terça-feira, 1 de outubro de 2013

Pontifex maximus

Papa Francisco (Alberto Pizzoli/AFP - Público)

Num dos telejornais da hora de almoço ouvi dizer que grupos de católicos conservadores começam a ficar inquietos e indispostos com o novo Papa. Têm toda a razão. Como se pode ver por este artigo do Público, o Papa Francisco está a ir ao cerne da questão e a tentar devolver a Igreja Católica à sua essência mais profunda. Não é apenas a crítica ao vaticanocentrismo e ao clericalismo que é interessante e pertinente, e que deixa perplexos aqueles que fizeram da Igreja Católica um lugar de afirmação da estirpe e de exclusão dos que não são socialmente eleitos. Duas coisas devem apavorar os grupos conservadores. 

Em primeiro lugar, a feroz crítica ao liberalismo selvagem cujo resultado é "tornar os fortes mais fortes, os fracos mais fracos e os excluídos mais excluídos". O liberalismo selvagem é a doutrina dominante e que é professada, ao contrário da doutrina social da Igreja, por muitos católicos pertencentes às elites económicas e sociais. É esse liberalismo selvagem que lhes permite assegurar o estatuto de elite, a pose superior que ostentam, o desdém com que consideram a plebe. Até aqui, têm tido na Igreja se não um aliado fiel pelo menos um cúmplice silencioso. O Papa decidiu dar vida à doutrina social da Igreja e chamar as coisas pelos nomes. Não admira que se comecem a escutar vozes discordantes. Por certo não falarão de dinheiro, mas de moral e de sexo como é habitual.

Em segundo lugar, Francisco pretende retomar o caminho do Vaticano II e "e abrir-se à cultura moderna, participando nos grandes debates da actualidade". Expliquemos o que significa a cultura moderna. O seu ponto central é o da autonomia da pessoa e da liberdade da consciência. Abrir-se à cultura moderna significa que a Igreja desiste de ser tutora das consciências dos crentes, que abandona a pretensão de controlar a sua vida privada (onde se inclui a sua sexualidade) e a liberdade das suas escolhas. Será que os sectores mais conservadores da Igreja serão capazes de abdicar deste poder - na verdade, cada vez mais ilusório - de controlo das consciências? 

Francisco parece cada vez mais o último reduto contra a descristianização da Europa e do mundo. A sua abertura, a pertinência das suas posições, a acertada análise que faz dos problemas do mundo e da sua Igreja, tudo isso está a criar pontes com os que abandonaram a Igreja, com os que lhe são indiferentes, com os não crentes, com o seu próprio povo. Este é o verdadeiro trabalho de um pontifex maximus, de um sumo pontífice. Construir pontes para unir as pessoas de boa vontade contra a noite negra do mundo.

15 comentários:

  1. Respostas
    1. Veremos até onde ele é capaz de ir. Mas a Igreja precisa de muitos bispos como ele.

      Eliminar
  2. Uma figura simpática, sem dúvida. Veremos se consegue ou se será ele o que vai fechar a porta.

    Abraço daqui

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Tem, já o mostrou, uma profunda compreensão do mundo e da ICAR. Parece, por vezes, ingénuo, mas não acredito que existam jesuítas ingénuos. Se o fossem, não entravam para a Companhia. Sabe muito bem para quem está a falar. Também deverá saber quem não gosta do que está a ouvir.

      Boa estadia por aí.

      Abraço

      Eliminar
  3. Muito boa sua análise. De fato, o papa Francisco foi a grande surpresa do Espírito Santo para a Igreja e para o mundo. Num mundo e numa Igreja que constituiram abismos, faz-se necessário alguém que nos indique a necessidade de construirmos pontes que humanizam as pessoas e a própria Igreja. O mais importante é estarmos atentos para vermos como todas as posições do papa Francisco irão chegar nas pontas, onde a Igreja acontece no dia a dia, em nossas comunidades. Creio que um novo pentecostes aconteceu na Igreja. Cabe-nos agora levar adiante a missão. Parabéns pelo texto. Pe. Cristiano

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pelas suas palavras, Pe. Cristiano. Sim, vai ser interessante ver como as palavras de Francisco vão ser recebidas nas bases, nas paróquias, nos grupos, nas comunidades, mas também nos vários centros de poder eclesial.

      Eliminar
  4. Gostei do seu texto até porque gosto também do tema sobre o qual escreve. Para uma pessoa como eu, afastada da Igreja, Francisco é um homem com quem me identifico e com quem simpatizo desde o primeiro instante em que o vi. As causas que ele defende, as posições que assume, são aquelas em que me revejo: a Igreja como uma casa onde se pode acolher quem precise de acolhimento, sem que se façam perguntas sobre género, orientações sexuais, estado civil, 'pecados' anteriores, etc. - mas mais do que isso uma Casa em que alguém pugna pelo respeito pelos direitos dos mais desvalidos, mesmo que isso signifique lutar para que cesse a exploração, o enriquecimento ilícito.

    Li as palavras do Pe. Cristiano e percebo bem o que ele diz. Pergunto-me também como é que toda a estrutura da Igreja, habituada a uma doutrina que, em muito, é a antítese da de Francisco, vai 'digerir' esta nova atitude.

    Todos os Bispos e Padres conservadores, presos a teorias e práticas tão díspares, que testemunho saberão agora passar para as comunidades...?

    Deve ser interessante ver como descalçam esta bota.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Também será interessante ver como reagem muitos políticos que, presentes as televisões, gostam muito de bater como a mão no peito e de benzer-se, mas que, no governo, são adeptos do tal liberalismo selvagem. Nem precisamos de ir a Badajoz para ver exemplos desses.

      Eliminar
  5. Boa análise. O Papa Francisco foi uma bênção para a igreja católica. Vem mostrar aos Católicos aquilo que a sua Igreja deve ser, e não aquilo em que se havia transformado. Essa "elite" instalada no interior da igreja, e não só nos centros de decisão, mas igualmente na atitude de muitos crentes nas suas paróquias, transformava a Igreja num lugar muito selectivo, mostrando um moralismo afastador e não um Amor agregador.

    Agora, iremos ver como é que a mensagem chega aos fiéis, e como é que ela é encarada pelos mesmos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "(...) um moralismo afastador e não um Amor agregador". Estou completamente de acordo. Não sei se as pessoas percebem que, a continuar como estava, a Igreja Católica corria o risco de desaparecer da Europa, pelo menos como instituição com voz que devesse ser ouvida. Mas o actual Papa não é apenas uma bênção para a Igreja. Espera-se que também seja para o mundo. E até agora só há razões para crer que assim será.

      Eliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.