sábado, 31 de agosto de 2013

A transfiguração da pátria (5) Uma ameaça de sombra

Juan Genovés Candel - Ameaça (1969)

O mar chega-nos em ondas de algas e pústulas,
sacos de plástico abandonados, cadáveres azuis
de gaivotas traídas pelo fogo da tarde.
Sentado, olho o horizonte , a vertigem do ódio,
cada palavra que o vento traz e ressoa na rocha.

Um lençol de sangue brilha sobre o mar em putrefacção,
zunem traineiras abandonadas pela areia,
e os veraneantes olham da mansa estupidez dos dias.
A cegueira invade a terra e desenha um mapa de
desperdícios, fuligem, uma paisagem ocre-vermelho,

velha fantasia de um deus esquartejado e traído.
Soletro no silêncio o nome perdido desta pátria
e, ao longe, vejo sombras  que crescem, uma ameaça,
restos de embarcações esquecidas. Entre os náufragos,
ergue-se flamejante a sombria sombra da minha sombra.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Os mortos sem nome


Ao longo da vida o fenómeno político sempre me fascinou e sempre foi objecto de meditação. Com o filósofo Paul Ricoeur descobri a razão desse fascínio na formulação daquilo que ele chamava paradoxo político - a política é o lugar de racionalização da vida social e, ao mesmo tempo, o lugar da violência, da mais terrível irracionalidade. A minha meditação sobre o fenómeno levou-me a um outro lado, a um lado onde descubro o fenómeno político em si como o sítio do mal radical.

O poder político existe porque nós praticamos o mal, e a política lida com o mal praticando o mal, através da violência legítima. Mas o mal que o poder – incluindo o democrático – pratica não está apenas na violência legítima usada para castigar o mal praticado pelos indivíduos. Está também nas decisões que toma e que, na sua unilateralidade e enviesamento, interferem na vida dos indivíduos, limitando a sua liberdade, a sua vida, a sua capacidade de agir, distorcendo a justiça, favorecendo os mais fortes – sejam eles quais forem – e mutilando a vida dos mais fracos.

Penso muitas vezes que os políticos de hoje não matam com as suas mãos, como aconteceu ao longo da história da humanidade, apenas porque a consciência dos cidadãos tornou isso impossível e limitou um pouco o arbítrio de quem exerce o poder. Mas as pessoas continuam a morrer – ou a sofrer toda a espécie de injustiças – devido às decisões políticas. Não falo sequer nas decisões que conduzem os homens para a guerra. Refiro-me às pessoas que, comportando-se adequadamente, perdem o emprego, a empresa, a casa, os bens, que deixam de poder ir ao médico, de poder tratar-se, que passam e morrem de fome. Por detrás de tudo isso está sempre a mão do poder político. Esta possibilidade de praticar o mal impunemente através de uma decisão política é fascinante.

O poder político, porém, é sempre a máscara sob a qual se movem os poderes deste mundo, aqueles que tiram proveito da desgraça que as decisões políticas semeiam entre as pessoas. Se a minha meditação sobre o fenómeno político me levou a ver o poder político, mesmo o democrático, como o lugar do mal radical, abriu-me também para uma outra perspectiva: para os cidadãos o fundamental não será tanto trocar um poder político por outro, trocar uns senhores por outros, embora certos regimes e políticas sejam preferíveis a outros. O essencial é que a consciência cívica cresça de forma a limitar cada vez mais a capacidade dos poderes praticarem o mal, de espalharem, sem que se dê por isso, a desgraça e de enxamearem os cemitérios de mortos sem nome, de vítimas anónimas e nunca justiçadas das decisões políticas.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Progresso da consciência moral

William Turner - Barco negreiro (1840)

Uma moradia deliciosa, não é? As duas cabeças que ali vê são de escravos negros. Uma insígnia. A casa pertencia a um traficante de escravos. Ah! naquele tempo, não se escondia o jogo! Era-se frontal, dizia-se: «Bom, tenho uma boa situação, trafico escravos, vendo carne negra». Imagina alguém, hoje em dia, dar a conhecer que esse é o seu negócio? Que escândalo! Oiço já os meus confrades parisienses. Eles são irredutíveis relativamente a este problema, não hesitariam a dois ou três manifestos, talvez mesmo mais! Reflexão feita, eu acrescentaria a minha assinatura à deles. A escravatura, bah! não, não, nós somos contra. Que se seja constrangido a instalá-la em casa, ou nas fábricas, bem, isso pertence à ordem das coisas, mas gabar-se disso é o cúmulo. (Albert Camus, A Queda, 1956)

O romance de Albert Camus foi publicado em 1956, quase há sessenta anos. Podemos questionar o que, nesse lapso de tempo, mudou na consciência moral dos europeus. Será que a hipocrisia com que se ocultavam situações de escravatura - em casa, nos locais de trabalho - foi banida? Se meditarmos um pouco na situação em que o mundo do trabalho vive, podemos dizer que a hipocrisia sublinhada por Camus está paulatinamente a desaparecer. Os poderes - financeiro, económico e político - são cada vez menos hipócritas. Não há dia em que não digam, sempre com mais clareza, aquilo que antigamente ocultavam. 

Sim, querem escravos. Não escravos como aqueles que fizeram a fortuna dos negreiros, mas escravos que a troco de salários ínfimos alienem o seu tempo e a sua capacidade de agir - como os outros se viram forçados a alienar a liberdade - para responderem, quando respondem, às suas necessidades básicas (por exemplo, ver aqui). Todas as discussões em torno do custo da mão-de-obra e da necessidade de a embaratecer só tratam, às claras e sob os olhos de todos nós, da gestão da escravatura contemporânea. Em 1956, essa escravatura era praticada, mas admiti-lo seria um escândalo para a consciência pública. Hoje, faz-se e sem qualquer escândalo. Eis os últimos progressos da consciência moral da humanidade ocidental.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Meditações dialécticas (16) A razão ficcional

Jean-Baptiste Greuze - Portrait of Marquis de Condorcet (séc. XVIII)

Condorcet foi um dos grandes matemáticos de todas as épocas, um dos criadores do cálculo diferencial, e a primeira pessoa a tentar predizer, pelo uso da matemática, os possíveis resultados da tomada de decisão humana, o que faz dele o antepassado da moderna ciência política. (Anthony Padgen, The Enlightenmente and why it still matters)

Pensa-se muitas vezes que entre o pensamento mítico e o pensamento racional há uma diferença absoluta, que a razão obedece a regras e parâmetros muito diferentes daqueles que animaram os saberes tradicionais da humanidade. Se Condorcet, na história da cultura ocidental, tem um peso nunca suficientemente sublinhado, esse peso liga-se ao triunfo do Iluminismo e das ideias racionalistas que, na sequência do triunfo da filosofia moderna e do nascimento da nova ciência, se apoderaram do panorama cultural da Europa ocidental. 

Ora se a previsão das consequências das decisões humanas, baseada no uso da matemática, faz de Condorcet o antepassado da moderna ciência política, o impulso para penetrar no futuro torna-o descendente de Tirésias, de Cassandra, dos profetas do Antigo Testamento. Sob a capa da razão - e da razão matemática - esconde-se sempre um impulso mítico, uma ficção produzida pela imaginação. A razão surge, deste modo, como um processo de racionalização e abstracção, mas que, pela sua própria origem, não deixa de ter uma natureza ficcional.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Operação cirúrgica

Xaime Quessada - A guerra (1967)

Tudo parece caminhar para que os EUA, reivindicando uma suposta superioridade moral para castigar um alegado ataque de armas químicas do regime sírio contra as forças oposicionistas, se disponha a entrar numa nova aventura no mundo islâmico. Fala-se em operação cirúrgica, mas as cirurgias no Iraque e no Afeganistão deram lugar a um pandemónio sem fim. O regime sírio não é, certamente, flor que se cheire, mas os oposicionistas não prometem nada de bom, e o medo daqueles que são apanhados no meio do conflito, como os cristãos, cresce desmesuradamente com a ameaça de intervenção (veja-se a posição do bispo de Aleppo). 

Qual a finalidade de uma operação ocidental? Favorecer a ascensão ao poder dos fundamentalistas? Lançar mais uma acha na imensa fogueira que é o Médio Oriente? Obedecer aos interesses dos falcões militares e da direita republicana? Seja qual for a motivação norte-americana, as potências concorrentes, China e Rússia, dificilmente aceitarão a intervenção e o Ocidente continuará o seu caminho de isolamento. Seria bom que Obama fosse, de facto, diferente dos seus antecessores e pusesse de lado essa terrível combinação de superioridade moral americana e interesses dos senhores da guerra. Infelizmente, nada garante que Obama não siga a tradição.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Leituras Poéticas - Ives Bonnefoy - L'été de nuit - I

Vincent Van Gogh - Noite estrelada (1889)

Il me semble, ce soir
Que le ciel étoilé, s'élargissant,
Se rapproche de nous; et que la nuit,
Derrière tant de feux, est moins obscure.
Et le feuillage aussi brille sous le feuillage,
Le vert, et l'orangé des fruits mûrs, s'est accru,
Lampe d'un ange proche; un battement
De lumière cachée prend l'arbre universel.

Il me semble, ce soir,
Que nous sommes entrés dans le jardin, dont l'ange
A refermé les portes sans retour.

                                                      (Ives Bonnefoy, L'été de nuit - I)

Parece-me, neste anoitecer
Que o céu estrelado, dilatando-se,
Se aproxima de nós; e que a noite,
Atrás de tantos fogos, é menos obscura.
Também a folhagem brilha sob a folhagem,
O verde, e o alaranjado dos frutos maduros, cresceu,
Candeia de um anjo que se aproxima; um estremecimento
De luz oculta inunda a árvore universal.

Parece-me, neste anoitecer
Que entrámos no jardim, cujas portas
O anjo para sempre fechou.

                                                      (Ives Bonnefoy, L'été de nuit - I. Tradução minha)

Este poema, em cujo núcleo dinâmico encontramos o céu estrelado, não pode deixar de evocar a célebre frase de Kant, inscrita no seu túmulo em Konigsberg: Duas coisas, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento se ocupa delas, enchem-me a alma de crescente admiração e respeito: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim. Se poeta e filósofo podem admirar-se – ou espantar-se – perante o céu estrelado, as vias que seguem, posteriormente, afastam-se. Kant convoca o respeito e, através deste sentimento, faz entrar a razão. O respeito é um sentimento racional, independente da sensibilidade. Bonnefoy, por seu turno, mergulha no mundo sensível, no jogo das aparências, para inscrever a dinâmica do céu estrelado na narrativa mítica e exprimir o desejo de retorno ao jardim do Éden, de onde a humanidade foi, irrevogavelmente, expulsa.

O poema é posto, logo na abertura e também no início da estrofe final, sob o signo da aparência. Podemos perguntar, em primeiro lugar, o que distingue a primeira aparência da segunda; em segundo lugar, que dinamismo conduz o poema da primeira à segunda aparência. A primeira aparência é-nos dada por uma ilusão da sensibilidade. O céu estrelado parece dilatar-se e, desse modo, aproximar-se de nós. Também a noite, devido à presença das estrelas, é menos obscura. A sensibilidade é tocada pela luz estelar que dissolve o negro da noite. Luz e trevas confrontam-se no palco dos nossos sentidos. A segunda aparência, dada na estrofe final, leva-nos do mundo da experiência sensível para o mundo mítico do Paraíso, do qual fomos expulsos e cujas portas / o anjo para sempre fechou. A experiência da noite estrelada, no poeta e ao contrário de Kant, não produz respeito, mas a ilusão de um retorno ao lugar originário.

Este retorno ao paraíso resulta do jogo entre luz e trevas. Como? É o próprio dinamismo do céu que, pleno de fogos ou de luzes, gera uma sensação de dilatação da luz e do recuo da noite, que se torna menos obscura. E essa luz que se amplia não faz apenas recuar as trevas. Ela toca a própria natureza (a folhagem brilha sob a folhagem / o verde, e o alaranjado dos frutos maduros, cresceu) e metamorfoseia-a na luz sobrenatural de um anjo que se aproxima. É a dinâmica da luz celeste que transforma a experiência que temos da terra e abre, à imaginação, o caminho para o jardim, caminho iluminado pelo estremecimento / de uma luz oculta. O jogo das aparências torna-se, deste modo, uma evocação da experiência mítica originária do homem. A admiração, na poesia, não dá lugar ao respeito e à convocação da razão, mas à evocação daquilo que dorme sob o manto da imaginação humana.

domingo, 25 de agosto de 2013

A transfiguração da pátria (4) A estirpe dispersa

Salvador Dali - Sombras na noite que cai (1931)

São as horas solitárias em que a noite nasce,
traça um rumor de alfazema sobre a terra
e espera que os seres adormeçam para,
entre gritos e sussurros, os devorar.

Noite ressequida, o sangue lavou os campos,
e o vento varreu para longe as folhas.
Nelas havia um segredo, a conjura do mal
sobre a fascinada servidão dos fracos.

A estirpe dispersou-se há muito, levada
pelo rufar dos cães na folhagem nocturna.
Uma cilada  de invernos abre-se a leste,
enquanto o cantar do galo anuncia um rosto,

branco e bravio, sobre o oceano de púrpura.
A noite desceu pelo rio da saudade.
Ouvem-se os pássaros em debandada
e no bronze da aldeia ecoam ainda as trindades.

sábado, 24 de agosto de 2013

Os olhos atópicos do poder

Anónimo Românico - Os olhos atópicos do Querubim (Santa María d'Esterri d'Àneu)

Há duas ideias acerca do controlo que o poder exerce sobre os indivíduos que me parecem erróneas. Uma que sublinha o facto de se estar a viver numa sociedade liberal, na qual as liberdades individuais são maximizadas e a vigilância se dirige apenas para as zonas negras do crime. A outra diz-nos que as nossas sociedades são uma emulação das ficções distópicas, nomeadamente do Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, do 1984, de George Orwell, ou de O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler. Estas distopias ficcionais são alegorias das sociedades modernas. O que marca a modernidade, ao nível do controlo dos cidadãos é a vigilância centralizada. O dispositivo emblemático deste controlo é-nos dado pelo chamado  panóptico de Bentham (pode ver uma imagem aqui). 

Nos tempos em que vivemos, as sociedades liberais, contrariamente à propaganda dos adeptos, são sociedades de intensa vigilância e controlo dos cidadãos. Contudo, contrariamente a certo pensamento de esquerda, esse controlo já não se faz de uma forma tópica centralizada. Uma metáfora sobre as novas formas de vigilância pode ser dada a partir de uma pintura românica anónima. Nos olhos atópicos do Querubim encontramos uma representação das actuais formas de controlo dos cidadãos e de vigilância de cada um. Os olhos estão em todo lado, embora não estejam em nenhum lugar específico. Não estão centralizados, mas qualquer centro de poder tem capacidade para, de um momento para o outro, recolher a informação necessária sobre alguém. Se as utopias modernas deram origem às distopias das sociedades totalitárias, as actuais utopias liberais, conjugadas com a terceira revolução industrial, estão a gerar aquilo a que se pode chamar atopias, onde o poder, etéreo como um querubim, retirando-se do espaço físico, nos observa e controla em qualquer lado. Vivemos, todos nós, sob os olhos atópicos do poder.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Limitação de mandatos


Estamos próximos das eleições autárquicas e o país continua a assistir ao imbróglio dos candidatos que, já eleitos por três vezes, se apresentam à eleição noutro município. Ninguém parece saber se estas candidaturas são legais ou ilegais. Não são, porém, estas tortuosidades inerentes aos processos legislativo e judicial que me interessam, mas a substância da limitação dos mandatos. Esta limitação é, para as justiça das instituições e para o saudável funcionamento da democracia, boa ou má?

A limitação de mandatos é boa e deveria ser mais radical. Mais radical porque deveria apenas permitir o exercício de um cargo político por dois mandatos, sem possibilidade de mais alguma vez o eleito o vir a ocupar, e sublinhando no caso das autarquias a clara proibição de se candidatar a outra autarquia do mesmo nível, ainda que em concelho diferente.

Por que motivo esta drástica limitação é boa para a democracia e torna as instituições mais justas ou, no pior dos casos, menos injustas? Não será a limitação de mandatos um desaproveitamento da experiência política acumulada? Comecemos por esta questão. Aquilo que é importante evitar é que a política se torne uma profissão. Numa profissão, o profissional segue o interesse próprio e trabalha para si mesmo. O exercício de um cargo político visa o bem comum e deve ser exercido de forma imparcial, mesmo que isso exija o sacrifício do interesse próprio. Servir uma população, sacrificando o seu interesse, durante oito anos, é já um grande contributo à comunidade e não se deve exigir mais. Mais do que isso, por outro lado, pode conduzir o político a ver a sua função como uma profissão e a perder de vista o fim para que foi eleito.


O poder político, pela sua natureza, tem uma capacidade enorme de penetrar na vida das comunidades e de criar longas teias de interesses pessoais e de família (família biológica, social, política, económica, desportiva, etc.), teias essas que vão, sem se dar por isso, enviesando o sentido de imparcialidade e de justiça. Uma longa presença das mesmas pessoas nos mesmos cargos tem tendência a tornar toda a comunidade dependente dessas pessoas, contribuindo assim para a erosão da democracia, para a injustiça das instituições e para a anemia da sociedade civil, pois tudo depende de uma pessoa ou grupo de pessoas que se perpetuam no poder. A drástica limitação de mandatos é, deste modo, um dos contributos mais importantes que se pode dar para fortalecer as instituições políticas e para libertar a sociedade civil da tutela dos actores políticos.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Darío Villalba - Ecce Homo II

Darío Villalba - Ecce Homo II (1991)

O jogo entre a denominação e a pintura, no quadro de Villalba, parece ser uma ironia, a exploração risível da crença do espectador no valor da arte moderna, o uso indiscriminado de uma expressão latina que nada liga ao que é dado a ver. Todavia, esta impressão é de imediato posta de lado se nos colocarmos no âmbito da tradição judaico-cristã. A expressão Ecce Homo (Eis o homem) terá sido a expressão latina usado por Pôncio Pilatos ao apresentar Cristo aos judeus. Esta passagem neo-testamentária gerou uma imensa tradição pictórica na história da arte ocidental. Para compreender, porém, o que se manifesta no quadro de Villalba, é necessário recorrer a outra ideia bíblica. O homem é pó e ao pó retornará. No quadro de Villalba, olhamos a nossa natureza e o destino do corpo. A ironia tem a vantagem de sublinhar a risibilidade humana, o ridículo das nossas pretensões, o mau fundamento de toda a glorificação do homem, a vaidade que pomos na máscara com que escondemos a poeira de que somos feitos.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A transfiguração da pátria (3) O silêncio da noite

Mon Montoya - Objectos na noite, sombras (1999)

Removo a poeira que oculta a luz
e deixo fermentar as imagens
que trago no fundo do corpo.
São restos do mundo que amei,
os velhos pinheiros agora ardidos,
campos onde o sol descia entre águas,
alguma memória na orla da floresta.

Faço de tudo isso um pequeno manual,
irónica recordação do tempo
em que os castelos cobriam a paisagem
e de lá avistava o inimigo.
Depois, componho nas margens do Tejo
um longo hino e medito na queda
que assombra o silêncio da noite.

As praias morrem de turistas
e as cidades, reminiscências de um amor,
cantam um requiem pelos dias felizes.
O mal chega sob a figura do futuro
e uma lepra azeda infesta as mãos,
traça runas pelas paredes,
a sombra da minha sombra ao partir.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

A terceira opção


A Alemanha é o primeiro país europeu a admitir uma terceira opção no registo do sexo dos recém-nascidos. Antes só a Austrália e a Nova Zelândia o faziam. Os bebés cujo sexo não esteja completamente definido poderão ser registados como de sexo indefinido. Para além da perturbação jurídica e social que a nova opção introduz, o que está em jogo é o reconhecimento de uma realidade que as categorias mentais se recusavam, apesar do desenvolvimento das ciências da vida e da natureza, a registar. Há uma outra coisa, todavia, mais marcante. Trata-se de criar uma categorização jurídica e social que dê conta da imperfeição da natureza, nomeadamente da natureza da vida humana. 

Estamos longe de uma natureza perfeita. Toda ela parece ser um imenso laboratório de tentativas e erros, de ensaios mais ou menos felizes. Isto significa, também, que a natureza como modelo ideal ordenador da vida e acção humanas (que ainda hoje se pode encontrar em certos discursos de natureza ecológica) desaparece, se por natureza - e também aqui se pode inscrever o denominado direito natural - se entende algo de perfeito e acabado (seja fruto da criação divina ou do desenvolvimento das suas próprias forças e potencialidades). No entanto, a natureza ainda poderá fornecer um modelo ao homem, se for entendida agora como esse imenso laboratório de tentativas conseguidas e/ou fracassadas, essa gesta feita de erros e incongruências, mas também de resultados felizes. 

Reconhecer uma terceira opção no registo do sexo é fazer inscrever na linguagem jurídica a imperfeição da natureza e, em particular, da natureza humana. E a religião, nomeadamente os monoteísmos, como poderão lidar com a ideia de uma criação imperfeita, e de uma natureza que tacteia e que se engana, com a ideia de um terceiro sexo? Não serão eles atingidos definitivamente por este reconhecimento jurídico de uma terceira possibilidade, nem masculina nem feminina? Talvez a resposta esteja no primeiro capítulo do Génesis. Em cada acto da criação, Deus reconhece que o resultado desse acto é bom, mas não que é perfeito, acabado. 

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Meditações Taoistas (19)

Viktor Vasnetsov - Os quatro cavaleiros do Apocalipse (1887)

Quer-se a decadência:
É preciso, primeiro, fazer florescer.
Lao Tse, Tao Te King, XXXVI

Os quatro cavaleiros repousavam há muito e os homens, sonâmbulos e de memória frágil, erguiam estátuas nos caminhos, comemoravam, em cada hora, as flores que brotavam do seu engenho, olhavam-se no espelho e sentiam-se felizes com o que viam. Ricas eram as cidades e não havia quem não pensasse no seu triunfo e na glória que o futuro lhe destinaria. Quem tinha a memória dos outros tempos? Quem sabia das provações que o passar dos anos tinha enterrado nas areias do deserto? O silêncio a tudo tinha tragado e as velhas tradições eram, nos dias de glória, coisa abandonada. Não havia um pai, um avô que as soubesses, o antigo laço estava desfeito.

Quando os cavaleiros acordaram do seu longo sono olharam demoradamente a Terra e sorriram. Um, aquele que tinha por montada o cavalo amarelo, disse: “ainda não chegou a nossa hora”. “Sim, tens razão”, acrescentou o do cavalo vermelho, “ainda não estão suficientemente maduros, embora a cegueira que os toma seja já irremissível”. Sentaram-se. Tinham todo o tempo e ficaram, de longe como o tigre que espreita a presa, a contemplar a azáfama dos homens, o crescimento das cidades, o artifício das moradias, o prodigioso engenho fruto do roubo do velho Prometeu.

O cavalo branco era montado por um estranho cavaleiro. Noutros tempos, ao avistá-lo, os homens chamaram-lhe Peste, e dele fugiam, embora sem esperança de salvação. Nos olhos, apenas o terror e nos lábios uma oração, que muito raramente comovia a divindade. A Peste, depois de perscrutar atentamente o horizonte, sorriu e disse: «Serei o primeiro a entrar em acção. São ricos os homens, mas nem todos. A maioria é frágil. Semearei aí a dor e a semente frutificará por todo o lado. Depois, será a vossa vez.»

Quando os poderes humanos decretaram a proibição do uso da memória e proclamaram que apenas o futuro era o desígnio da vida dos homens, os quatro cavaleiros ergueram-se. Os seus gestos eram lentos e cheios de enfado. Quantas vezes tinham feito o mesmo trajecto, castigado os mesmo crimes, semeado o mesmo joio? O mundo desprevenido continuava no acelerado ritmo dos negócios e, quando a velha trombeta soou, ninguém a ouviu. Uma peste incontrolável disseminou-se entre os homens. Depois, as colheitas diminuíram e a fome alastrou no mundo. Confusos, os poderes do mundo declararam guerra uns aos outros. Ao longe, a morte, no seu cavalo amarelo, erguia triunfante o estandarte da vingança.

domingo, 18 de agosto de 2013

Primaveras e a Ilha dos Mortos

Arnold Böcklin - A ilha dos mortos (1880)

Talvez não fosse possível a sobrevivência dos regimes árabes que entraram em convulsão com a denominada Primavera Árabe. Mas nada justificou, ou justifica, o entusiasmo que essas transformações políticas geraram no mundo ocidental. O Ocidente, limitado por uma visão unilateral do mundo, estava, e continua, convencido que o único caminho para o mundo é a democracia liberal, de cariz individualista, que cresceu nos países anglo-saxónicos e na zona de influência do protestantismo. Este equívoco - o qual nem lhe permite perceber a natureza da Europa do Sul - torna possível todos os devaneios sobre a evolução do mundo muçulmano e cujos resultados trágicos, mais uma vez, se estão a constatar no Egipto, para não falar da guerra civil que tomou conta da Síria. Estas Primaveras não são estações de esperança, mas antes a abertura de mais um canal que liga o mundo à nunca saciada Ilha dos Mortos.

sábado, 17 de agosto de 2013

A des-simbolização da polítca

Tenho passado nos últimos tempos por múltiplos concelhos do país, todos eles já em plena campanha eleitoral. O que me tem prendido a atenção é aquilo que praticamente não se vê, os símbolos dos partidos. As candidaturas, fundamentalmente as da área dos partidos da governação, tentam ocultar as suas ligações políticas, tentando dar a entender que as gentes locais nada têm a ver com os desmandos dos chefes e das governações. Estamos perante uma verdadeira des-simbolização da pertença política. Algumas notas sobre este processo.

Em primeiro lugar, isto decorre de um equívoco que todos os partidos alimentam. A ideia é simples e parece render votos: nas eleições autárquicas o que está em questão é as pessoas e não as ideologias, como se a ideologia se evaporasse abaixo da disputa pelo Estado central. O que estaria em jogo, seria assim, o suposto mérito dos candidatos. Não haverá políticas autárquicas de esquerda ou de direita, mas melhores ou piores executores de uma política localmente universal. Esta ideia é corrente e funciona para todos os lados. Mas é falsa, pois mesmo ao nível municipal se colocam questões que esquerda e direita divergem na resposta.

Em segundo lugar, existe neste momento, nas candidaturas do PSD, CDS e PS, um incómodo geral por serem partidos responsáveis pelo estado a que se chegou. As candidaturas autárquicas querem mostrar-se puras, imaculadas, sem qualquer responsabilidade pelas penitências que as governações centrais impõem aos pobres cidadãos, como se o domínio autárquico fosse um lugar de pureza e um paraíso político incontaminado e incontaminável. Nada de mais falso, mas os eleitores gostam deste tipo de ilusão, pois confiam na velha manha dos autarcas para dilapidar os dinheiros públicos e beneficiar a "terra".

Por fim, este processo de des-simbolização da vida política é um sintoma da agonia do regime político em que vivemos. Nos dias de grande pujança do regime, os partidos, por norma, orgulhavam-se dos seus símbolos, e estes eram poderosos veículos de identidade, que agregavam os eleitores e os ligavam a uma ideia central, a um projecto imaginário que os levava a formar uma crença sobre o destino da comunidade. No actual quadro, serão muito poucos aqueles que acreditam que os partidos tenham um projecto de futuro para a comunidade. A des-simbolização destas eleições inscreve-se numa ruptura entre a imaginação das pessoas e a possibilidade de crerem num futuro que seja melhor. A des-simbolização das eleições significa que a política deixou de constituir um sítio de esperança, como o foi durante muito tempo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Deslegitimação moral

Remedios Varo - Banqueiros em acção (1962)

Nós, propondo aos leitores pacientes que fixem de novo os olhos em horrores conhecidos, acreditamos que teremos já um novo e honroso fruto se a indignação e a repulsa que não se podem deixar de sentir sempre, se virarem também, e principalmente, contra paixões que não se podem banir, como os falsos sistemas, nem abolir, como as más instituições, mas sim torná-los menos poderosas e menos funestas, ao reconhecê-las nos seus efeitos, e detestá-las. (Alessandro Manzoni, História da Coluna Infame, 1840)


Vivemos num tempo em que os maus sistemas de ideias, que não podemos banir, e as más instituições, que somos impotentes para abolir, são poderosos e não parece haver nem outros sistemas de ideias para contrapropor nem outras instituições para substituir as más. No mundo assim configurado, não é, todavia, uma fatalidade a aceitação de ideias e de instituições que são manifestamente injustas. O grande escritor romântico italiano, Alessandro Manzoni, neto do célebre Cesare Beccaria (autor de Dos delitos e das penas), traça um claro plano de acção: reconhecer os efeitos das ideias e instituições dominantes; detestá-las, isto é, mostrar a sua natureza imoral; para diminuir-lhes o poder e a maldade que produzem.

O que Manzoni nos ensina é a necessidade de deslegitimar moralmente as instituições e ideias que produzem a injustiça. Este é um dos campos fundamentais nos dias de hoje, onde a ideologia da supremacia dos mercados sobre o homem parece ser uma coisa natural e estar inscrita na ordem do mundo para toda a eternidade. Deslegitimar moralmente estas ideias e estas instituições significa tornar patente o mal que elas produzem, as injustiças que fabricam, a desumanidade que fomentam, para lucro e gáudio de uma minoria. Para que as actuais instituições possam ser enfraquecidas no seu poder e na sua capacidade de produzir o mal, é necessário que os homens as detestem pela imoralidade que representam.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Mário de Carvalho, A Sala Magenta


O romance de Mário de Carvalho, editado em 2008, é o retrato cruel de uma impotência. Não apenas a do protagonista, Gustavo Miguel Dias, mas de uma geração de intelectuais boémios, tendencialmente de esquerda, que vivem de ilusões e de uma suposta, e nunca comprovada, genialidade. O romance não trata de uma queda, da transição de uma inocência originária para a situação degradada e decaída, embora não deixe de figurar, na personagem da irmã de Gustavo, uma reminiscência desse tempo anterior à queda. A narrativa instala-se, de imediato, no mundo fora do paraíso (este paraíso é, claro, o da infância onde tudo parece estar em aberto), e Gustavo Dias narra, rememorativamente e durante a convalescença dos maus tratos físicos que lhe foram infligidos durante um assalto, a sua vida decaída e impotente.

A narrativa é pontuada pela relação do protagonista com duas mulheres essenciais na sua vida. A irmã, Marta, e a amante, Maria Alfreda. Na primeira ecoa, ainda, um sinal de uma vida não decaída, uma espécie de recordação de um mundo de possibilidades que ele nunca chegou a realizar. Na segunda, espelha-se, de forma fria e cortante, a sua derrota e a natureza inútil de uma existência desperdiçada em coisa nenhuma, na boémia lisboeta, nas amantes ocasionais, nas heranças destruídas, nos filmes, poucos, que ninguém vê, num talento inexistente ou que nunca recebeu o duro trabalho necessário para o fazer florescer, num amor que nunca encontrou reciprocidade.

Mário de Carvalho, com a personagem de Gustavo Miguel Dias, retrata toda uma intelectualidade cuja vida criativa parece instalar-se nos anos de democracia, uma intelectualidade cuja legitimidade não deriva do reconhecimento do público mas de uma presunção própria. Se a personagem é cineasta, facilmente se poderia transportar para todas as outras áreas da criação artística. O que é desmontado, neste romance, é um mito que associa a criação e a boémia, tornando patente que o acto criativo não se compadece com a falta de trabalho e a exigência de rigor. Talvez um boémio possa dar uma personagem interessante, mas dificilmente dará um artista, no caso, um realizador.

A chave para compreender Gustavo Miguel Dias pode ser encontrada na forma como ele se relaciona com a irmã, Marta, e com Maria Alfreda. Marta, uma académica aposentada, recolhe-o, após o assalto, e cuida dele. Desde sempre que Gustavo trata a irmã com sobranceria e ostenta perante ela uma superioridade intelectual, que nada no percurso de ambos sustenta, a não ser a sua presunção. Superioridade que ele sabe ser falsa, mas que nunca, perante ela, o reconhecerá. Mas é esta irmã que, no naufrágio em que se tornou a vida do realizador, o trata e protege. Ela representa um mundo mais autêntico, o mundo originário da infância e, pelo seu percurso de vida, o mundo do esforço e da superação de obstáculos. Tudo aquilo que Gustavo rejeitou durante a vida.

Maria Alfreda é o grande amor de Gustavo, mas um amor não correspondido. Tornaram-se amantes e os encontros na sala magenta obsidiaram a vida do realizador. Não existia, porém, reciprocidade na relação. Gustavo fora preso nas armadilhas do amor, mas Maria Alfreda tinha da relação uma perspectiva meramente instrumental. Isso dava-lhe superioridade nos conflitos entre ambos e traçava um caminho de dor e de humilhação para ele. Ela era inteiramente livre e via-o como descartável. Ele era dependente e submisso a uma força que não controlava. Maria Alfreda simboliza a vida que Gustavo nunca consegue submeter ou sequer organizar, segundo os seus próprios fins.

A derrota existencial de Gustavo, que culmina com uma tentativa de suicídio - a sua impotência chega aí, à incapacidade de pôr fim à vida -, emerge então da recusa da autenticidade, figurada em Marta, e na aceitação do estatuto de coisa que resulta da submissão aos caprichos de Maria Alfreda. Entre a fuga à sua própria verdade e a existência decaída de uma boémia egoísta e coisificada, é toda uma geração de falsos artistas e intelectuais, tendencialmente de esquerda (aquilo a que se chamará esquerda caviar), que é retratada por Mário de Carvalho. Mas o retrato depressivo de Gustavo não é apenas o do grupo social a que pertence. Na verdade, são as elites e o país que são apreendidos naquilo que possuem de manifestamente depressivo, ilusório e impotente.

Mário de Carvalho (2008). A Sala Magenta. Editorial Caminho.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Um povo de árcades

Pablo Picasso - Arcádia (1900)

No fundo, somos um povo de pastores flautistas recalcados. Desdenhamos a política e os políticos e, ao mesmo tempo, nenhuma utopia nos atrai. A utopia é um exercício da imaginação, mas a sua realização exige a acção, o comprometimento da vontade em tornar real o sonho. Talvez sonhemos pouco, talvez a nossa vontade seja débil. A utopia não vende nesta quintal à beira-mar, por isso nem tivemos direito a uma grande e tenebrosa distopia. Tivemos a nossa distopiazinha caseira e campestre. Não se pense, porém, que a rejeição da utopia significa um compromisso com a realidade. Nem pensar. Tudo o que acontece de mal em Portugal é culpa dos políticos e nunca nossa. Mesmo quando somos nós que os escolhemos, a culpa é deles. Nós fomos vítimas da sua astúcia, de se terem apresentado à eleição. Desprezamos a utopia e a vontade necessária para a realizar, detestamos a realidade e a responsabilidade que ela nos exige.

O nosso lugar é a Arcádia, esse locus amoenus, onde viveríamos em harmonia com a natureza, bons selvagens, pastores serenos, vivendo segundo a prescrição carpe diem! Na Arcádia, não precisamos da vontade para realizar o sonho utópico. Não precisamos da liberdade cívica e da responsabilidade para lidar com os poderes da cidade, pois o nosso lema é o de Horácio fugere urbem (fugir da cidade). Na Arcádia, não há decisões a tomar nem utopias a realizar. Ali tudo flui espontaneamente, enquanto os pastores tocam flauta e dançam, na leve amenidade da vida, com as suas lindas pastorinhas. Somos um povo de árcades, exilado na tenebrosa vida social, nostálgicos do bom selvagem que havia - ou haveria de haver - em cada um.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Meditações Taoistas (18)

Autor chinês anónimo

Afirmam o espírito iluminado; estão apenas perturbados.
Dizem o espírito constante;  apenas estão inquietos.
São indiferentes como o mar; confusos como quem está agitado.
Lao Tse, Tao Te King, XX

Esse é o meu lugar, o sítio da perturbação, da inquietude, da confusa agitação. Uma sombra persistente acompanhou-me pela vida, dilacerou-me o espírito, abriu uma fenda no coração, que nada parece ser capaz de cerzir. A minha objectividade sempre foi enviesada e, salvo um ou outro equívoco, nunca no mundo encontrei algo que merecesse a piedade de uma crença. Quando enchem a boca de verdade, eu sorrio e, sorrateiro, saio para o ar livre. Quando era novo comprei barato algumas mercadorias. Pensava, ao vendê-las, que o mundo se tornaria melhor, um lugar mais decente. Mas tudo isso era fruto de confusa agitação. Não houve quem comprasse a tralha funesta e eu percebi, guiado por um instinto infalível, embora opaco, que não havia em mim alma de comerciante.

Tornei-me mais avisado, e quando me queriam vender outras e mais reluzentes fazendas, recusava com delicadeza e invocava a minha incapacidade genética para o comércio. Tudo era uma girândola de opiniões. As verdades, laboriosamente construídas, pereciam, sob o cutelo acerado de outras verdades, no efémero momento em que nasciam, para, daí a instantes, as assassinas entregarem, num outro patíbulo, o jogo e abandonarem a cena. Por todo o lado vi a expansão do comércio e raros foram os homens que encontrei que não tinham espírito de negociantes. Estes poucos viviam, como eu, na margem da inquietude. Líamos, nesses dias, todos os Livros do Desassossego que por aí havia e não sabíamos o que esperar.

Chegou, depois, o tempo em que, de forma cordata mas inflexível, a desordem se veio estabelecer. Não a desordem do tumulto, mas uma outra que se gera na impotência de organizar a inquietude, de a alimentar, de lhe dar novos rumos, ainda que contraditórios. As palavras começaram a faltar, pequenos esquecimentos, coisa de somenos. Foi o começo. Tudo se tornou mais lasso, os factos deixaram de se encadear, e o mundo foi ficando um amontoado de fragmentos, para os quais, cada dia que passa, se torna mais difícil encontrar ligação. As mesmas causas deixaram de produzir os mesmo efeitos e a face que vejo ao espelho pela manhã dificilmente a reconheço ao cair da noite. Quando encontro alguém que me conhece e me chama pelo nome, hesito sempre, preso na volúpia de uma tontura, sem saber se aquele é o nome que me deram ao nascer ou um inventado no instante. O coração inquieto deu lugar a uma mente perturbada.

domingo, 11 de agosto de 2013

Transfiguração da pátria (2) A sombra na floresta

Carlos Morago - Arvoredo (1998)

Uma sombra desceu sobre a floresta
e na clareira crepita uma memória triste, 
a precária oferenda a um deus cansado,
esquecido da velha aliança,
dos homens que correram pelos mares
e da água fizeram jardim e sepulcro.

Sentemo-nos no silêncio desta hora.
Dançam espectros surdos no horizonte
e a multidão aziaga corre enlouquecida,
sob os tambores da noite que chega.
Um gesto e as trevas caem sobre os olhos.
A cegueira mais pura ressoa sobre

os montes, a luz verde da salvação.
Esquecemos o nome e a estirpe,
um lenço de azedume tapa a vida fértil:
as cidades foram tomadas
e os campos onde derramámos o sangue
são pasto de ignomínia e traição.

sábado, 10 de agosto de 2013

A insustentável leveza do ser

Francisco de Goya y Lucientes - Ligereza y atrevimiento de Juanito Apiñani en la de Madrid (1816)

No tempo do governo do engenheiro Sócrates, as coisas eram más, havia muita ligeireza e nem sempre era clara a fronteira entre os interesses públicos e privados. Esperava-se, de um novo governo, que as águas fossem transparentes e que, perante a situação difícil em os portugueses se encontravam - e encontram -, a ligeireza e a leviandade fossem completamente erradicadas. Não o foram, pelo contrário. O culminar da leviandade chegou com a irrevogável demissão do ministro Portas e as hilariantes cenas que se seguiram. O Presidente da República acobertou toda a desfaçatez e falta de vergonha. Podia pensar-se que, salva pelo PR, a governação se tornaria mais sisuda, fingiria dignidade e construiria uma certa pose de estado.  Não seria a gravitas dos romanos, mas os governantes fingiriam essa gravidade. 

Impossível fingir o que se não tem. As diversas histórias dos swaps, que tocam um demissionário secretário de estado - já envolvido noutra polémica - e a ministra das Finanças, o estranho caso da compra de acções pelo novo ministro dos Negócios Estrangeiros, aliás idêntica a uma feita pelo actual PR, para não falar de coisas menores como a infantilidade dos briefings comunicacionais do governo, onde os super-génios Pedro Lomba e Poiares Maduro se mostram de uma imaturidade lombar, ou da vaidade supina de Paulo Portas que brinca às pessoas importantes à custa do Arquivo Histórico da Educação, tudo isto mostra que vivemos no reino da fantasia. Dir-se-á que em nada disto há crime. É possível que não, mas há de certeza uma insustentável leveza, uma leveza tanto mais insustentável quanto mais se tornam imponderáveis todas estas estranhas figuras, a quem os portugueses deram a possibilidade de mandar na sua própria vida.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

A paisagem desfaz-se


As árvores vão morrendo uma a uma. Quem se interessa pelas coisas da cultura e, em particular, da literatura, vai construindo uma paisagem, uma espécie de floresta composta por múltiplas espécies, por vezes, em aparência, incompatíveis. Vamos envelhecendo e a floresta envelhece connosco, talvez mais rapidamente que nós. Os mais novos raramente os consideramos dignos de  fazer parte daquela velha e sólida paisagem. Um preconceito. As primeiras perdas sentidas foram nesse ano aziago de 1978. Entre Junho e Agosto, morreram dois grandes poetas, Jorge de Sena e Ruy Belo. Recordo-me bem de ter tido a sensação de uma grande injustiça. Em Outubro, chegou a notícia da morte de Jacques Brel, que eu descobrira algum tempo antes e que me deixara perfeitamente fascinado. Depois, com o tempo, vieram as mortes daqueles que constituíam a nossa paisagem. Augusto Abelaira - quem lerá hoje em dia Augusto Abelaira? -, Carlos de Oliveira - poeta e romancista de excepção -, Vergílio Ferreira - aquele de quem estive ideologicamente mais próximo -, Sophia de Mello Breyner Andresen, Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Helena Vieira da Silva, Eugénio de Andrade, Eduardo Prado Coelho e muitos outros que, a meus olhos, tinham mais ou menos brilho, mas que faziam parte dessa paisagem encantada que me fez ser o que sou. Hoje soube que também Urbano Tavares Rodrigues partiu. Era uma das velhas árvores dessa floresta. O tempo tem um imperativo que não é o do coração dos homens. A paisagem, a minha paisagem, desfaz-se.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A pior das ideias

Francisco Bayeu y Subías - Gloria del Espíritu Santo (1778)

Tudo quanto provém do espírito é superior ao que existe na natureza. A pior das ideias que perpasse pelo espírito de um homem, é melhor e mais elevada do que uma grandiosa produção da natureza - justamente porque essa ideia participa do espírito, porque o espiritual é superior ao natural. (Hegel, Estética)

Desligue-se a citação da generalidade da filosofia hegeliana e detenhamo-nos na superioridade da pior das ideias sobre qualquer, por grandiosa que seja, produção natural. Aqui encontramos a essência do projecto da modernidade: refazer a natureza segundo as ideias do espírito humano. Por pior que sejam essas ideias elas têm uma legitimidade que a natureza, nas suas produções espontâneas, não tem. Hegel escreve isto nos anos vinte do século XIX. Transportemos estas palavras para a experiência que nós, homens do século XXI, temos da história. De um momento para o outro, pressentimos que tudo está legitimado e justificado. As piores ideias, as mais nefastas, as mais odiosas encontram aqui a sua razão. A modernidade não é apenas a época onde o movimento, a mobilidade e a mobilização estruturam a vida dos homens. Ela é a era onde a natureza, devorada pelo espírito, deixou de ser um valor em si. A pior das ideias é melhor do que uma grandiosa produção da natureza. Talvez nesta formulação possamos encontrar a chave para o enigma dos nossos tempos.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Livros velhos

Jacob Lawrence - A Biblioteca (1960)

Manhã em Óbidos, toda a vila concentrada no turismo, nas gentes que vão e vêm, num fluxo de excursões ávidas de fotografias e surtidas familiares, as tradições inventadas ontem, a inevitabilidade de que as coisas sejam assim ou, então, morram desamparadas pelo tempo, pela ânsia de futuro, pela comodidade do presente. Nas nossas sociedades, o passado só tem futuro se render dinheiro. É a natureza das coisas. O que me levou lá, na verdade, foram as livrarias Ler Devagar, agora parte do projecto de indústria cultural que, com a sagacidade inerente aos nossos dias, o Município de Óbidos tem vindo a pôr de pé.

Mas não é disso que quero falar, mas da visita à Ler Devagar alfarrabista, uma livraria incrustada em caixas de fruta, de acordo com o típico da região Oeste. Quando se folheiam livros velhos, coisas que na altura, apesar de desejadas, não se compraram e agora, que já não interessam,  estão ali à disposição, há sempre um sentimento de nostalgia por um mundo que acabou ou por algo que acabou dentro de nós, que apenas deixou um leve traço, uma breve reminiscência. O pior de tudo, porém, são aqueles livros que têm uma assinatura e uma data, a prova de uma propriedade e um sintoma do apressado rolar do calendário. Esses livros incomodam-me, como se estivessem ali salvos de um naufrágio, pobres marinheiros à deriva, a prova da finitude de todos os projectos humanos, a antecipação do que acontecerá um dias aos livros que amei e que fazem parte da minha biblioteca, muitos deles assinados e datados.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

O cartel do crime

José Gutiérrez Solana - O cartel do crime (1920)

Uma mudança essencial na percepção das pessoas ocorre nos dias de hoje. Começam a compreender que o cartel do crime não está, mundo fora, no lado oposto ao da lei. O cartel do crime passou a fazer a lei e o crime tornou-se uma actividade legal e muito apetecível. A desvinculação do direito positivo de uma norma moral absoluta abriu o caminho. A desfaçatez, a força do poder, a sedução e, caso necessário, a violência fizeram o resto.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Da lógica como dominação

Paul Ackerman - La partie d'échecs

Gustavo não aceitava nem tolerava respostas contraditórias de Maria Alfreda. O consabido direito de entrar em contradição era um luxo que concedia apenas a si próprio.  (Mário de Carvalho, A Sala Magenta, p. 43)

Ensina-se e pensa-se que a lógica é um saber neutro e instrumental, algo que serve para que os diversos saberes e discursos tenham coerência e validade. Raramente se pensa, porém, que em torno dela existe já uma luta pelo poder e pela dominação. Exigir ao outro que não se contradiga, que o seu discurso obedeça às regras de validade universal, é arrancá-lo da sua singularidade e da visão particular que lhe anima o espírito. E quantas vezes o espírito, na sua equivocidade, apenas capta a contradição que há em tudo, a volubilidade inconstante do seu querer, a impetuosidade do vento que sopra onde, de onde e para onde quer.

domingo, 4 de agosto de 2013

Domingos de Verão

Michel Larionov - L'´Été (1912)

Os domingos de Verão junto ao mar são longos, como se trouxessem neles uma ameaça de eternidade, uma daquelas eternidades que caíam sobre nós na infância, e que ao crescermos logo deram lugar a um tempo maculado por uma velocidade crescente. Fecha-se os olhos e escuta-se o ir e vir das ondas, o vagar das coisas, um traço de nostalgia a rasgar a pele. O espírito descobre a irrealidade das suas preocupações, a futilidade das crenças que o atormentam, o inútil de todos os negócios do mundo. Inquebrantável, o oceano balança, vai e vem, e toda a verdade está nesse eterno retorno. A única convicção que me resta é a das ondas ocupadas a cumprir o calendário das marés. Nunca mais entardece.

sábado, 3 de agosto de 2013

Transfiguração da pátria (1) Corpos azuis e mãos verdes

Esses corpos azuis que se arrastam na lama,
os olhos abertos vendados de poeira,
os dedos sujos e as unhas cariadas,
o lixo que se dá em contentores de plástico,
ventre dilatado sem metáforas,
e a vida, servidão sem amo nem destino.

As pernas laceradas de arame farpado
e os pés arrastados na terra esburacada,
água nocturna sem estrelas,
prodígio de infâncias ignoradas pela rua.
Olho. Um mecanismo de seda rasga o horizonte
e mãos verdes abrem-se num tropel de uivos e sangue.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Silly Season

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Antigamente, o mês de Agosto era visto como a silly season, um tempo de frivolidade e um intervalo no conflito político e social. Como acontece em tudo na vida, a silly season não era para todos. Para muitos, mesmo no mundo ocidental, não havia lugar para a frivolidade, pois a vida impunha-lhes o peso das necessidades e não lhes dava intervalo para descansar das responsabilidades com que arcavam. No Portugal de hoje, neste país onde a generalidade da população vive à beira do colapso, haverá uma silly season muito especial.

É verdade que a moção de confiança apresentada no governo foi um exercício frívolo, embora não tenha sido uma patetice. Todos sabemos que a falta de legitimidade do governo não reside no apoio no parlamento, onde possui uma maioria confortável, agora recasada. A falta de legitimidade do governo é material e assenta em dois pontos. O primeiro diz respeito às promessas que fez para alcançar o poder e que pura e simplesmente rasgou no dia a seguir à vitória eleitoral. O segundo está ligado à base social de apoio ao governo, que está longe de ser maioritária. Mas o governo precisava, por indicação do Presidente da República, de encenar o número da legitimidade para poder continuar o conjunto de malfeitorias políticas que orientam a sua acção e assim organizar a silly season com que vai brindar muitos portugueses.

É esse objectivo – o de tornar a vida dos portugueses ainda mais precária e difícil – que será o programa da silly season deste ano. Há decisões que só se tomam quando as pessoas estão distraídas ou ausentes, como o estão a descobrir agora muitos professores que foram atirados para a mobilidade especial através de um simples expediente na organização do ano lectivo, e cuja orientação chegou às escolas já com o mês de Julho a terminar. Mas este é apenas um exemplo.

silly season de muitas portugueses vai ser de muita dor e sofrimento. Gente que perderá o lugar onde trabalhou uma vida inteira, gente que verá a sua empresa ir à falência, gente que descobrirá, sob o terrível sol de Agosto, que nunca mais terá trabalho, gente que verá chegar o fim do subsídio de desemprego, gente que um dia viveu com dignidade e que amanhã terá de viver de caridade. O terrorismo social que domina o governo não parará para férias. Trabalhará incansavelmente no seu programa predilecto, perseguir os mais pobres e destruir as classes médias. A silly season dos portugueses será apenas mais uma estação no longo calvário a que o actual governo, preso aos seus fanatismo e extremismo ideológicos, tem sujeitado o país.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Leituras poéticas - Manuel Gusmão, "A roda brilhante"

Georgia O'keeffe - Luz sobre la pradera III (1917)

A roda brilhante
deste fruto azul
incendeia ao
alto o oiro
O gume
de um gomo
desenha com a sombra
a trémula
claridade
da luz
                                           (Manuel Gusmão, Pequeno Tratado das Figuras, p. 19)

Somos levados de imediato para o reino das coisas materiais (a roda, o fruto, o oiro...), mas esse transporte é feito de maneira deliberadamente equívoca. No verso "A roda brilhante" pode-se ler em "roda" a dimensão material do transporte, mas o espírito não consegue desligar "A roda brilhante / deste fruto azul" da auréola ou nimbo que na iconografia cristã envolve a cabeça dos santos ou do próprio Cristo, e essa conexão é acentuada nos dois versos seguintes: "incendeia ao / alto o oiro". Desta forma, toda a materialidade está contaminada por aquilo que ela manifesta, como se a glória do espírito coroasse a matéria dos corpos que, ao incendiar-se, se transmutam em oiro.

Desse fruto azul, de onde se desprende uma auréola que incendeia o oiro, emana o gomo que, com o seu gume, desenha com a sombra / a trémula / claridade / da luz. O leitor interroga-se sobre a natureza dessa luz. Será uma luz física, como parece depreender-se da sua propriedade "trémula claridade"? Ou será antes uma luz metafísica que emerge da sombra? Esta equivocidade é indecidível e o melhor será mantê-la como tal, pois ela ilumina as estranhas relações da matéria com o espírito. Onde está a fronteira de cada um desses reinos? O poema de Manuel Gusmão permite-nos colocar a questão da fronteira de lado e perceber a contaminação, talvez a fusão, entre a materialidade das coisas e o espírito que as habita.