sábado, 4 de maio de 2013

Operários dickensianos

Lewis Hine - Child Labor Happy Birthday Shorpy (1910)

Há dias, o Zé Ricardo escreveu que hoje em dia já não existem os "operários dickensianos, miseráveis, analfabetos, quase marginais" que motivaram a consigna marxista "Trabalhadores de todos os países, uni-vos". Eu diria outra coisa. Esses operários foram deslocalizados. São aqueles que morrem no Bangladesh ou que trabalham quase como escravos naquilo que antigamente era denominado o terceiro-mundo. O que se passa é que Charles Dickens morreu e ninguém quer saber dessa gente. Quem gosta de recordar os pesadelos que viveu?

A situação, porém, tem uma dimensão que nós, educados num mundo que já acabou, nos recusamos a ver. O Zé Ricardo ou eu, enquanto professores, estamos muito mais perto dos operários dickensianos, ou daqueles que há dias morreram no Bangladesh, do que daqueles que mandam no mundo e que organizam, através do jogo dos mercados, a miséria crescente da humanidade. Hoje em dia, não são apenas os analfabetos, quase marginais, que são miseráveis. Miseráveis também serão, cada vez mais, os alfabetizados, mesmo se decorados com algum doutoramento. 

Ontem, o primeiro-ministo acrescentou mais um sinal à longa lista de sinais que apontam nesse caminho. O que nós nos recusamos a perceber é que o ajustamento da Europa só termina quando atingirmos os níveis de vida do Bangladesh e os operários dickensianos estiverem de volta.

6 comentários:

  1. Vêm-me á memória Maiakovsky, Niemölle e Brecht e as suas variações sobre o poema “Primeiro levaram...”
    A extrapolação está aí, cada vez mais justificada: Gradualmente os proletários deixaram de ser os operários e passaram a ser os administrativos e depois os quadros e, qualquer dia, já “não sobra ninguém” e não há mais ninguém para se queixar.
    A revolução socialista continua a ser um imperativo e nada tem a ver com a repetição de que o José Ricardo nos fala.
    Quanto à “morte” de Marx, curiosamente, lembro-me Joyce: “Não se pode comer o bolo e continuar a tê-lo”...

    Um abraço

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    1. Não sei se a revolução socialista é um imperativo, mas uma coisa parece clara: os governos e os mercados estão a trabalhar arduamente para a tornar uma possibilidade.

      Um abraço

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  2. Sim, claro. Mas uma classe média proletarizada é muito diferente de um proletariado que nunca foi classe média. A história repete-se mas de um modo dialéctico. E tanta a teoria como a prática têm que acompanhar essa evolução. Os operários do Bangladesh continuam a ser os operários do Bangladesh, iguais aos operários londrinos de Oitocentos, nunca conheceram outro mundo. Mas quem são os operários europeus? Os futuros "operários" europeus serão professores, bancários, funcionários públicos e até médicos e enfermeiros. Isso obriga a não deixar de ouvir Marx mas para que o seu discurso faça sentido há que o actualizar, adaptando-o a uma nova ordem social, política, económica e sobretudo cultural. O que poderá significar ser revolucionário no século XXI? Voltar a ler o Manifesto Comunista e passar à acção? Não me parece. Mas também ainda não se sabe muito bem o que fazer pois também não se sabe muito bem o que está exactamente a acontecer. Que fazer? Não se trata de uma revolução mas de uma conservação. O proletário do século XIX precisava de uma revolução para deixar de o ser. A classe média do século XXI precisa de uma conservação para não deixar de o ser. E Marx não falou disso até porque seria impossível fazê-lo na altura. O homem era inteligente mas não era bruxo.

    Abraço,

    JR

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    1. O meu interesse não era tanto a revolução ou o Marx. O meu interesse era chamar a atenção para dois fenómenos. O da deslocalização (a afirmação de que ele continua a existir) do operariado do século XIX e o da emergência daquilo a que alguns chamam cognitariado (que palavra horrível!). Só isso. Já agora mais duas notas:

      1. Entre a intelectualidade marxista (herdeira do Iluminismo) e o operariado do século XIX e XX sempre houve um grande hiato. Os intlectuais, pela sua origem burguesa, eram revolucionários, enquanto o operariado (e aí discordo do que dizes no comentário) eram, substancialmente conservadores. No fundo, revoltavam-se contra o roubo das terras comunais (roubo feito através da Lei dos Cercados e que está na base do desenvolvimento do capitalismo agrário e do industrial) que destruiu o seu modo de vida tradicional. Quanto mais penso nisso e leio, mais estou convencido que o operariado sempre foi uma classe tão conservadora quanto a aristocracia. É evidente que houve operários revolucionários, mas a massa, até por proveniência camponesa, era conservadora.

      2. Apenas uma classe social é revolucionária. É a dos empresários, ou a burguesia, na nomenclartura marxista. Ela representa sempre o tempo e o desejo de futuro, fazendo da inovação a arma para combater no mercado e destruir os modos de vida que se vão cristalizando.

      O grande equívoco do marxismo reside nestes dois pontos. Ele é o produto de dois burgueses (Marx e Engels) herdeiros da consciência burguesa revolucionária e que pensam ser possível inocular esse espírito revolucionário burguês nas massas operárias, claramente passivas e pouco dadas a revoluções, embora capazes de revoltas derivadas da fome ou coisas semelhantes.

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  3. A Classe Média integra o mundo do Trabalho e não o do Capital. A contradição está em que ela existe graças à luta que aquele “mundo” desenvolveu mas os privilégios que conseguiu, acabaram por funcionar como uma espécie de tampão, que foi abrindo brechas à medida que as conquistas sociais avançaram.
    Daí que a questão já não se ponha somente entre Proletariado (visão estreita) e Capitalismo, mas sim entre aqueles dois mundos: Trabalho no sentido lato e Capital.
    A interpretação de Marx tem de ser dinâmica –é da Dialéctica– e por isso está perfeitamente actual.
    A História é feita de recuos e avanços, mede-se em séculos e não em imediatismos de décadas.
    Do Comunismo primitivo, passando pelo esclavagismo e feudalismo até ao advento do poder da burguesia, agora Capitalismo. É aqui que estamos e vamos certamente ficar durante mais algum (?) tempo.

    O conservadorismo serve o Capital até este constatar que há outras formas mais eficazes de se perpetuar. Quando a “classe média conservsdora” deixa de ser útil, pura e simplesmente deixa-a cair ou aniquila-a.

    Eu não me sentiria bem em ser conservador e saber que para manter o estatuto de classe média precisaria de muitos Bangladesh.

    Este é um tempo em que o pensamento de Marx e Engels serve o Mundo do Trabalho sem ter a visão redutora de estar apenas ao lado do Proletariado.

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    1. Na verdade, tenho fundas dúvidas sobre a questão do trabalho. Parece-me ter uma presença social muito ambígua. Existe, toma formas opressivas, e cresce na ocupação do tempo. Ao mesmo, tempo ele desaparece, substitui seres humanos por máquinas, perde importância na formação da riqueza. O que marca o momento presente é que a antiga aliança (aliança feita de conflito e negociação) capital - trabalho acabou. O capital quebrou a aliança e desloca-se, à velocidade da luz, para onde quer. Prevejo o retorno aos tempos dos motins e das revoltas, agora mediadas pela comunicação social e pela internet. Crescimento da insegurança e da incerteza, o prenúncio do caos.

      Abraço

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