quinta-feira, 11 de julho de 2013

Uma arqueologia da paixão política

Lucas van Leyden - The Game of Chess (1508)

Perante a actual crise política e o impacto que ela tem sobre as emoções das pessoas, perguntei-me várias vezes que estranha ligação nos vincula ao desenrolar de um conjunto de acontecimentos que não dominamos, nem no qual temos qualquer possibilidade de intervir com um mínimo de eficácia. Eu sei que há os interesses que se manifestam no palco da política, e que cada um de nós tem os seus interesses particulares, para os quais pretende defesa. Estes interesses são poderosos mas não explicam, por exemplo, a cegueira com que muitos de nós nos entregamos à defesa de um dos lados da contenda política, muitas vezes em contradição objectiva com os seus interesses. Há uma paixão política que ultrapassa, e muito, a relação entre opção política e defesa racional do interesse próprio. Mesmo nas pessoas que tentam olhar com mais frieza e distância a actividade política,  nota-se sempre, mais ou menos disfarçada, uma inclinação para um dos lados.

Enredado nestas meditações, nas peripécias da vida nacional e nas reacções emotivas de muitas pessoas, por norma razoáveis, comecei a fazer a arqueologia do meu interesse pelo fenómeno político, uma coisa que nunca tinha feito. Essa arqueologia tem o poder de reconstruir uma dada história - no caso, privada - e conferir-lhe um sentido que já lá se encontrava, mas que estava soterrado. Nesse escavar da memória, sou arrastado, inopinadamente, para o ano de 1972. Ia a caminho dos dezasseis anos e os meus interesses políticos eram as vitórias do Benfica e o mundial de Fórmula 1, como adepto do Jackie Stewart. Entre Julho e Setembro desse ano dá-se um acontecimento decisivo para a minha ligação à política, o match para a atribuição do título mundial de Xadrez entre Fischer e Spassky. Não sabia nada de Xadrez, mas aprendi a jogar e acompanhei os resultados, torcendo pelo americano contra o russo. 

É a paixão pelo Xadrez que me vai conduzir ao Cine Clube de Torres Novas, onde o jogo era praticado. Quem conhece a história dos Cine Clubes percebe de imediato onde é que entrei. O Cine Clube de Torres Novas era uma associação composta, na sua generalidade, por oposicionistas ao regime. A paixão pelo Xadrez logo deu lugar à paixão pela política. Na verdade, foi uma espécie de transfert. Como no desporto, a política é composta pelos nossos e pelos que são contra os nossos. A irracionalidade original é depois trabalhada e intensificada pela razão e justificada a posteriori. É esta paixão originária que torna o diálogo entre pessoas de paixões contrárias impossível. Não há forma de convencer o outro de que os seus são piores que os meus. Este exercício arqueológico tem um efeito dissolvente: faz-nos ver a risibilidade das nossas opções, a sua fragilidade. A partir dele tornamo-nos mais sábios, mas ao mesmo tempo mais cínicos. Se ainda alguma fé restar da velha paixão, ela desaparece perante o prazer de ver o desenrolar do jogo político como (sublinho o como) se estivesse fora dele.

Aqueles que agora esbracejam e arrancam os cabelos pela pátria dorida e sofredora, muito preocupados com as reacções dos mercados, mais valia que pusessem de lado a crise de histeria, a paixão pelo seu clube, e observassem o talento dos vários players. Toda a gente sabe, embora todos nós finjamos que não e afirmemos a pés juntos que não, que a política pouco tem a ver com o essencial das nossas vidas. Assistamos, com prazer estético redobrado, aos lances onde os protagonistas tentam pura e simplesmente derrotar e humilhar os concorrentes. É isso que está em jogo. A única coisa a lamentar, na verdade, não é o descalabro da pátria - esse existe com ou sem política, pois é o nosso descalabro - mas a falta de qualidade dos jogadores. Mas isso é defeito de quem cresceu a ver jogar gente como Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal ou mesmo Freitas do Amaral. Dificilmente é capaz de apreciar um Passos Coelho, um Seguro ou aquela gente bondosa que dirige o BE e o PCP. Portas é um grande jogador e Cavaco, ao lançar o país na confusão total, esteve ao seu melhor nível. 

2 comentários:

  1. Já cá cantam mais dez anos do que o meu Amigo, logo, menos paciência, mas reconheço que cada escaque deste tabuleiro, agora, de loucos, já teve "pedras" bem mais capazes, independentemente da nossa análise perante as suas posições ideológicas.
    Apesar de tudo, ainda temos algumas figuras respeitáveis. Poucas é certo.

    Um abraço

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    1. Houve uma altura em que havia muita gente de qualidade, para além daqueles quatro referidos, e em todos os quadrantes. Agora, qualidade é um bem escasso.

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