sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

E se voltarem a ganhar?


Poderá a actual coligação no poder voltar a ganhar as eleições legislativas? A resposta é sim. Poder-se-á fazer um elenco, quase infinito, das mentiras eleitorais de Passos Coelho. Poder-se-á elaborar uma lista não pequena das tropelias e incongruências de Paulo Portas. Poder-se-á passar longas horas a nomear as maldades políticas que os dois, em conjunto, fizeram aos portugueses. Tudo isso, porém, pode não ser suficiente para os fazer abandonar o poder nas próximas eleições.

Um primeiro motivo reside na força da economia paralela. A situação económica do país é má, mas não tão má quanto a dizem os números oficiais. A economia paralela parece pujante e tem uma função útil para quem detém o poder. Diminui o descontentamento de parte da população. Funciona como um analgésico que, fazendo mal a longo prazo, tem um efeito dissuasor da dor actual.

Uma segunda razão reside nas opções tácticas do PS. Seguro, com uma ou outra excepção, esteve, no essencial, sempre ao lado das opções do governo. Raramente tornou claro que, sendo ele governo, alteraria as medidas tomadas pela coligação no poder. Jogou tudo na autodestruição do governo. Pensou e pensa que será ele que, perante o descontentamento da população, irá receber o poder. Poucas são as pessoas, porém, que o vêem como alternativa. Pelo contrário. Perante o nome de Seguro, os eleitores encolhem os ombros e exclamam: ”mais do mesmo”.

Uma terceira razão, já aflorada noutras crónicas, reside na não existência de uma alternativa ao arco governamental com credibilidade. Muita gente está revoltada, mas não encontra, no espectro partidário, uma alternativa de governo efectiva. As pessoas olham para o PCP e o BE como partidos de protesto, podem até votar neles, mas estão convencidas que, para lá da resistência, não existe uma política para governar o país dentro da actual situação económica global.

Há ainda uma quarta razão. A coligação no poder tem uma política, tem um programa definido e uma agenda clara. Precisou de mentir para chegar ao poder. Agora, porém, não precisa. Executou o seu programa e, sem piedade ou estremecimentos de consciência, reafirmou-o uma e outra vez. Por muito desespero que tenha semeado, por muito que possa vir a semear ainda, a coligação PSD/CDS-PP é a única que tem, aos olhos dos eleitores, uma caminho, um terrível caminho, mas um caminho para o país. Não digo que vá ganhar as ganhar as eleições, mas se a esquerda está convencida de que o governo está derrotado, pode ter uma das maiores surpresas da sua existência. E se PSD/CDS-PP voltarem a ganhar? Já imaginou?

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Imbecis e idiotas

William Turner - Sombra e Escuridão - A Noite do Dilúvio (1843)

Os políticos tornam-se, assim, os bodes expiatórios ideais de todas as frustrações e cóleras dos cidadãos das sociedades contemporâneas. Como há dias dizia Marcel Gauchet, parece que a classe política europeia "renunciou a pensar o que acontece e lhe acontece. Não lêem um livro há 30 anos, tem-se a impressão de que o que hoje existe é uma direita de imbecis face a uma esquerda de idiotas." (Manuel Maria Carrilho, DN de 2014-01-30)

Parece que vivemos em tempos diluvianos, em tempos onde reina a sombra e a escuridão. O problema nem sequer é aquele que Marcel Gauchet aponta, o facto de a classe política ter renunciado ao pensamento, de estarmos perante uma direita de imbecis e uma esquerda de idiotas. Se os políticos perderam o poder e o entregaram aos ricos, como é sublinhado no artigo de M. M. Carrilho, isso não se deve a uma questão de imbecilidade ou de idiotia. Estas até podem existir, mas como meras consequências e não como causas da situação.  O que está a acontecer é apenas o corolário lógico das opções tomadas há muito. Qualquer historiador sabe que a Revolução Industrial triunfou em Inglaterra, na transição do século XVIII para o XIX, porque a partir do século XVII, após a execução de um monarca, os objectivos da governação passaram a ser pura e simplesmente o lucro privado. Esta alteração na orientação da vida política foi decisiva. Depois do triunfo do capitalismo em Inglaterra, depois da Revolução Francesa e das campanhas napoleónicas, as outras nações foram-se convertendo a essa forma de governação, uma governação cujo desejo é apagar-se e deixar que as forças da economia se desenvolvam sem quaisquer coacções. Os políticos perderam o poder por terem renunciado ao pensamento? Não! Os políticos deixaram de pensar porque renunciaram há muito ao poder efectivo. O Iluminismo triunfante, pelo menos numa das suas encarnações, tinha na sua génese este projecto de renúncia do poder a si mesmo. Todo o projecto político liberal - que agora triunfa em toda a sua extensão no mundo Ocidental - está fundado numa espécie de ascese - o estado mínimo -, num exercício de renúncia - limitação do poder regulador -, e numa prática de humilhação - a subserviência perante o lucro privado. Os tempos, claro, são diluvianos. Sombras e escuridão ameaçam os homens e os Estados. Se somos, nesta época escura, governados por imbecis e idiotas é porque o mercado - isto é, os mecanismos de formação do lucro privado - não exigem outra coisa. O projecto das Luzes tem aqui o seu mais paradoxal triunfo.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Qualquer coisa saiu do lugar

Rothko - N.º 8 (1964)

Os tempos estão fora dos gonzos. Sorte é não ser Hamlet para os endireitar, mas que estão fora do lugar, lá isso estão. Não é só a questão das praxes e dos seus rituais absurdos, nem a da existência de verdadeiros gangs de jovens das classes altas que se batem quase até à morte. Não. Há mais qualquer coisa insidiosa que anda misturada com o ar que respiramos. Um clima de intolerância aliado a um desejo de humilhar os fracos parece estar a descer sobre a sociedade. O pior de tudo, porém, está em que aquilo que era evidente até há pouco - refiro-me a uma certa decência nas relações entre pessoas - está a tornar-se, a cada dia que passa, mais opaco. Esta opacidade crescente tem o poder de escancarar as portas por onde o mal entra. Por vezes, há a sensação de que a própria noção de direitos - nem me refiro já aos constitucionais, mas aos básicos, aos direitos do homem - está a tornar-se decididamente obsoleta. Qualquer coisa saiu do lugar.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Cadernos do esquecimento - 2 O meu lugar


Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 13.09.2009.

Nunca soube lá muito bem qual o meu lugar no mundo. A evidência da posição foi sempre para mim um mistério. Não é que não tenha feito tentativas, múltiplas, para me posicionar. Mas o estar em posição sempre me cansou. Talvez a fadiga resida numa debilidade física e tudo se circunscreva à falta de ginásio. Ter um lugar no mundo implica ter uma posição e ser incansável na manutenção do posto. A minha fadiga, mesmo se física, sempre foi acompanhada pela descrença. Quanto mais quis acreditar menos fé houve em mim. No cerne de tudo, fundamentalmente daquilo que defendi ou defendo, sempre descobri o irrisório. O irrisório nasce da tensão entre não ter lugar e o querer ter uma posição. Desde que fui expulso do paraíso, não eu mas Adão e Eva por mim, que vivo no não-lugar do irrisório. O irrisório cresceu quando os homens, excluídos do paraíso, pensaram que tinham uma posição na Terra e essa posição era o seu lugar. 

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Metamorfoses 14 - Ah! os sinais que reluzem na memória

Frédéric Bazille - Furstenberg (1865)

14. Ah! os sinais que reluzem na memória

Ah! os sinais que reluzem na memória
e traçam um caminho na escuridão
são sombras nascidas pelo meio-dia.

Houve tempos em que enchia de tristeza
cadernos de capas negras e folhas pardas.
Hoje amo o silêncio vivo da solidão.

Na casa, ouvem-se rumores. Espreito.
E deixo que cada coisa permaneça
no lugar onde sempre a encontrei.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Cadernos do esquecimento - 1 Envelhecer

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 12.09.2009.

No outro dia acabei por fazer 53 anos. Em dias como esse, surge, sempre insidiosa, a pergunta sobre o que é envelhecer. Envelhecemos quando o discurso se torna metonímico. Indisciplinada, a mente pensa por contiguidade, a essência da metonímia, associa os assuntos, as ideias, os conceitos uns com os outros através dessa relação de lateralidade. Mas um exercício de censura, socialmente exigido, obriga a que o discurso se foque num objecto e persista nessa focalização. Envelhecer mata a censura e liberta a manifestação metonímica do discurso. Dissimuladamente, começa-se a falar com os outros, deixando as palavras deslizar de assunto para assunto, num encadeamento que ameaça ser infinito. Eis os primeiros sinais, o triunfo da contiguidade metonímica da fala sobre o encadeamento lógico da comunicação. Envelhecemos quando o discurso transita do elemento sólido para o elemento líquido. Liquefeita a fala, ficamos, paradoxalmente, presos nela. Envelhecer é ficar fechado na liquidez interminável do discurso. É assim que me vejo já. 

sábado, 25 de janeiro de 2014

Da história e do homem

Paul Klee - End of a Last Act of a Drama (1920)

O fim da história, o fim do homem? É sério pensar sobre isso? - São acontecimentos longínquos que a Ansiedade - ávida de desastres iminentes - quer precipitar a todo o preço. (Cioran, Silogismos da Amargura)

Cioran publicou os Silogismos da Amargura em 1952. Passados cerca de 62 anos ainda será falta de seriedade pensar sobre o fim da história e o fim do homem? Esse pensamento será ainda o reflexo de uma ansiedade ávida de desastres iminentes? Não estará já o desastre consumado? É verdade que a história teima em desmentir os arautos do seu fim, mas aquilo que pensámos durante séculos - ou milénios - sobre a natureza do homem parece ter perdido sentido. De certa maneira, o homem - esse homem que esteve sob os olhares perscrutadores do pensamento ocidental - acabou. Resta-nos saber se aquilo que persiste ainda é um homem. Talvez já não sejamos humanos. Podemos, contudo, pensar ainda uma história como tendo um futuro à sua frente. Já não a história da humanidade, mas uma história não humana, a história da inumanidade.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Iniciativa


Julgamos que o conflito central que, nos dias de hoje, divide a sociedade gira em torno dos serviços de educação pública, de saúde e de protecção social. Este conflito é real e afecta a vida das pessoas, mas é apenas um conflito instrumental, uma arma utilizada numa guerra que tem outros objectivos estratégicos. O que está em jogo nas nossas sociedades – e em Portugal mais que noutros lugares – é um conflito sobre quem tem poder de iniciativa. Se escutarmos os governantes ou dermos atenção aos economistas de serviço, parece que o poder de iniciativa deveria ser o bem melhor distribuído na sociedade. Isto, porém, é uma falsificação deliberada.

Poder de iniciativa não é um dom que umas pessoas têm ou cultivam e que outras não têm ou desprezam. O poder de iniciativa é uma capacidade pessoal com raízes profundas no meio social. A iniciativa mobiliza a força de vontade do indivíduo, mas também a existência de um meio social propício, de uma educação adequada, de apoios e incentivos sólidos. O que está em jogo resume-se numa questão: quem são os indivíduos, e a que grupos sociais pertencem, que podem ter iniciativa? A retórica do empreendedorismo, tão ao gosto dos governantes, serve para mascarar uma outra verdade. As elites sociais – aquelas que, no discurso, valorizam a iniciativa – não têm qualquer interesse que a grande massa da população desenvolva o seu poder de iniciativa, que se torne autónoma, que rasgue um caminho próprio. Pelo contrário, precisam de uma multidão de gente submissa, à espera de ordens.

Estamos a assistir, através da degradação da escola pública, da limitação do acesso à universidade, da destruição dos serviços de saúde e protecção social, a um processo de drástica diminuição do poder de iniciativa da generalidade das pessoas, ao mesmo tempo que, demagogicamente, se proclama a bondade do empreendedorismo. Como se sabe, o capitalismo desenvolveu-se em guerra contra a sociedade de castas, contra as hierarquias sociais fechadas. Esse tempo acabou. As elites dominantes parecem ter um claro programa de retorno a uma ordem social hierarquizada e fechada, a uma nova Idade Média, fundada não em Deus mas no dinheiro. Para tal, controlam, através do Estado e do comportamento espúrio dos governantes, os mecanismos sociais que permitem desenvolver o poder de iniciativa. Há que impedir que a imensa maioria das pessoas seja autónoma. Para essas elites, a iniciativa é um bem que deve ser escasso e estar nas mãos certas, nas suas. O resto são fantasias para enganar tolos.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Metamorfoses 13 - A flor perdida na curva da estrada

Marc Chagall - O Sol de Paris (1975)

13. A flor perdida na curva da estrada

A flor perdida na curva da estrada
lembra incêndios em dia de Verão,
ocultas traições de sombra e cal.

Se um profeta a toma nas mãos,
um perfume de orquídeas desce na terra
e abre uma luz de silêncio na noite.

Agora que o Estio entardeceu,
eu sou a sombra incendiada que espera
na curva da estrada onde te perdi.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A degradação da razão

Para lá da tragédia que afecta seis famílias, há uma realidade, a da cultura das praxes académicas, que me deixa, como cidadão e como antigo estudante universitário, profundamente perturbado. Não consigo compreender como alguém aceita o tipo de relação que a praxe introduz. Lembro-me de há uns anos ver, perto de minha casa, um grupo de jovens futuros professores do primeiro ciclo, trajados de capa e batina, a rebolarem pelo chão e ganir como cães ou zurrar que nem burros sob as ordens de um pequeno e esganiçado dux de província. Este espectáculo degradante é o contrário daquilo que eu, como cidadão, desejo para o meu país. Agora, ao acompanhar as notícias da tragédia da praia do Meco, confronto-me com a linguagem e os rituais que compõem a cultura da praxe e sinto um vivo horror, tanto por haver gente que quer ser e é dux, como por haver tanta gente nova disposta a submeter-se a um dux e a entregar-se a um conjunto de rituais absurdos. Não deixa de ser sintomático que as nossas universidades - que deveriam ser a casa da razão - se tenham tornado o palco desta irracionalidade inominável, o viveiro de onde, mais tarde ou mais cedo, acabará por brotar uma cultura política de duces e de gente submetida, disponível para ganir ou para zurrar conforme o arbítrio do mandador.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Vicenzo Campi - Cristo em casa de Maria e de Marta

Vicenzo Campi - Cristo em casa de Maria e de Marta (segunda metade séc XVI)

São vários os grandes pintores que tomaram a visita de Cristo a casa das irmãs de Lázaro, Marta e Maria, para tema. Este quadro de um autor do século XVI, Vincenzo Campi, não é apenas marcado pela ironia. Traz nele o novo mundo que com o Renascimento começa a ser erigido. No texto bíblico (Lucas 10:38-42), a azáfama de Marta, preocupado com o serviço material do Senhor, tem um estatuto secundário. Maria, diz Cristo, escolheu a melhor parte. Escolheu sentar-se a seus pés e escutar-Lhe as palavras. Entre a acção de Marta e a contemplação de Maria, a melhor parte é a atitude contemplativa, o exercício da escuta.

O que vemos nós no quadro de Campi? O primeiro plano é ocupado por Marta e pela sua azáfama. Ela está rodeada de naturezas mortas e o seu gesto é o de uma mulher de acção. Cristo e Maria ocupam um plano remoto e absolutamente secundário, quase diluindo-se no horizonte. Apenas os discípulos se vêm ainda mais ao longe. Há uma clara subversão do texto evangélico. Agora o importante é o dinamismo de Marta, a forma como gere a cozinha e lida com os alimentos, os quais são representados em abundância.

Ao olhar este quadro é impossível não pensar em Nietzsche e no seu famoso "Deus está morto!" O quadro de Campi - um quadro da segunda metade do século XVI - é já o sintoma dessa morte. A contemplação de Maria, a presença do Cristo, a sombra dos discípulos, tudo isso é já completamente secundário. O essencial é a relação estabelecida entre a abundância de bens materiais - simbolizada no bem maior que é o alimento - e a actividade de Marta. Esta actividade não é a acção propriamente dita - o que seria a prerrogativa do cidadão grego ou do nobre romano ou medieval - mas o trabalho.

Olha-se o quadro de Campi e, escorado na nitidez da representação, vê-se a dissolução das categorias mentais - religiosas e sociais - provenientes das tradições greco-latinas e medievais. Mais do que essa dissolução, porém, assiste-se à emergência de um mundo mais prosaico, menos dado à contemplação e centrado nessa equívoca categoria que é o trabalho. Cristo bem pode dizer "e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada" (Luc. 10:42), que o homem moderno já não lhe dará ouvidos. A boa parte está ali à sua vista, nessa abundância de alimentos para consumir. E é tão cintilante que, até hoje, continua a ofuscar o homem. Ouvimos ainda Nietzsche: Deus está morto! Deus permanece morto! E fomos nós quem o matou!

domingo, 19 de janeiro de 2014

Um sopro de vento

Felix Vallotton - A bola (1899)

Uma nódoa negra de lama e gravilha na parede junto do interruptor fez-me lembrar um dia de Primavera em Praga*. Li as palavras de Nabokov e fiquei longo tempo em silêncio. Também um dia, ao sentir correr o vento de certa maneira, acordou-se em mim a pátria distante que é a infância. Ela vinha naquele vento e trazia-me o que perdera, a bola, o burro de cartão, as palavras que o pai dizia aos domingos de manhã, os homens a passar de bicicleta, as azedas a crepitar na boca. Uma nódoa, um sopro de vento, um quase nada. De súbito, paro de pensar. A vida depende sempre de tão pouco que depressa se esquece.

* Vladimir Nabokov, Desespero.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Metamorfoses 12 - Este vento cintilante da manhã

Andrew Wyeth - Wind from the Sea (1948)

12. Este vento cintilante da manhã

Este vento cintilante da manhã
traz um sopro de mar
na concha húmida das mãos.

Assim semeia névoas e neblinas,
as primeiras chuvas matinais.
Quando se exalta e purpúreo ruge

tudo rodopia no horizonte enfurecido.
Árvores, casas, o jornal perdido
onde lia as notícias do teu coração.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Questões difíceis


O Presidente francês, François Hollande, está a alterar a orientação política com que foi eleito. Embora não utilize palavas como austeridade, as políticas que agora advoga aproximam-no das soluções da direita liberal. Não é a primeira vez que alguém eleito pela esquerda, quando confrontado com os resultados da sua governação, reorienta as suas políticas para a direita. Pode-se sempre evocar a ideia de traição aos ideais. Parece-me, porém, pouco proveitoso resolver a questão com um juízo de carácter. Devemos fazer perguntas e perguntas difíceis. Por exemplo, por que motivo os partidos de cariz social-democrata (isto é, os socialistas) não conseguem aplicar os seus programas e, se o fazem, por que razão a economia declina de imediato?

Esta questão é incómoda e é evitada pela esquerda, pois torna patente que, nas actuais circunstâncias de globalização da economia, ela não possui um efectivo programa de governo. Não me refiro apenas à esquerda social-democrata. Refiro-me também à outra esquerda fora da área da governação, cujos programas correspondem, hoje em dia, a soluções sociais-democratas idênticas às que vigoravam nos anos oitenta do século passado. Uma coisa é ter uma política de resistência e de oposição à situação actual, outra é possuir um programa de governação exequível nas actuais circunstâncias do mundo e dos países.

Estamos confrontados, na verdade, com um dilema. Ou reconhecemos que já não são possíveis governações à esquerda, ou reconhecemos que a esquerda ainda não conseguiu romper com os quadros intelectuais e políticos anteriores à queda do muro de Berlim. Se a verdade residir no primeiro caso, o problema está resolvido. Seja qual for o governo, a governação será sempre idêntica. Se for o segundo, tudo se torna mais interessante. Nesse caso, porém, a esquerda precisará de repensar drasticamente não as suas convicções morais, mas as suas convicções políticas, fundamentalmente as que repousam no papel do Estado Providência.

Isto coloca problemas que as pessoas de esquerda evitam a todo o custo: será possível uma esquerda para além do Estado? Será possível dinamizar e institucionalizar as práticas de solidariedade, de entreajuda, de protecção social, de dinamização da igualdade de oportunidades, a partir da sociedade civil e da iniciativa das pessoas e não do Estado? Será possível aproveitar o espaço político e social criado pelo liberalismo para realizar os valores morais que a esquerda encarna? Estas são questões difíceis, mas não serão elas que poderão rasgar um futuro para a esquerda e para aqueles a quem ela representa?

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Meditações dialécticas (24) - Da produção de monstros

Alexander Harrison - Solidão (1893)

Façamos com que o nosso contentamento dependa de nós, desprendamo-nos de todas as ligações que nos atam a outrem, ganhemos sobre nós o poder de viver sós e de viver assim à nossa vontade. (Montaigne, Essais I)

Há nesta pretensão de auto-suficiência, erigida como ideal regulador de vida por Michel de Montaigne, uma monstruosidade que desafia o pensamento. Essa monstruosidade tinha sido pensada previamente por Aristóteles, quando, na Política (1253a), define o homem como um animal político (ou animal social, noutras traduções), acrescentando que quem, por natureza, não tiver cidade, não viver com os outros, ou é um ser decaído ou sobre-humano. 

É certo que o homem auto-suficiente de Montaigne não é, por natureza, alguém destituído de sociabilidade, alguém monstruoso. A separação do outro e o corte com a comunidade são projectos que visam consolidar o poder sobre si e tornar o desejo de solidão em natureza solitária. A monstruosidade é o resultado de um projecto, o qual visa a transformação da natureza humana. 

Quando falamos na modernidade e olhamos para o seu desígnio racionalista, esquecemos a monstruosidade deste homem desenhado por Montaigne e que se constituiu num dos ideais do mundo moderno. Qualquer avaliação do projecto da modernidade deverá ter em conta todos os monstros que foram apresentados como ideais reguladores do ser humano. A monstruosidade não foi inventado com Frankenstein, de Mary Shelley.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

O mito da instrução

Rembrandt - Dois sábios à conversa

Um dos mitos persistentes do imaginário social - fundamentalmente, do imaginário de pessoas de esquerda - está centrado na correlação entre a instrução e uma maior consciência social e política, nomeadamente, uma maior preocupação com o que é socialmente justo. As reacções à infeliz proposta de redução da escolaridade obrigatória de doze para nove anos, das Juventudes Populares, estavam fundadas nesse mito. A direita pretenderá diminuir a escolaridade obrigatória para evitar que as pessoas tenham capacidade crítica e, a partir dela, escolham o governo certo, isto é, de esquerda.

A persistência deste mito terá as suas razões. Talvez tenha tido a sua origem na República, onde se reconhecia que o campesinato analfabeto era favorável à monarquia. Também é verdade que o salazarismo funcionou desse modo. É ainda verdade que, nas boas famílias, não era olhado com bons olhos que uma criada soubesse ler. Isto que se passou em Portugal passou-se por outros lados. Há, por isso, uma certa verdade a alimentar o mito. O problema é que a sociedade mudou, arrastando consigo os mitos e as narrativas que nos dispensam de pensar. Qual é o problema deste mito? É que ele é, actualmente, falso. Um estudo da Universidade Católica mostra que quanto mais instruídas as pessoas são, menos importância dão à solidariedade, à justiça e aos valores democráticos. A democratização do ensino é desfavorável à visão moral do mundo inerente à esquerda e privilegia uma certa visão de direita, a visão liberal, devido, como mostra o estudo, ao reforço das tendências egoístas dos sujeitos.

Isto não é, da minha parte, um argumento contra a democratização do ensino. É preciso que continue o esforço dessa democratização, elevando a qualidade das formações, tornando os portugueses mais diferenciados e capazes de lidar com uma realidade adversa. Este argumento é contra o próprio mito e a sua utilização. A esquerda gosta muito de se enganar e encontrar explicações que, se não são absurdas, são completamente deslocadas no tempo e no contexto. Eu percebo o drama da consciência de esquerda. Aquilo que foi um dos seus maiores e mais nobres combates, a democratização do ensino, gera uma população com valores adversos a essa esquerda. Mas a persistência nas fórmulas míticas acaba por não deixar perceber que a realidade mudou. A mudança social, aquela que seria o caminho para a justiça e uma democracia avançada, não virá da educação. Virá outra, mas essa será mais problemática e exigirá outra forma de pensar e de agir politicamente.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Na luz da clareira

George Pierre Seurat - A clareira (1882)

Exausto, deixou-se cair. Perdido na floresta, vagueou entre sombras e ameaças de luz. Ouviu o crocitar dos corvos e sentiu o corpo dilacerado abrir-se para aquilo que o esperava. Caminhou dias e noites. Por vezes, anotava tonalidades e gravava na memória os sons que lhe chegavam. Quando descansava, entregava-se a manobras de classificação. Ruídos, cheiros, matizes, tudo lhe servia para criar classes e elaborar estranhas taxionomias. A floresta, porém, resistia e não se deixava prender em redes tão frágeis. À bruma da manhã seguia-se a da tarde e, depois, a da noite. Se o coração vacilava, a mente deixava-se arrastar pela névoa. Quando chegou à clareira, a súbita luz rasgou-lhe a carne e um incêndio consumiu-lhe o corpo. Ainda sussurrou: Quem disse que a luz dá vida?

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Johannes Vermeer - Lady writing a letter with her maid

Jan Vermeer - Lady writing a letter with her maid (1670)

São vários os quadros de Vermeer que têm por tema central a relação entre a senhora e a criada. Há, entre os especialistas da sua pintura, uma discussão sobre a relação entre as duas figuras. Há quem leia no quadro a inexistência de conexão entre elas, devido ao foco dos interesses ser bastante diferente - a escrita para a senhora, a contemplação do exterior para a criada. Outra leitura defende que, pelo contrário, existe uma enorme conexão e intimidade entre as figuras em presença, já que a senhora não hesita em escrever uma carta, supostamente íntima, na presença da serva.

Ao olhar para o quadro, somos colocados sobre uma dupla focagem, como se o pintor quisesse, de facto, que dividíssemos a atenção pelas duas figuras, que percebêssemos aquilo que nelas está inscrito e as torna naquilo que são, muito para além da possível existência ou não de uma cumplicidade entre ambas. Quais os elementos centrais que caracterizam as posições sociais de ambas? Por um lado, encontramos a iniciativa e, por outro, a expectativa. A senhora é aquela que tem a iniciativa e que se ocupa com a acção, neste caso a acção de escrever uma carta. A serva queda-se na expectativa e contempla aquilo que é exterior à cena.

Neste quadro de Vermeer, há toda uma lição sociológica e um retrato do emergente mundo burguês. O que determina o lugar social é o poder de iniciativa, o qual desencadeia a acção e, por isso, sublinha e reforça um lugar de comando. A senhora comanda, mas isso não é dado a ver por qualquer gesto imperativo, mas porque ela é mostrada em acção. A criada é serva, pois está condenada a esperar, braços cruzados, impotente e incapaz de desencadear a acção. Resta-lhe contemplar aquilo que é lateral ao drama que ali se desenrola. O que o quadro nos mostra é a dependência da cadeia de comando social da acção. No mundo burguês que ganha raízes naqueles dias, a velha atitude contemplativa é agora reduzida à pura impotência que condena o indivíduo à servidão.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Metamorfoses 11 - Um súbito furacão abre-se nas palavras

Edvard Munch - Winter Night (1900)

11. Um súbito furacão abre-se nas palavras

Um súbito furacão abre-se nas palavras,
e tudo rodopia na tarde que cai,
deixando destroços de frio e lama.

São assim os domingos de inverno,
movidos pela tristeza,
rasgados pela água verde da solidão.

Estendo a mão vazia sobre o horizonte,
e recolho uma sombra de silêncio,
o grito selvagem da noite que logo cai.

sábado, 11 de janeiro de 2014

O tempo no Alentejo

Guillermo Pérez Villalta - O rumor do tempo (1984)

Uma longa hesitação, depois segue o caminho, lentamente, muito lentamente. Torna a parar. Olha para trás e sente uma enorme nostalgia do que vai deixar. E se retrocedesse? Não seria mais sensato? Interroga-se, uma e outra vez. Em cada casa, em cada varanda, em cada árvore há um reflexo de eternidade. Terei o direito de trazer o anjo da história? Melhor, e se o anjo da história for eu? Forças estranhas intimam-no para que avance, que essa é a sua natureza. Que não se preocupe com o que fica para trás. Ninguém nota, ele é apenas um leve fluir, um rumor de cinza. Ele hesita, porém. Passar, para quê? Não é eterno este casario branco, imóvel? Recusa-se a prosseguir e senta-se num banco de jardim. Não passará.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Eusébio


Eusébio chegou a Lisboa tinha eu quatro anos, e era, imagine-se, um fervoroso adepto encarnado. Nascido no seio de uma família, pelo lado paterno, de benfiquistas, o Benfica está presente em mim quase desde os primeiros momentos de vida. Havia, por essa altura, nos finais de 1960, nomes que eu já conhecia. Águas, Costa Pereira, Coluna, Santana, Cavém. Foram os meus primeiros heróis. O gosto pelo futebol ampliou-se e consolidou-se talvez um pouco antes da entrada na escola primária, em Outubro de 1962. Como? Com as colecções de cromos da bola. Para quem gostasse de futebol – e naquele tempo a maioria dos rapazes gostava – coleccionar cromos de futebolistas era um dever, uma espécie de iniciação que permitia a entrada no universo dos rapazes.

Numa dessas colecções – uma em que os jogadores eram retratados a meio corpo com o emblema do clube por trás –, o Eusébio aparecia por três vezes. Como jogador do Benfica, da Selecção Nacional e da Selecção Militar. Estávamos em 62 ou 63 e isso diz tudo o que o Eusébio era naquela altura. Cresci a ouvir e a ler os feitos do Eusébio. Ouvir, mais do que a ver. Ver via-se na televisão, mas as transmissões de jogos eram raridades. Viam-se resumos, ao domingo à noite, e isso era um acontecimento. Ouvia, como Portugal inteiro ouvia, os relatos dos jogos e, cedo, comecei a ler os jornais desportivos. Para a maioria de nós dizer que vimos jogar o Eusébio significa apenas que vimos uns quantos jogos na televisão, muitos resumos e ouvimos relatos sem fim e lemos inumeráveis crónicas nos jornais. Um jogo de futebol em Lisboa era, naquele tempo, um bem escasso. Mas, claro, não havia semana que não víssemos, na imaginação que o relato e a crónica incendiavam, o Eusébio jogar. E víamos que era o melhor.

Para além do prazer das vitórias do Benfica e da Selecção, devo ao Eusébio e ao futebol daquela época outra coisa. Uma certa ideia de persistência e de continuidade no tempo. Entre os meus 4 e 18 anos, Eusébio foi a figura central do Benfica, uma presença contínua na minha imaginação. Não apenas ele, não apenas jogadores do Benfica. As equipas mantinham a mesma estrutura durante anos e anos, e aqueles jogadores, mesmo os adversários, tornavam-se familiares, gente com quem vivíamos e que, sem nunca os termos visto, os víamos todas as semanas, vestidos de vermelho, de verde, de azul... Tudo era, no futebol daquele tempo, mais lento e mais duradouro. Apenas Eusébio era demasiado rápido. Por isso, as bolas entravam na baliza e o seu nome no nosso coração. Perdi uma parte da minha infância.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O poder da bandeira

Lajos Kassák - Porta-bandeiras (1919)

A bandeira, ou o seu culto, é um artefacto que espelha bem a natureza do homem. Por norma, os grandes fenómenos de massa - o desporto, a religião, a política, a guerra, pelo menos até certa altura - não passam sem o recurso às bandeiras. É fácil de perceber a razão. Elas são uma forma racional de identificação. Assinalam identidades, indicam pertenças, promovem exclusões. É um signo comunicacional de grande eficiência, e por isso, por essa eficiência, a bandeira inscreve-se no campo da racionalidade.

Aquilo que é misterioso, porém, é essa eficiência mesmo. Por que motivo uma bandeira desfraldada exerce sobre nós esse poder de identificação, nos indica uma não pertença, nos assinala uma proximidade ou uma ameaça? Uma resposta sensata seria dizer que é um hábito social, que fomos educados para reconhecer e ler esse signo. É verdade, mas isso não explica a razão por que ela se tornou signo e símbolo, por que motivo as bandeiras desencadeiam em nós processos afectivos, que depois racionalizamos como identidades. 

Certamente que a sua natureza esvoaçante tem nisso um papel fundamental. Uma bandeira é um dispositivo de fronteira. Ela está presa ao nosso mundo terrestre, mas eleva-se aos céus, ao além, planando sobre a nossa condição material. A bandeira é feita de matéria, mas já não é material. Está agarrada à terra, mas habita o alto. Ela, no seu esvoaçar e na sua sujeição ao vento, é vento e espírito que sopra onde quer. É esta equivocidade da bandeira que lhe dá o irracional poder de tocar o coração dos homens, incendiando ânimos, ateando a coragem, abrindo-o para o perigo. Por isso, ela espelha a nossa natureza. A racionalidade de que se reveste é apenas a cobertura de uma infinita não racionalidade.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Meditações dialécticas (23) - Da lógica das coisas

Maurits Cornelis Escher - Cubic space division (1952)

Um dos elementos estruturais da vida social moderna e contemporânea é a sempre crescente autonomização dos fenómenos sociais. Se olharmos para a Idade Média, observamos um cosmos social ordenado e orientado para Deus. Nessa ordem e nessa orientação, cada coisa fazia parte de um todo que lhe assinalava o lugar e lhe dava sentido. Era nessa ordem que, apesar de ser constituída por grupos sociais relativamente estanques, cada ser humano tinha um lugar e uma função atribuídos e, desse ponto de vista, não era descartável. A presente sensação da descartabilidade do homem nasce, muito curiosamente, numa sociedade que tem a sua génese na recusa da ordo medieval, na recusa de um cosmos teocêntrico, e que faz do homem o centro do mundo. 

O desfazer da ordem significou, de então para cá, a libertação das múltiplas estruturas e a sua autonomia perante a totalidade. Se olharmos para o mundo da economia, isso tornou-se uma evidência inquestionável. O mercado deve funcionar segundo regras próprias e autónomas, as próprias empresas têm as suas lógicas internas e só a estas devem obedecer. E é aqui que surge como natural, para os economistas e gestores, tudo o que se passa na esfera económica. Os seres humanos são irrelevantes para a lógica interna desses dispositivos sociais. Se são necessários, muito bem. Se não são, a natureza da empresa ou do mercado implica que sejam descartados. Não se trata - ou não se trata apenas - de uma maldade moral dos agentes. É a lógica das coisas, essa lógica que ganhou vida com a afirmação do humanismo renascentista, que implica que o homem, esse ser obsoleto, seja descartável. O que está em jogo e é questionável não é apenas a maldade moral dos homens, mas a própria natureza da modernidade.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Da sabedoria

George Pierre Seurat - Floresta em Pontaubert (1881)

Penumbra, sombra, brumas... A confiança na razão é uma questão de idade. Crer no seu poder, na potência da sua luz, na capacidade de revelar a verdade, tudo isso é fruto de uma consciência jovem, animada pelo vigor do corpo. Os verdes anos, porém, passam depressa, e de súbito vemo-nos no meio da floresta. Onde havia luz há agora sombra e os objectos não passam de brumas que se deslocam na penumbra. Com o tempo, descobrimos que a floresta é confortável e é nela que devemos permanecer. Para que serve a ciência se a sabedoria nos visita?

domingo, 5 de janeiro de 2014

Questões de fraternidade

Aimé-Jules Dalou - La Fraternité des peuples (1883)

Bergoglio criou um problema que não sei como o irá resolver: não se cansa de denunciar a economia que mata. Que poderá ele fazer para que nas instituições universitárias católicas, o ensino no campo da economia, da finança, da gestão, da política não só denuncie e recuse qualquer tipo de participação nesse homicídio, mas sobretudo, que poderá ele fazer para que os professores e alunos dessas instituições investiguem e façam propostas que sirvam a fraternidade como fundamento e caminho da paz? (Frei Bento Domingues, Público de 2014-01-05)

A questão levantada por Frei Bento Domingues faz todo o sentido. Muitos dos defensores da actual ordem política e económica mundial estão ligados, de alguma forma, a universidades católicas. Percebe-se que os cursos ligados à economia, gestão e ciência política são, digamos assim, muito pouco católicos. São, antes, um viveiro intelectual que justifica e legitima a situação que o Papa denuncia, e denuncia como sendo homicida, como infringindo o mandamento não matarás!

A questão, porém, tem um interesse que ultrapassa a perspectiva meramente económica ou política actual. Se houve um sítio onde a Igreja Católica fez um aggiornamento e aceitou o mundo moderno foi no campo do liberalismo económico e, por arrasto, do liberalismo político. Começou por condescender com o capitalismo e acabou por se tornar um viveiro intelectual de defensores do radicalismo iluminista liberal no campo político-económico. Não se trata apenas de perguntar como resolver essa contradição entre a denúncia de um sistema homicida e a permissão da sua defesa e justificação nas instituições católicas. Trata-se ainda e mais uma vez do problema da relação entre a Igreja Católica e o mundo moderno, entre o espírito de comunidade, que foi uma das suas características originais, e a radicalidade da subjectividade individual inerente ao mundo moderno e filha do protestantismo.

O discurso conservador – pode parecer o contrário, mas de facto as posições do actual Papa, ao denunciar os resultados do iluminismo liberal, são claramente conservadoras – do Papa Francisco está a tocar num verdadeiro ninho de víboras, um ninho onde coexistem interesses económicos muito grandes, interesses políticos e interesses académicos. Estes interesses sempre contaram, mesmo quando o discurso papal remetia para a doutrina social da Igreja e criticava o individualismo, com a cumplicidade mais ou menos activa da Igreja.

Como salienta Frei Bento Domingues, noutro passo do mesmo artigo, a fraternidade foi a menos explorada das consignas da Revolução Francesa. Os homens digladiaram-se intelectual e fisicamente pela supremacia da liberdade ou da igualdade. Esqueceram sempre a ideia de fraternidade. É a ideia de fraternidade que Francisco está a mobilizar para contrapor a uma sociedade que, em nome da liberdade, está a criar uma enorme prisão para a generalidade dos seres humanos. Retomando o problema colocado por Frei Bento Domingues, que fazer com um ensino económico e político cujos resultados práticos destroem as relações fraternais entre os homens? Será possível outro aggiornamento da Igreja que não pela via liberal? Será a fraternidade, sem a tentação do igualitarismo, a porta pela qual a tradição católica e o mundo moderno se encontrarão definitivamente?

PS. Morreu hoje Eusébio, um dos heróis da minha infância e adolescência. Falarei sobre isso na crónica do Jornal Torrejano, na próxima sexta-feira.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Abandonado na encruzilhada

Mateo Vilagrasa - Encruzilhada (1987)

Não há mensagens para ler. Acato a decisão do destino e sustenho o desejo de novidades, esse impulso que sussurra dentro de mim e me lança na fraterna convivência humana. Um dia, o poeta Georg Trakl escreveu Alguém te abandonou na encruzilhada, e tu olhas longamente para trás. Sim, ele falava para mim, falava para um futuro que não conhecia, e eu retribuo-lhe o favor, olhando para trás. Quando abro a caixa do correio ou entro no email é a minha retribuição a Trakl. Olho longamente para trás, mas nunca descubro quem me abandonou. Volto, mais uma vez. Não há mensagens para ler.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A douta ignorância


Aquilo que maior perplexidade me causa não é a avidez dos poderosos ou a impotência submissa dos fracos. Isso é a natureza das coisas. O homem, porém, não é apenas um ser que age segundo a natureza. Ele é dotado de liberdade, e a liberdade é o que lhe permite transformar as necessidades e pôr em causa a ordem natural das coisas. Por exemplo, que o homem não voe é a ordem natural das coisas. A liberdade e a inteligência, porém, permitiram-lhe inventar o avião. Que os fortes dominem socialmente os fracos está na natureza das coisas, mas a liberdade e a inteligência humanas têm o poder e o dever de produzir sociedades de onde essa dominação seja banida, substituída por regras de equilíbrio e de justa medida. Esse é o papel que os cidadãos esperam da actividade política.

Causa-me muita perplexidade que, perante os caminhos que estamos a seguir, os agentes políticos ajam a partir de um grau de certeza e convencimento das suas opções que não augura nada de bom. Se olharmos para o panorama português, da direita à esquerda, não há quem não tenha soluções para a crise e que não se bata com denodo para as impor. Este grau de certeza dos agentes políticos é profundamente preocupante. A realidade com que estamos a lidar, os desafios que o mundo globalizado impõe, os desenvolvimentos científicos e tecnológicos, tudo isso somado torna o futuro tão imprevisível quanto inquietante. Ora a imprevisibilidade e a inquietação exigem tudo menos certezas, exigem uma capacidade, mesmo na acção política, para se interrogar e questionar os caminhos a seguir. Exigem o reconhecimento da própria ignorância.

Platão defendia que a sociedade deveria ser governada por filósofos ou, se isso não fosse possível, que o governante se tornasse filósofo. Esta é uma teoria perigosa que a humanidade, sensatamente, sempre recusou. No entanto, em tempos de crise como os actuais, há uma virtude filosófica que seria essencial para os agentes políticos. Essa é a virtude da douta ignorância, de saber que nada se sabe. Se os diversos agentes políticos abandonassem as suas certezas e reconhecessem que estão perante problemas inquietantes e de solução imprevisível, talvez fosse possível encontrar pontes (um pacto social inclusivo) e dar passos inovadores na resposta aos problemas que enfrentamos. Isso não eliminaria o conflito de interesses, mas poderia obstar que esse conflito caminhasse para a férrea dominação dos fortes sobre os fracos e as consequentes cenas da luta de classes. Seria a prova de que a liberdade levaria a melhor sobre a ordem natural das coisas.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Metamorfoses 10 - Deslizo na memória do teu corpo

Franco Gentilini - Nudo disteso (1929)

10. Deslizo na memória do teu corpo

Deslizo na memória do teu corpo,
sigo veredas esquecidas,
o fulgor estelar do inverno.

Quando a noite nos abandona
e tudo cheira a madrugada,
pego nas palavras que te disse

e tomo o caminho da floresta.
A tempestade desce vestida de fogo
e ateia um incêndio de púrpura.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Ano Novo

Caspar David Friedrich - Winter Landscape with Church (1811)

Chegou o Ano Novo. Olho pela janela e tudo parece velho. Um ar chuvoso, pesado, feito de esquecimento e nostalgia. Ao longe, a paisagem foi rasurada, é agora uma sombra sonolenta, uma mágoa que acompanha o passar do tempo. Aqui e ali há gente que ensaia uns passos sob a chuva, logo se retrai e desaparece, levada pelas trevas flácidas da tarde. Tudo é, por enquanto, uma bruma vacilante, quase uma promessa, talvez uma ameaça. Ninguém sonha, neste primeiro dia do ano. Ninguém canta, na aurora deste tempo. Apenas o silêncio cresce, debruado de folhas mortas e de árvores exaustas.