primeiro-ministro luxemburguês e antigo chefe do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker, alerta para o risco de revolta social na Europa. Em tudo isto há um mistério indecifrável.

Não têm sido as avaliações (e os fundamentos económicos que legitimam essas avaliações) das agências de rating, juntamente com as políticas europeias, mais a retórica anti-keynesiana (de que o nosso ministro das finanças tanto parece orgulhar-se) que nos conduziram ao lugar onde estamos? Muita gente andou a brincar com o fogo e agora admira-se que haja incêndio. 

Os europeus deveriam perguntar-se - e perguntar com ar severo e irritado às suas classes dirigentes - como foi possível passar de uma Europa ainda há pouco tempo orgulhosa da sua paz social e da bonomia dos seus costumes para uma Europa à beira do colapso e da morte.

domingo, 17 de março de 2013

Um assalto e uma traição

Jesús de Perceval - Ladrón (1930)

Enlouqueceram. A direcção política da Europa perdeu completamente a noção da realidade. O confisco de uma percentagem dos depósitos no Chipre não é uma má notícia. É uma prova clara de que a direcção política europeia perdeu qualquer sentido do que são as pessoas, os seus sentimentos e a sua forma de reagir. Nós, portugueses, já sabíamos que as incompetências dos governantes e as trapaças de alguns são pagas, através da confiscação política, pelos cidadãos. Mas isso tem sido feito de forma sorrateira. Aumento de impostos, diminuição de salários acordados, etc. Agora, porém, a confiscação das pessoas é feita de maneira que toda gente percebe que se está perante um roubo. Que elites políticas são as europeias que permitiram impunemnete os desvarios do mundo da finança e que, perante o descalabro a que isso conduziu, assaltam os seus próprios cidadãos? O comportamento das elites políticas europeias só tem um nome: traição aos povos que as elegeram.

sábado, 16 de março de 2013

Meditações Taoistas (15)

Anónimo chinês - Birth of a Child

Gera mas não possui.
Age mas não ostenta.
Alimenta mas não domina.
Eis a excelência misteriosa.
Lao Tse, Tao Te King, LI

Foram precisos muitos anos para chegar aquela hora. O caminho estava no fim e todas as palavras tinham secado no fundo da garganta. Por vezes, recordava o momento em que cada um nascera, as suas primeiras palavras, o temor que algum mal lhes acontecesse. A matriz onde se formaram há muito que estiolara e o seio que os alimentara era agora um turvo sinal na memória. Cada nascimento, porém, estava ainda inscrito no coração. O momento em que o corpo se abria e um novo mundo irrompia das trevas interiores nunca a abandonaria. A súbita dor era o júbilo e a promessa silenciosa de os deixar ir quando a vida os solicitasse.

Cada noite que passara em vigília, cada tormento que enfrentara, os terríveis dragões do desespero que matara, tudo isso escondera de cada um. Fazia o que tinha a fazer. Olhava o horizonte, escutava o vento, tacteava cuidadosamente as rochas escapadas da falésia, e então compreendia no fundo do ventre o que cada um requeria. Com uma precisão que lhe nascia no que havia de mais íntimo, abria caminhos, traçava rumos, desenhava a esperança nos olhos que para ela se voltavam. Depois sorria e deixava que as mãos caíssem ao longo do corpo, como se a sua essência fosse tecida na mais pura inércia.

Agora chegara o tempo de partir. Era grande o cansaço e a terra tomara um peso doloroso. Ninguém precisava dela. Sim, tinha havido um tempo em que dera a cada um aquilo que ele dela esperava. Mas quando chegava o dia propício, abria-lhe a porta e dizia-lhe: “Eis o vasto mundo que te espera. Chegou o momento de dares o que recebeste. Quando nascerem os teus filhos não os faças escravos dos teus anseios nem os submetas ao medo. Deixa que cresçam sob a intempérie, que aprendam a ouvir a tempestade e que amem a voz do trovão. Não prendas o que nasceu para ser livre nem faças dele o seguro da tua velhice. Que eles aprendam contigo a alimentar os filhos que irão ter, sem que na sua memória exista outra coisa apara além do segredo que também eles partirão para construir a sua casa e edificar um mundo.” Quando saíam, fechava-se e chorava no silêncio da noite, como se a carne se rasgasse e a vida jamais se pudesse recompor. Chegada a aurora, erguia-se e sentava-se na rua à espera que o vento lhe trouxesse notícias daquele que partira.

sexta-feira, 15 de março de 2013

Mudar a matriz

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

A dolorosa situação actual traz com ela uma alteração radical da matriz que dava forma à nossa existência colectiva. Seja o programa do governo e da troika derrotado ou tenha vencimento, arrastando-nos continuamente para uma miséria cada vez maior e tornando a vida absolutamente insuportável, uma coisa tornou-se óbvia. Nada vai a ser como foi até 2008. A matriz social que começou a ser desenhada no primavera marcelista, que foi continuada pelo 25 de Abril de 1974 e intensificada pela adesão à União Europeia, essa matriz não está moribunda, está morta.

As enormes manifestações de 2 de Março foram as grandes exéquias fúnebres dessa matriz. O aspecto dorido de muitas participantes indicava isso mesmo. Não estou a dizer que a morte dessa matriz seja uma coisa boa. Ninguém gosta de ver morrer alguém que ama. Mas quando morre, o nosso desgosto pessoal é irrelevante para alterar a situação. Que matriz foi essa que morreu? Foi aquela que se manifestou ao transformar-se o Estado na esperança secreta de todos nós, trabalhadores, empresários, artistas, banqueiros, etc. Esta confiança no Estado foi a face visível de um descomprometimento geral da sociedade portuguesa com a vida e o bem tanto comum como, muitas vezes, privado.

Temos um problema pela frente: como vamos sair, agora que o Estado traiu a esperança que nele fora depositada, do enorme sarilho onde nos encontramos? Julgo que ninguém sabe, a começar pelo governo e a acabar na oposição. Haverá quem julgue que a liberalização pura e dura será a saída. Outros pensarão que o morto pode ressuscitar. Na verdade, a liberalização pura e dura levar-nos-á a uma miséria galopante, enquanto a esperança da ressurreição da velha matriz, mesmo em tempo de Quaresma, é uma pura ilusão.

Talvez houvesse uma possibilidade de encontrar um caminho que diminuísse a dor que a mudança matricial está a produzir. Esse caminho implicaria que os portugueses soubessem claramente a situação em que se encontram, que percebessem que o estado geral é muito idêntico ao da economia de guerra. Implicaria que estivessem dispostos a um aumento drástico do seu poder de iniciativa e da sua capacidade de solidariedade. Por fim, necessitaria de uma classe política – ou de uma direcção política – que, alicerçada no conhecimento da realidade nacional, conseguisse estabelecer entre todos nós um pacto para enfrentar o estado de guerra em que nos encontramos. Alguém sério e preparado que governasse para todos e não apenas para alguns. Talvez seja pedir o céu na terra. O mais provável é termos direito apenas a um inferno sem fim.