sábado, 30 de novembro de 2013

A beatificação de Eanes

Francisco de Zurbarán - La visión del Beato Alonso Rodríguez

Há qualquer coisa de irritante no processo de beatificação em curso do General Ramalho Eanes. Não é que eu antipatize com a personagem. Pelo contrário, acho-a digna e estimável. Julgo mesmo que o General Eanes merece toda a consideração dos portugueses, pois prestou, efectivamente, serviços políticos relevantes ao país. O que me irrita é a sugestão de uma oposição entre o General e os políticos. No fundo, parece mais um candidato à glória dos altares do que um homem político. A beatificação parece que se deve às virtudes éticas que ele ostentou e ostenta. Não duvido que as tenha, mas não é isso que está em questão. A postura moral só tem interesse para um político se o ajudar a conquistar e manter o poder, de resto é, politicamente, irrelevante. Enquanto político, o General Eanes foi um político como os outros e usou a sua figura moral com eficácia para alcançar e manter o poder. Lutou pela afirmação do seu poder pessoal, e esteve longe de ser um homem apartidário. Não teve, por exemplo, nenhum problema moral em patrocinar um partido político a partir de Belém, enquanto era Presidente da República. Um partido lançado contra os partidos que o ajudaram a eleger. O PRD tinha como pano de fundo um projecto de poder pessoal do General Eanes, um projecto que visava liquidar politicamente o PS e Mário Soares. Falhou aí, foi derrotado politicamente. E é esta despartidarização de Eanes, esta quase apolitização da sua figura, que é irritante nas cerimónias de beatificação a que se tem assistido. 

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Velhos radicais


O dr. Mário Soares, devido às suas últimas intervenções, tem sido o bombo da festa de muitos sectores da direita, direita que, na verdade, muito lhe deve. Não há, por aqueles lados, quem não desanque em Soares. Indignam-se com o pedido de demissão do Presidente e do governo, bem como com as predições do antigo presidente sobre o advento de uma nova ditadura e a possível emergência, na sociedade, da violência social e política. Na verdade, há em Mário Soares um tom quase apocalíptico, um desespero pelo rumo de Portugal e do mundo. Será que o velho político perdeu o senso e vê coisas que mais ninguém vê? Ter-se-á Mário Soares, no final da sua vida, tornado um radical? Terá renegado a sua velha posição de político centrista?

Se o dr. Soares se converteu ao radicalismo, então encontrou um estranho companheiro de jornada. Também, pelos parâmetros da nossa direita, o Papa Francisco – aquele jesuíta conservador que era cardeal de Buenos Aires – se terá convertido ao radicalismo esquerdista. Foi agora publicada a exortação apostólica Evangelii Gaudium, que constitui uma espécie de programa do papado de Francisco. Sobre a situação política e económica mundial a posição do papa é, praticamente, igual à de Mário Soares. Quase que utiliza a mesma linguagem. Para dizer a verdade, as palavras do Papa, nos pontos 53 a 60 da Evangelii Gaudium, são ainda mais radicais do que as de Mário Soares. E como Mário Soares, Francisco fala de uma nova tirania e profetiza, ainda como Mário Soares, o surgimento da violência. A crítica do Papa Francisco ao capitalismo global é devastadora, mostrando como esse capitalismo, através da política, mata as pessoas, violando o mandamento divino Não matarás!

Na verdade, nem Mário Soares nem o Papa Francisco deixaram de ser o que sempre foram. Não são radicais esquerdistas, mas pessoas preocupados com o equilíbrio social e a harmonia entre as classes, isto é, velhos conservadores. Perceberam, como muitos outros conservadores e centristas, que o mundo – e Portugal com o mundo – caiu nas mãos de radicais, de pessoas que, através das elites políticas, estão a sugar literalmente os povos e atirá-los para a miséria. A ditadura de que fala Soares ou a tirania de que fala Francisco nem precisam de eliminar a liberdade política. Basta que políticos subservientes e venais tornem legal aquilo que é imoral. As pessoas não morrem de tiros. Morrem de fome, de falta de cuidados de saúde, de desespero. Soares só se enganou numa coisa, embora o Papa não. Nós não estamos à beira da ditadura. Ela já existe. É a tirania do dinheiro.

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Resultados de uma política

José Ortega - Emigrantes (1970)

Lembram-se da fase eufórica do actual governo? Lembram-se quando, sem qualquer pudor, a gente a quem os portugueses confiaram o poder receitava, como remédio para o desemprego, a emigração? Os portugueses, cordatos e humilhados, aceitaram a terapia e fizeram-se à vida. Mas olhemos um dos resultados do incremento à emigração: o primeiro-ministro belga dá exemplo de portugueses pagos a 2,06 hora como um caso de dumping social que o próprio governo belga quer combater. Não se trata apenas de um caso de exploração oportunista, e que incomoda o próprio governo belga, de mão-de-obra barata para tentar fazer descer os salários na Bélgica. Estes portugueses que aceitaram este grau de exploração fogem pura e simplesmente da exclusão. Exclusão essa fomentada pelas políticas que o governo português, sem pudor, aceitou, com empenho e contentamento, impor a uma parte da população. Em última análise, toda a política governamental não visa outra coisa senão isto, engrossar o exército de desesperados que aceitam trabalhar por qualquer migalha.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Metamorfoses 4 - Empalideces se te olho na sombra da rua

George Pierre Seurat - Mulher sentada (1882-83)

4. Empalideces se te olho na sombra da rua

Empalideces se te olho na sombra da rua
e deixo flutuar o zumbido do desejo,
a cálida onda perdida na floresta.

E na brancura que te toma o rosto
vejo a lua rasgada na noite,
o animal fugido da luz do paraíso.

Que o teu corpo seja a rosa pálida
que o meu sangue em segredo espera,
que o meu coração em fogo deseja.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Escrever e prescrever

Ronald B. Kitaj - Passion (1940-45) Writing

Em toda a escrita esconde-se uma estranha, embora banal, paixão. Em todo o escrever oculta-se uma vontade de prescrever. Não me refiro sequer à escrita jurídica que estabelece a lei ou aos códigos onde a lei religiosa emerge para ordenar um caminho de salvação aos homens. Refiro-me às realizações artísticas da própria escrita. Poesia, romance, drama são, em última análise, formas de prescrição com que os leitores se confrontam. Isto não significa que uma obra literária se resuma ou sequer contenha um imperativo ou um qualquer mandamento que se queira impor ao leitor. A questão reside na escrita, no seu carácter opaco, no desafio que ela coloca ao leitor. Uma obra de arte literária não pede para ser lida, mas exige que o leitor, ao lê-la, construa ou reconstrua o mundo que ela traz consigo. O imperativo de toda a escrita é que se penetre nela, até que ela deixe cair a opacidade e se torne transparente, deixando o mundo que, ao mesmo tempo cria e esconde. 

domingo, 24 de novembro de 2013

Tardes de domingo

Aubrey Phillips - A Calm Evening

São assim, plácidas, as tardes de domingo. Nelas adormecemos tocados pela melancolia do rio que passa. Uma hora e outra, mais outra ainda. O domingo aproxima-se da foz e não há barqueiro que, nesse rio, deixe o barco flutuar. Nas tardes de domingo, não sonhamos, porque sonhar é uma árdua tarefa que o corpo, exausto de ilusões e desejos, logo recusa. Lá fora, o sol ainda ilumina as ruas, esboça segredos, anuncia a glória da noite. Para lá desta janela, tudo é domingo e a minha alma, tranquila, endominguece com o sol pálido que, entre sombras, se entrega ao silêncio da tarde.

sábado, 23 de novembro de 2013

Metamorfoses 3 - Estas são as águas que nos foram dadas

José Salís - Alto-mar (1920)

3. Estas são as águas que nos foram dadas

Estas são as águas que nos foram dadas.
Nelas navegamos sob um céu de coral
e aguardamos nas ondas o silêncio do mar.

O coração dilata-se quando a noite chega
e um sussurro inquieto desce sobre o barco.
Não se ouvem sinos a repicar na lonjura

da terra bravia que quieta nos espera.
Estendemos os braços hirtos e ansiosos
para o além onde um deus chama por nós.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Futebol e futebol


Hoje não escrevo sobre a crise. Acabei de ver o jogo de Portugal na Suécia e apetece-me falar de futebol. Não da excelência de Cristiano Ronaldo ou do destino português de deixar as coisas para última hora, que é como quem diz para o play-off, mas do que há de contraditório no fenómeno futebolístico. O futebol não é apenas um jogo que move milhões e arrasta multidões pelo mundo fora. Ele tem, talvez como nenhum outro fenómeno, a capacidade de simbolizar o mundo em que vivemos.

Se olharmos para o que se passa nos grandes clubes, o futebol tornou-se uma imagem perfeita da globalização, da mobilidade de pessoas e de capitais. O dinheiro move-se e compra clubes e jogadores. Clubes ingleses são comprados por russos, árabes, sabe-se lá por mais quem. Ao transformarem-se em sociedades anónimas desportivas, os grandes clubes transitaram de uma associação local para uma sociedade do mercado global.

Apesar das competições mais importantes para os clubes serem ainda nacionais e continentais, o futebol de clubes é o espelho da perda de referências nacionais. As equipas dos grandes clubes – e até dos pequenos – são constituídas por jogadores das mais diversas proveniências, dissipando-se, nos balneários, a referência do clube à sua pátria de origem. Mesmo a relação entre adeptos e clubes – grandes clubes, claro – está a perder a tonalidade paroquial. Real Madrid, Barcelona ou Manchester United têm adeptos por todo o mundo. São clubes verdadeiramente globais. E todos os grandes clubes gostariam de se tornar globais.

Curiosamente, o mesmo futebol, talvez com os Jogos Olímpicos, tornou-se no derradeiro lugar onde o patriotismo e o apelo da nação resistem à usura dos mercados globais. Ao nível das selecções, o que está em jogo é o triunfo de uma nacionalidade, de uma pátria, sobre todas as outras. Num mundo orientado para os mercados, as grandes empresas, como o dinheiro, não têm pátria. O globo terrestre é o território onde operam. É a ideologia de um para-além das pátrias que o liberalismo prega por todo o lado. Ora, o futebol parece resistir a esta rasura da dimensão nacional ao afirmar, através das selecções, o fervor patriótico das comunidades.

Não é claro, todavia, se o futebol funciona como escape onde é permitido a manifestação do amor patriótico ou se é um elemento a que as pessoas recorrem como forma de resistência afectiva à pressão dissolvente de um mercado global. Este enigma torna o futebol um elemento central para nos interrogarmos sobre os caminhos que a política trilha nos dias de hoje, pois há futebol e futebol.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Metamorfoses 2 - Noite, noite, para onde caminhas?

Edvard Munch - Winter Night (1900)

2. Noite, noite, para onde caminhas?

Noite, noite, para onde caminhas?
Estendes as mãos vazias sobre a terra
e deixas o inverno repousar na erva.

Noite, noite, por que chamas as estrelas?
Sombra de água a correr no silêncio,
nicho de cristal a arder no rio.

Noite, noite, que nome te deram?
Lua solitária, ébrio jardim iluminado,
ó fogo que arde, anjo azul de prata.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O homem em leilão

Hiro Yamagata - Leilão (1983)

Quando caiu o Muro de Berlim e implodiram os regimes socialistas do bloco de Leste, proliferam teorias fantasiosas sobre a vitória do liberalismo, chegando mesmo Francis Fukuyama a proclamar o fim da História. Isto não significava afirmar que não haveria mais tumultos e revoltas, mas que a humanidade teria atingido, com a democracia política e a economia de mercado, aquilo que seria possível esperar da sociabilidade humana. 

Há certos locus sociais que representam muito mais do que aquilo que eles são em si mesmos, tornando-se, muitas vezes sem que se dê conta disso, verdadeiros símbolos onde toda a realidade social se resume e vê manifestar o seu sentido. O leilão é um exemplo disso. No leilão, o mercado funciona em toda a sua pureza. O valor da mercadoria revela-se ali na sua verdade, revelação essa suscitada pela relação entre oferta e procura.

Isto que funciona para as coisas que se transaccionam - desde objectos de arte até a barris de petróleo ou cereais - também funciona para o trabalho dos homens. Na verdade, nas economias de mercado, todos os seres humanos são objecto de um ininterrupto leilão. O ideal regulador das práticas liberais é desregular o mercado de trabalho, para deixar acontecer o leilão em toda a sua pureza, para que o valor daquilo que cada um dá ao trabalhar surja na verdade determinada pela oferta e a procura. Este, porém, é o principal problema para os defensores do fim da História e do liberalismo puro e duro. 

A economia de mercado funciona na suposição de que o trabalho humano, o esforço dos homens, não passa de uma mercadoria, de uma coisa. Isto, contudo, nunca deixará de ser sentido por muitos homens como uma imoralidade e uma imperfeição das nossas sociedades. O esforço do homem não é uma coisa entre coisas, um objecto entre objectos. Ele é a realização da sua humanidade e o produto da sua razão (teórica e prática). Enquanto, uma parte da humanidade achar que não é uma mercadoria, o liberalismo estará sobre fogo e a História longe, muito longe, do fim.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

A certificação de Narciso

Francis Bacon - Auto-retrato (1971)


Selfie foi eleita a palavra inglesa do ano, devido ao crescimento exponencial do seu uso na internet. O Público, no título da notícia, diz que é uma nova forma de nos vermos. Será. A fotografia virtual é a água do Narciso actual. Mas isto não é tudo. Narciso, o do mito, definha preso à paixão pela sua própria imagem. Não pensa partilhá-la, tão certo estava da beleza que via e amava. O Narciso contemporâneo, porém, vive angustiado e atormentado pelo que vê quando se contempla. Precisa de partilhar a imagem para se certificar. Para se certificar de quê? Da sua beleza, claro. Dessa beleza que suscita likes e comentários nas redes sociais. Mas esse é apenas o aspecto superficial do exercício. O Narciso precisa de se certificar, perante o sentimento de vazio que o habita, da sua própria existência, de que é alguma coisa. Selfie não é apenas um exercício onde se manifesta a selfishness, o egoísmo, é, antes de mais, um ritual mágico para aplacar as dúvidas sobre a realidade da própria existência. Se selfie é uma manifestação da selfishness, ela é mais que tudo o sintoma da nothingness, da insignificância, da vida do homem contemporâneo.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Revoltas conservadoras

Käthe Kollwitz - Aufruhr [Revolta] (1989) 

A ideia de revolução, introduzida pela Revolução Francesa e desenvolvida depois pelos marxismos e a revolução soviética, contaminou a nossa percepção das revoltas populares. A Revolução Francesa introduziu a ideia de mudança progressista de regime político, a substituição de uma mundo social e duma forma de distribuição dos actores por outro mundo e uma nova forma de distribuição dos papéis sociais. O marxismo, por seu turno, teorizou até ao paroxismo o papel da revolução assente num levantamento popular como forma de criar esse novo mundo. 

Tudo isto, porém, é algo que escapa às revoltas populares. Genericamente, elas visam não um novo mundo e novas distribuições de papéis sociais mas o retorno a um tempo onde foi possível viver, onde a injustiça não tinha incendiado o coração dos homens. Durante muitos tempo, ainda nos anos sessenta e setenta do século passado, o conceito de revolução, pelo menos em certos países da Europa, parecia estar disponível como horizonte do desenvolvimento político das sociedades. O que acontece é que, nos dias de hoje, a revolução enquanto dispositivo político parece ter-se tornado obsoleto. Este é o grande triunfo do chamado neoliberalismo. 

No entanto, a obsolescência da revolução tem como contrapartida a reemergência das revoltas populares. O que se assiste aqui e ali, por exemplo em França, não é ao nascimento de nenhum processo que, por uma súbita transformação qualitativa, conduza a uma revolução tal como aconteceu em França, em 1789, ou como foi teorizada pelos marxismos. Assistimos a revoltas súbitas que explodem e logo desaparecem, revoltas que se desligam das motivações ideológicas para serem expressão de uma espécie de saudade de um mundo que acabou. Na verdade, vivemos o tempo das revoltas conservadoras. Não porque sejam reaccionários politicamente - embora possam sê-lo -, mas porque nascem do desejo de conservar um mundo e um modo de vida que acabou, porque se originam num imperativo de luta contra os decretos do tempo. 

domingo, 17 de novembro de 2013

Os super-atletas do dinheiro

Salvador Dali - Atleta cósmico (1968)

Há uma perversidade fundamental na ideologia dominante. A apologia dos mercados, o triunfo da eficácia, o elogio da competitividade, toda essa panóplia de lugares comuns, que enxameiam o discurso quotidiano propagado pelos cordatos mass media, esquece uma coisa essencial. A humanidade no seu grosso não é composta por atletas cósmicos da economia, por gente que, se fosse desportista, seria atleta de alta competição. Quantos atletas medíocres existem por cada atleta de primeiro plano? A economia deve servir a humanidade e não apenas o pequeno grupo de sobredotados, altamente competitivos, que dominam o mundo da economia e da finança. 

Ora, se a humanidade, globalmente considerada, é medíocre, tem, no entanto, direito a uma sobrevivência digna. O problema não é a existência desse pequeno grupo de atletas cósmicos do dinheiro. O problema é que eles não devem monopolizar os benefícios do trabalho, reduzindo a generalidade dos homens à pobreza. Uma coisa é o reconhecimento do talento e a sua recompensa. Outra é a concentração egoísta dos proventos do trabalho e da criação humana em nome de um suposto mérito e eficiência económica. Dito de outra maneira, a economia dever servir a humanidade e não apenas os super-atletas do dinheiro.

sábado, 16 de novembro de 2013

Metamorfoses 1 - Gosto destes dias quase-inverno

Odilon Redon - Eva

1. Gosto destes dias quase-inverno

Gosto destes dias quase-inverno
o ar transfigurado em seda e sombra
um recanto azul no céu.

E se vejo lágrimas num rosto
ou se oiço cantar um pássaro
pego no lápis e escrevo

para o silêncio que há em ti,
feroz moradia desenhada pelo deus
na cruel encruzilhada da infância.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O caso francês

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Vale a pena olhar para França e para o destino que assola o actual Presidente socialista. Hollande foi eleito em 2012, criando uma maré de esperança. Esperança de que seria possível inverter o caminho que a Europa está a seguir e limitar os danos que a liberalização da economia mundial multiplica. Qual a situação de Hollande nos dias de hoje? O presidente francês é uma enorme decepção. As sondagens dão-lhe apenas 21% de apoio e tem a França à beira do motim contra as suas políticas. O pior caso é o da revolta dos barretes vermelhos contra as portagens ”ecológicas”, o desemprego e a carga fiscal.

Esta revolta é um fenómeno duplamente interessante. Junta gente de todos os credos políticos, da extrema-direita à extrema-esquerda, e de todas as classes sociais. Por outro lado, está a acordar o nacionalismo bretão, recomeçando-se a falar na independência da Bretanha. Dito de outra maneira, os franceses estão em pânico e, perante a impotência de Hollande, começam a virar-se para alternativas bem mais radicais. Quem esperaria, em dias de globalização triunfante, ouvir falar no nacionalismo bretão ou do crescimento a bom ritmo da extrema-direita nacionalista e antieuropeia?

O drama dos socialistas, onde devemos incluir o nosso António José Seguro, reside em nada terem a oferecer ao eleitorado. Durante décadas, promoveram uma política de compromisso e equilíbrio. Tinham a função de evitar o crescimento dos partidos comunistas, propondo aos eleitores programas reformistas apoiados no crescimento das classes médias. Hoje, porém, não existe a antiga clivagem entre capitalismo e comunismo. O comunismo desapareceu e o liberalismo não tem qualquer opositor formal e ameaçador. O que existe é uma direita liberal forte e confiante e uma massa enorme de gente desesperada e sem rumo, de gente pronta a votar em qualquer coisa que lhe prometa a fuga ao pesadelo em que vive.


Agora, quando os socialistas chegam ao poder, a única coisa que têm disponível é a política liberal da direita. O caso de Hollande, para além de uma ou outra medida platonicamente social, é esse. Não tem e não quer ter nenhuma política que rompa com o liberalismo dominante. Por isso, entre o eleitorado, a transição da esperança para o desespero é quase instantânea. A aspiração a uma vida que foi boa, e que agora se desfaz implacavelmente, vai conduzir as pessoas a acções cada vez mais radicalizadas e irracionais. Os socialistas, sem qualquer solução autónoma, serão arrastados, como o foi a direita de Sarkozy, pelo desespero ou pelo tumulto. Só isso.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Meditações dialécticas (22) - A fonte da violência

André Masson - Os cavalos de Diomedes (1934)

A mitologia grega tem o condão de revelar o fundo obscuro e cruel que suporta a vida, de manifestar quão selvagens podem ser os comportamentos humanos. Diomedes, rei da Trácia, tinha por hábito alimentar os seus cavalos com carne humana, carne de estrangeiros que as tempestades atiravam para a costa do reino. O que torna, ainda hoje, este mito eficaz não é a estranha dieta dos animais, mas a ligação entre o comportamento cruel e o poder político. 

O que se revela neste mito é a inumanidade do poder, a sua natureza antropofágica, a indiferença perante a figura do homem, a necessidade nunca saciada de devorar vidas humanas. Que Diomedes tenha sido derrotado por Hércules, que tenha sido dado como alimento aos seus próprios cavalos, mais do que nos mostrar a violência como caminho para a emancipação política, põe a claro que a violência do poder gera uma violência recíproca, tornando o poder - esse monopólio da violência legítima cujo desígnio é pôr fim à violência social - como a fonte geradora originária da própria violência social.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A alegre ascensão

Wassily Kandinsky - Alegre ascensão (1923)

As revoluções francesa e industrial representaram o fim de um mundo onde a estratificação social parecia petrificada. O sentido de uma vida estava praticamente decidido no momento da concepção. Tudo dependia da casta a que, por nascimento, se pertencia. Se o mérito tinha algum valor, só o tinha dentro duma dada casta e segundo limites bem precisos. O novo mundo trazido pelas duas revoluções libertou a humanidade da fatalidade do nascimento e abriu as portas ao que agora se chama mobilidade social. À humanidade, fundamentalmente àquela que habita nos andares mais baixos do edifício social - isto é, a generalidade dos seres humanos -, mas também à outra, deu-se um sentido preciso para a vida: ascender socialmente. A verdade de cada um já não reside na origem, mas no valor de mercado. O mercado é o lugar onde, na sociedade moderna, se revela não apenas a verdade do valor das mercadorias. É o lugar onde se revela o valor e a verdade de cada ser humano. Ascender socialmente significa então um reconhecimento do mercado. Sejam quais forem as ilusões que tenhamos sobre nós, sejam quais forem os bens sentimentos com que contemplemos a nossa vida e a dos outros, a única coisa que é relevante, na sociedade moderna, é a posição social, o valor de mercado de cada um. Foi a isto - a essa busca contínua de uma alegre ascensão social, e nunca se está suficientemente alto - que o Ocidente reduziu o sentido da vida do Homem. Talvez seja altura de meditarmos em dois velhos mitos, o de Ícaro e o da Torre de Babel.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Palhaços e acrobatas

Christian Bérard - Clowns and Acrobat

O que torna fascinantes estas figuras - palhaços e acrobatas - não é a sua função crítica. Eles não são, nos dias que correm, figuras da crítica social, agentes que desconstroem as personagens sociais, a imagem pública do risível e do desequilibrado que existe em todos nós. O fascínio - e ao mesmo tempo a perda de aura que os atinge - está todo em eles serem um espelho fiel daquilo que somos. Num palhaço ou num acrobata não se vê aquilo que todos queremos esconder. O palhaço e o acrobata não são outra coisa senão o retrato realista do homem moderno, desse homem que reduziu a vida a um conjunto de ridículas acrobacias.

domingo, 10 de novembro de 2013

Apocalipse educativo

Giorgio de Chirico - Escola de gladiadores (1953)

Toda a desgraça que o governo português prepara para a educação está aqui estampada. A Suécia merece ser um study case. Estes exemplos farão o ministro abrandar na sua sanha de destruição da escola pública portuguesa? Não, nem por sombras. Nuno Crato - um dos mais ideológicos ministros do governo - não se interessa pela realidade. Como todos os neo-conservadores tem um credo e age segundo os rituais da sua seita. Qualquer evidência esbarrará na ideologia. Para ele, o problema da educação não é nem pedagógico nem científico. É uma matéria religiosa. Como todos sabemos, os dogmas de uma religião não se discutem, impõem-se. Sempre que um fanático pensa trazer a salvação, a única coisa que faz é preparar o apocalipse.

sábado, 9 de novembro de 2013

Transfiguração da pátria (15) Um anjo sobre o pântano

Egon Schiele - Agony  (1934)

Eis o pântano ávido de cadáveres,
a terra fétida aberta para a sombra do futuro,
árvores raquíticas consumidas pelas pragas
vindas do negro subterrâneo da solidão.

Na praia, há despojos de uma vida em ruína,
o rasto exausto de pés moribundos que
a impudente maré pelas areias semeou,
enquanto, em silêncio, o oceano cantava.

Um anjo resplandece no infinito
e a sua espada flamejante cresce no horizonte.
Pássaro solitário, traz uma palavra de bronze,
o pão e o vinho, a mão que nos livre da servidão.

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Com Um anjo sobre o pântano termina o ciclo Transfiguração da pátria

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O apartheid português

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Estou obsoleto, definitivamente. Não bastando isso, sou professor do ensino público. Um mal nunca vem só. Na minha juventude, numa espécie de pós-adolescência, julgava que era marxista e acreditava que as classes sociais eram inconciliáveis, o que transformava a luta de classes no motor da história. Ainda jovem, deixei de crer no marxismo e, em vez de advogar a luta de classes, comecei a apreciar a negociação entre interesses diversos que, apesar da sua diferença, se poderiam ir conciliando, para benefício de todos. Isto é, tornei-me um moderado reformista. Dentro do meu reformismo havia uma coisa chamada escola pública, à qual devotei a minha vida.

Para mim, a instrução nunca foi uma mercadoria nem a escola um negócio. Tinha um papel que eu, na minha atávica estupidez, julgava essencial. Era um lugar onde crianças e jovens de todas as classes, diferentes pela origem e pelo status dos pais, eram iguais perante o professor. Esta igualdade não serviria para promover um igualitarismo, mas para desenvolver laços de amizade cívica entre todos. Para que, quando um rico e um pobre, no futuro, se olhassem, em vez de ódio e desprezo, existisse uma recordação dos tempos de escola e de vida partilhada. Isso fomentaria o respeito cívico entre pessoas socialmente desiguais. A escola pública é a única instituição onde é possível fazer isso, construir uma comunidade política fundada no respeito mútuo.


Este meu ideal republicano, que se desenvolveu em Portugal com a democracia, nunca foi aceite pelas classes altas e pelas elites políticas de direita. Muitas vezes, como acontece hoje em dia, o Ministério da Educação da República tem à sua frente pessoas que odeiam a escola pública, a escola republicana, e querem um país onde exista um rigoroso apartheid entre ricos e pobres. O novo estatuto do ensino particular e cooperativo, para além de reforçar a ideia da educação como negócio, é mais um passo para reconstruir, pois ele já existiu, esse apartheid. Somos governados, de facto, por gente que acredita na luta de classes, por gente que não gosta de conciliações, gente que acha que, em vez de amizade cívica entre pessoas diferentes, se deve fomentar a separação, a segregação social, o conflito e a submissão dos mais fracos. Com isto, virá a inveja, o ressentimento e o ódio, de um dos lados. Do outro, o desprezo, a manifestação de superioridade e o sentimento de casta, à qual se deve tudo. Portugal, quase sem se dar por isso, desliza, enquanto comunidade cívica, para a implosão. Não sei se 900 anos de história serão suficientes para o evitar.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Tempestades

Charles Lapicque - L'orage sur Bréhat

Um dos traços que mostra, na actualidade, a profunda corrosão do carácter manifesta-se no cinismo com que alguns evidenciam o seu contentamento pelo facto da sempre anunciada tempestade social não ter lugar. Este cinismo é particularmente cruel, pois existem inúmeras tempestades que atingem os indivíduos, lhes roubam o sentido da vida, os destroem moralmente, os fazem baixar os braços, os atiram para o inferno de uma vida sem esperança. Querem maior tempestade social do que esta? Só um carácter corroído e um intelecto corrupto podem achar virtuoso que a resposta à desgraça onde os portugueses foram metidos seja a ausência de indignação, o conformismo com o destino, a falta de tónus social.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Cenas circenses

Carlos Saenz de Tejada - Escena Circense (1924)

Uma das definições de circo, dadas pelo velho, mas mui nobre, dicionário da Porto Editora, reza assim: espectáculo de acrobacias, habilidades executadas por animais domesticados, cenas burlescas. Nunca uma definição foi tão apropriada ao que se passa no nosso país. Acrobacias, habilidades e cenas burlescas. Nada se faz segundo princípios nem por convicção. Tudo acontece, seja onde quer que seja, porque há uns habilidosos que não hesitam em fazer umas acrobacias e, se ninguém se comove com o desempenho, passam para o burlesco. Enquanto as pessoas se distraem na risota, eles espetam-lhe, literalmente, a faca nas costas.

sábado, 2 de novembro de 2013

O lugar do mal absoluto

Edvard Munch - Ansiedade

Por causa do meu post de ontem e de mais isto, retorno a uma velha ideia do filósofo francês Paul Ricoeur. O poder é o lugar do mal e o poder absoluto é o lugar do mal absoluto. Todos percebemos por que razão o poder é o lugar do mal. O poder existe porque nós praticamos o mal e ele, poder, pune o mal com o mal, a violência com a violência. O poder absoluto, porém, não tem qualquer limitação e, por isso, a prática do mal extravasa, em grande medida, a punição justa do mal cometido. O poder absoluto usa arbitrariamente e segundo os interesses dos seus detentores a capacidade de fazer o mal, de punir não apenas culpados mas também inocentes. Melhor, quando o poder é absoluto, ninguém é inocente. Todos são culpados e todos são suspeitos e, independentemente dos indícios, são puníveis. 

A democracia e os regimes constitucionais tiveram o papel de conter o poder, de o limitar à prática do mal apenas necessário. O que acontece, com a entrada em cena das novas tecnologias de informação e comunicação, é que a democracia deixou de ser eficaz para controlar quem detém o poder, mesmo que seja transitoriamente. Todos nos tornámos transparentes e a separação entre esfera privada e esfera pública está moribunda. Estamos a assistir à construção de novas formas de poder absoluto, formas essas que, não anulando o ritual formal das democracias, tornam a consciência dos cidadãos transparentes ao poder que as lê, restaurando, desse modo, o poder na sua forma absoluta. A política está a deixar de ser o lugar do mal para se tornar - ou voltar a ser - o lugar do mal absoluto.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Transparências

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Sempre me inquietaram as notícias sobre os desenvolvimentos científicos que, a coberto de algum bem para a saúde, anunciavam uma cada vez mais próxima capacidade para ler aquilo que se oculta no nosso cérebro e, assim, tornar a consciência transparente aos outros. Todos temos, na verdade, pensamentos inconfessáveis ou, pelo menos, pensamentos que não gostaríamos de partilhar com certas pessoas. Se a nossa consciência se tornasse transparente, a vida tornar-se-ia um verdadeiro inferno. Talvez não fosse mesmo possível viver. Esta minha inquietação estava ligada, no entanto, a possibilidades relativamente remotas.

Descobre-se, com as revelações de Snowden, que afinal essa transparência já existe. Que qualquer um, por mais irrelevante que seja a sua posição e as suas ambições, pode ser escutado e espiado. Na verdade, vivemos num estranho palácio de cristal. Tornámo-nos absolutamente transparentes a poderes que não controlamos ou sequer suspeitamos que existem, a poderes que vivem fora do palácio, cujas paredes, para quem está dentro dele, são opacas. A combinação de um encontro amoroso, a marcação de um jantar de negócios, um fim-de-semana inocente e discreto tornaram-se, com as novas possibilidades tecnológicas, assunto que interessa às potências mundiais e que elas, como se pode ver pelo caso dos EUA e das suas agências de informação, coleccionam com a avidez do voyeur. E se os EUA o fazem, por que motivo hei-de pensar que outras potências, mesmo bem mais pequenas, não o farão?

Nós vivemos não numa sociedade transparente, mas numa sociedade em que nos tornámos todos transparentes para o poder. O que significa isto? Significa que estamos vigiados muito para além daquilo que a lei permite. Qualquer um é espiado na sua intimidade, nos pensamentos mais secretos que só reparte com determinada pessoa, nos desejos, mais inocentes ou mais obscenos, que quer apenas partilhar com alguém muito especial. Snowden, com a sua denúncia, tornou claro aquilo que poderia ser um cenário de ficção científica. No século XXI, os homens perderam a opacidade que protegia a sua consciência e a forma com que, através de uma máscara, compunham a sua personagem social. Para o poder, o cidadão deixou de ter uma consciência inviolável.


Haverá possibilidade de nos furtarmos a tal vigilância? Claro que há, desde que não se use email, internet, telemóvel, telefone, carro, desde que não se passeie por sítios vídeo-vigiados, desde que… não se saia de casa, ia eu a dizer, mas mesmo aí a vigilância é possível. A única maneira de não sermos vigiados, de deixarmos de ser transparentes, é pura e simplesmente deixar de respirar.