quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Meditações dialécticas (21) - Contemplativos, precisam-se

Albert Gleizes - Contemplação (1944)

Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. (Karl Marx, Teses sobre Feuerbach)

A velha tese marxiana parece, mais do que nunca, fazer todo o sentido. O que pode interessar, para a difícil situação em que se vive, as vãs interpretações dos filósofos? Não será mais curial lutar pela transformação do mundo? A tese, que sempre me fascinou, não deixa de ser enigmática. Fará sentido esta relação adversativa entre interpretação e transformação? Se eu não interpreto, como posso saber que o mundo deve ser transformado? Sim, eu sei, Marx acusa os filósofos de ficarem pela mera interpretação e de não realizarem, de não tornarem real, a filosofia. Mas para mim o mais enigmático de tudo é o peso da transformação. Só a acção dos homens transforma o mundo. 

Ora o triunfo da acção sobre a interpretação é obra do mundo capitalista e burguês. Marx ficou fascinado pela lógica operativa burguesa e, no fundo, é essa lógica que ainda ressoa neste hino marxiano à transformação do mundo. A nossa experiência é diferente. Estamos aturdidos por tanta transformação. Não terá chegado o tempo de revalorizar a interpretação? Mais do que de revolucionários transformadores, o mundo precisa de gente que produza teoria (a velha θεωρία dos gregos). Contemplar para interpretar. Contemplar para compreender. Contemplar para encontrar a acção justa e ajustada. Não, o mundo está cheio de revolucionários de todas as cores. Precisa, porém e com urgência, de contemplativos.

10 comentários:

  1. Permita-me que o chame à realidade: com tanta contemplação, tanta filosofia quando o que se precisa é de professores empreendedores... A perder tempo com essas teorias em vez de estar a preparar-se para comprar a escola onde hoje lecciona... Isto assim não se vai a lado nenhum. Só vejo é gente a improvisar quando, afinal, há um guião para ser seguido. Assim não dá.

    :)

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    1. No fundo, esta gente que nos coube em sorte não tem qualquer vergonha. Se não são postos fora do governo, não fica pedra sobre pedra. mas não faltarão já professores a pensar no negócio. Mas esses estão com espírito do tempo, embora talvez não se possam chamar professores. Enfim, é o que temos. Temos um guião. Espero que lhes passe depressa, mas têm vontade de não deixar pedra sobre pedra.

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  2. Se há professores a pensar nesse negócio em particular, numa altura destas, neste contexto, então também não têm grande queda para o negócio. Estar numa empresa numa altura destas é do pior que há: há uma imprevisibilidade total, há uma irracionalidade à solta que assusta. Os empresários ou gestores gostam de fazer contas, gostam de saber com o que contam. E, com esta gente, não há um mínimo de estabilidade, as regras mudam no meio do exercício e sempre tudo no meio da maior leviandade.

    Sob todos os pontos de vista são um perigo, estes sujeitos. Apenas são bons para quem chegue do exterior para vir aos saldos. Tal como a EDP e a REN foram uma guloseima, agora ainda há os CTT, as Águas, etc. Muita carninha a preço de saldo e com trabalhadores sem direitos e a ganhar ordenados de terceiro mundo.

    De resto, para os restantes, estes sujeitos são um verdadeiro perigo. Têm que ser afastados porque eles, por eles, não saem nem que levem com tomates em cima de minuto a minuto. Resilientes, peçonhentos.

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  3. Haver, certamente que haverá. Por outro lado, se esses professores tivessem vocação para os negócios, ela já se teria manifestado e eles não seriam professores. Mas, embora não conheço o novo livro vermelho do camarada Portas, julgo que as privatização das escolas não visa entregá-las a professores, mas a grupos empresariais já constituídos ou a constituir, a quem se lhe assegura, através de impostos, uma renda fixa. A educação é um negócio proveitoso - desde que o Estado continue a pôr lá o dinheiro - e previsível, basta ter alguns conhecimentos de demografia. Quanto ao resto, a missão desta gente é mesmo vender tudo o que seja bom ou que tenha finalidades sociais e que possa dar dinheiro, como é o caso da educação. Isto com a colaboração do chefe Cavaco Silva que vê, impávido e sereno, o desbaratar dos bens comunitários.

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  4. A ideia transformadora tornou-se numa voraz devoradora de permanências.
    O que está hoje em causa é a continuação, ser revolucionário para manter parece um contra senso mas é disso que se trata, a velocidade da destruição dificulta a contemplação como exercício, por outro lado a acção sem reflexão ficará reduzida à reacção e a reacção é sempre condicionada pela primeira acção, é uma questão de tempo e de velocidades, precisávamos de um tempo lento que nos permitisse contemplar para interpretar e saber como agir, em vez disso tempo um tempo rápido que nos impele a agir por se adivinhar o último grão de areia numa ampulheta quebrada.

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    1. Essa sensação de um último grão de areia na ampulheta, porém, não é mais do que uma tentação, uma tentação para seduzir para a acção, mas como diz, para uma acção meramente reactiva. Prefiro subtrair-me à lógica bivalente revolucionário-reaccionário. Nela ainda se fica preso àquilo que se deve olhar e compreender. Por outro lado, não sei se é a velocidade de destruição que dificulta a contemplação. Aquilo que parece dificultá-la é a ânsia que tomou conta dos homens, daqueles que, pela sua própria natureza, seriam marcadamente contemplativos, digamos assim.

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    2. A destruição a que me refiro é aquela provocada por uma relação violenta entre o homem e a natureza, no último século os recursos naturais foram consumidos, extraídos de maneira irresponsável , como se fossem inesgotáveis, fruto da "ânsia que tomou conta dos homens", as consequências não são só as alterações climáticas, são também comportamentais e civilizacionais.
      Talvez a tentação para a acção seja uma fuga à consciência aguda do fim.

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    3. A tentação para a acção é o núcleo central do projecto da modernidade iniciado no século XVII. Agir cada vez mais e mais rapidamente, mobilizar pessoas e recursos, tornar tudo obsoleto cada vez mais depressa. Talvez tenha chegado a hora em que, confusamente, o homem moderno sente o perigo e se precipite numa fuga para a frente. Mas não tenho a certeza disso.

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  5. Já não sei o que há para contemplar. A "paisagem" está desgastada, importa "revolucioná-lá"
    Abraço

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    1. Podemos tomar o conceito de contemplação de duas perspectivas, aliás complementares. Numa primeira, seria uma contemplação estética. Contemplar a sublimidade da derrocada, da nossa própria ruína. Contemplar pode, por outro lado, ser entendido no sentido da teoria, de compreender o que se passa, e o que se passa está muito longe de estar compreendido ou de ser de fácil compreensão. Seja como for, julgo que há muito mesmo para contemplar.

      Abraço

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