sexta-feira, 3 de maio de 2013

Pós-democracia

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

No último artigo, escreveu-se que se vivia num regime diferente daquele que nascera em 25 de Abril de 1974 e se consolidara com a Constituição de 1976. O novo regime já não é um regime democrático mas uma pós-democracia. Uma pós-democracia não é uma ditadura. Nas pós-democracias, as liberdades são respeitadas e as pessoas podem associar-se e promover as suas ideias livremente. O que separa uma democracia de uma pós-democracia não é a forma institucional mas o conteúdo. Numa democracia, os eleitores podem escolher entre programas governativos rivais encarnados por actores políticos diferentes. Numa pós-democracia, as pessoas escolhem entre actores políticos rivais para aplicar o mesmo programa de governação. Três exemplos de pós-democracia. 

A meta da redução do défice público até aos mágicos 3% do PIB (agora em 2016) é um programa de governação. Por absurdo que os eleitores achem este objectivo, por racionais que sejam as dúvidas sobre o prazo de redução e a forma de a fazer, não haverá programa de governação portuguesa que não se bata por ela. Elejam os portugueses seja que partido for, os compromissos assumidos anteriormente implicam que os objectivos governativos sejam exactamente os mesmos. 

O segundo exemplo de pós-democracia foi dado, no último fim-de-semana, pelo congresso do Partido Socialista. António José Seguro não tem nada para oferecer aos portugueses que Passos Coelho não ofereça. Exceptuando algumas medidas de cosmética, entretecidas com olhares langorosos para o dr. Portas, a única coisa que o PS tem para oferecer de diferente do PSD são as pessoas. Podemos gostar mais das pessoas do PS ou mais das do PSD, mas a escolha é meramente estética e nunca política. A pós-democracia transformou a política em estética ou, talvez, numa espécie de concurso de misses.

O terceiro exemplo liga-se ao papel do PCP e do BE. Estes partidos, hoje em dia, têm programas absolutamente sociais-democratas e são, na prática, mais keynesianos do que marxistas. Numa democracia, estariam à porta da governação, coligados com o PS, sem que daí viesse qualquer sobressalto. Como vivemos numa pós-democracia, os seus mais de 20% de intenções de votos valem, politicamente, zero. Mesmo que, juntos e com um programa social-democrata e keynesiano, valessem um terço do eleitorado não teriam qualquer possibilidade de influenciar a governação.
A pós-democracia é, desta forma, o regime político que concilia a liberdade dos indivíduos com a aniquilação do conteúdo da democracia, através da submissão da governação a uma economia mundializada, que se libertou da teia da política e dos compromissos sociais.

4 comentários:

  1. Não estou assim tão seguro (salvo seja) de que o PCP e o BE tenham deixado cair o marxismo e que desejem a governação que sempre lhes foi coartada, quando ainda tínhamos (só)democracia, pelos partidos que, mancomunados, construíram a pós-democracia e dela se alimentam.
    Tenho pó a tudo que é "pós" e sobressalto-me quando penso no pós-fascismo.
    Bom fim-de-semana

    Um abraço

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    1. No libretto ideológico, por certo, o PCP e o BE afirmar-se-ão marxistas e até, no caso do PCP, marxista-leninista. Contudo, as propostas políticas são de natureza social-democrata e, economicamente, de orientação keynesiana. Por outro lado, também não creio que queiram a governação, e isso é o outro lado do problema, pois governar é assumir responsabilidades e ser julgado por elas. Quanto ao "pós", este não é uma questão de gosto, mas de facto. No caso do regime político parece-me inegável que vivemos, e há muito, numa pós-democracia. A terceira via de Blair foi, factualmente, a redução das duas vias que existiam a uma só e não a emergência de uma terceira.

      Bom fim-de-semana

      Abraço

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  2. Mas se considerarmos que a principal origem dos esquemas de corrupção dentro do governo se origina exatamente na busca de acordos entre as diferentes siglas, ou seja, para que diferentes partidos manifestem a mesma opinião para conseguir a aprovação de temas geralmente lesivos à nação, vemos que nada impede que venham a se comportar como partido único, diminuindo a distância que nos separa desses temidos regimes [totalitários]. Nesses momentos fica mais nítido o grau de controle que os partidos políticos realmente detém sobre o processo eleitoral, quando atuação em conjunto torna mais perceptível a pouca importância do voto do eleitor: os candidatos eleitos serão sempre indivíduos definidos de antemão pelos membros desse conjunto [de partidos políticos]. (Sandro Péricles, Manifesto Antipartidário)

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    1. Seja como for, não me parece que estejamos a caminhar para um regime totalitário. Estamos antes a caminhar para a diluição da política e a libertação completa das forças do mercado da tutela política.

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