terça-feira, 3 de setembro de 2013

Meditações dialécticas (17) Análise poética

André Breton - Cadavre exquis (1930)

Pegamos num poema, lemos, relemos. Ela toca-nos. Por que razão tem ele esse poder? Interrogamo-lo e ele, como todos os textos, repete o que disse, numa iteração sem fim. Essa iteração tem uma dupla consequência. Por um lado, possui um efeito encantatório, aumenta o charme do texto no coração do leitor. Por outro, ao intensificar o seu mistério, o poema irrita a razão, mostra-lhe os limites, sublinha-lhe a derrota. Não exigiu Sócrates que, para o aceitar como discípulo, Platão queimasse os seus versos? Perante o encantamento produzido pelo poema, podemos sempre usar a análise. É preciso, contudo, ter consciência que a análise é um processo da razão, de uma razão derrotada, impotente, irritada. E isso enviesa a análise – qualquer que ela seja – de um texto poético. Talvez ela nos devolva, no lugar da solução do mistério encantatório do poema, um cadáver. Um cadavre exquis? Não, apenas um cadáver esquartejado.

8 comentários:

  1. Não sei porquê, lembrei-me de Cesariny e da sua "Ortofrenia":

    (...)
    aclamações
    porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
    aclamações
    porque outra é indubitável: não se ouve ninguém.

    Um abraço

    ResponderEliminar
  2. Talvez o gostar de poesia estivesse mesmo dentro de mim, desde sempre - não sei. Toda virada para os números desde cedo, encantava-me também com a poesia. Quando andava na infantil e havia festas de natal, a professora punha-me a recitar poesia. Eu detestava ensaiar, detestava fazer as inflexões que a professora queria. Odiava, achava que no dia da festa ia ser um desastre. Mas chegava lá e a emoção do ambiente fazia com que as palavras saíssem sozinhas, uma coisa que eu não compreendia. Mas não gosto de dizer alto, apenas de ouvir ou de ler. Tinha um namorado que dizia poesia de uma forma que me emocionava. Não sei se teria uns 13 ou 14 anos. A professora que tínhamos prendia-nos pela leitura, não pela gramática. Ela deve ter percebido que ele tinha jeito e gostava. Então punha-o a ler poesia e todos nos arrepiávamos, em silêncio. Eu ficava ainda mais apaixonada. Depois eu escolhi uma disciplina extra-programa que era Iniciação à Leitura (creio ser este o nome). Sentávamo-nos em volta, por vezes num campo que havia ao lado do campo de futebol do liceu, e líamos. Para mim eram momentos mágicos. Chamava-se Joana Meira e foi das melhores professoras que tive.

    Ainda agora, para mim, a poesia com que me envolvo tem que ter comigo uma reacção química. Impregnar-se em mim. Não a sei analisar nem quero, acho que estragava o momento, a emoção. Uma coisa, se é límpida, não deve ser poluída. Não é para explicar: é para sentir. Irracionalmente, como diz. Não quero perceber. Quero apenas sentir. Palavras que se juntaram entre si de uma forma que não deve ser explicada para não estragar a magia.

    (Imagino que isto seria um drama para os professores, caso todos os alunos fossem como eu...)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ainda seria um drama maior para os poetas, julgo. Para aprenderem a arte precisam de dissecar muitos poemas, descobrir como funcionam. Escrever poesia, tal como música, é uma questão técnica, é preciso não esquecer. Apesar do que escrevi, faço análise de poemas. Tenho uma preparada para postar um dia destes. Um poema francês de amor, belíssimo. Faço tradução e leitura analítica. Esta estraga o poema, claro. A minha ideia, porém, é que o momento analítico deve ter uma função de intensificar a emoção que o poema provoca. Mas é dispensável. É sempre o trabalho de uma razão derrotada por aquilo que não se lhe submete, a imaginação.

      Eliminar
  3. Hoje estive com um livro de poesia em francês na mão, 'trago não trago'. Não trouxe. Estive lá a ler e soava-me maravilhosamente. Mas algumas palavras não as descortinava e isso perturbar-me-ia, ou melhor, distrair-me-ia pois ficaria a pensar que me estava a escapar o significado, teria que ir consultar o dicionário, interromperia, acho que não resultava, acho que na poesia tem que ser uma coisa directamente 'para a veia', nada pelo meio.

    Mas eu não sou exemplo para ninguém. Também não consigo frequentar um curso de fotografia ou de pintura. Nem de tapete de Arraiolos. Tenho feito carpetes enormes e complexas, desenhos originais do sec XVII e sou autodidacta, não quero estragar o gosto que tenho com técnicas ou visões burocráticas das coisas. Aprendi por mim. Mas sei que sou um mau exemplo -acho que tudo o que tenha (mesmo que apenas vagamente) a ver com arte tem que se gostar pelo efeito que produz em nós. Talvez depois seja bom perceber a técnica da coisa, mas apenas depois. Primeiro tem que se sentir. (Até com a matemática ou a física eu fui assim quando andava a estudar, imagine...)

    Sei que nem me fica bem dizer isto pois leio o que diz e percebo que é importante estudar. Mas enfim, cada um é como é, certo...?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Claro. O importante é ler poesia e ter uma relação visceral com ela. A palavra arte traduz o latim ars, que por sua vez traduz o grego techne. Toda a arte é uma técnica. Mas dominar a técnica não basta para fazer um poema. É preciso uma voz, embora isso seja muito difícil de definir. Julgo que é essa voz que, através do artifício técnico, ressoa no leitor e o move a sua emoção. Tal como na música.

      Eliminar
  4. Ou na pintura. Ou no mar. Ou numa árvore. Ou no sol que se entrega a uma montanha. Coisas assim que não se explicam, apenas são.

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.