domingo, 5 de janeiro de 2014

Questões de fraternidade

Aimé-Jules Dalou - La Fraternité des peuples (1883)

Bergoglio criou um problema que não sei como o irá resolver: não se cansa de denunciar a economia que mata. Que poderá ele fazer para que nas instituições universitárias católicas, o ensino no campo da economia, da finança, da gestão, da política não só denuncie e recuse qualquer tipo de participação nesse homicídio, mas sobretudo, que poderá ele fazer para que os professores e alunos dessas instituições investiguem e façam propostas que sirvam a fraternidade como fundamento e caminho da paz? (Frei Bento Domingues, Público de 2014-01-05)

A questão levantada por Frei Bento Domingues faz todo o sentido. Muitos dos defensores da actual ordem política e económica mundial estão ligados, de alguma forma, a universidades católicas. Percebe-se que os cursos ligados à economia, gestão e ciência política são, digamos assim, muito pouco católicos. São, antes, um viveiro intelectual que justifica e legitima a situação que o Papa denuncia, e denuncia como sendo homicida, como infringindo o mandamento não matarás!

A questão, porém, tem um interesse que ultrapassa a perspectiva meramente económica ou política actual. Se houve um sítio onde a Igreja Católica fez um aggiornamento e aceitou o mundo moderno foi no campo do liberalismo económico e, por arrasto, do liberalismo político. Começou por condescender com o capitalismo e acabou por se tornar um viveiro intelectual de defensores do radicalismo iluminista liberal no campo político-económico. Não se trata apenas de perguntar como resolver essa contradição entre a denúncia de um sistema homicida e a permissão da sua defesa e justificação nas instituições católicas. Trata-se ainda e mais uma vez do problema da relação entre a Igreja Católica e o mundo moderno, entre o espírito de comunidade, que foi uma das suas características originais, e a radicalidade da subjectividade individual inerente ao mundo moderno e filha do protestantismo.

O discurso conservador – pode parecer o contrário, mas de facto as posições do actual Papa, ao denunciar os resultados do iluminismo liberal, são claramente conservadoras – do Papa Francisco está a tocar num verdadeiro ninho de víboras, um ninho onde coexistem interesses económicos muito grandes, interesses políticos e interesses académicos. Estes interesses sempre contaram, mesmo quando o discurso papal remetia para a doutrina social da Igreja e criticava o individualismo, com a cumplicidade mais ou menos activa da Igreja.

Como salienta Frei Bento Domingues, noutro passo do mesmo artigo, a fraternidade foi a menos explorada das consignas da Revolução Francesa. Os homens digladiaram-se intelectual e fisicamente pela supremacia da liberdade ou da igualdade. Esqueceram sempre a ideia de fraternidade. É a ideia de fraternidade que Francisco está a mobilizar para contrapor a uma sociedade que, em nome da liberdade, está a criar uma enorme prisão para a generalidade dos seres humanos. Retomando o problema colocado por Frei Bento Domingues, que fazer com um ensino económico e político cujos resultados práticos destroem as relações fraternais entre os homens? Será possível outro aggiornamento da Igreja que não pela via liberal? Será a fraternidade, sem a tentação do igualitarismo, a porta pela qual a tradição católica e o mundo moderno se encontrarão definitivamente?

PS. Morreu hoje Eusébio, um dos heróis da minha infância e adolescência. Falarei sobre isso na crónica do Jornal Torrejano, na próxima sexta-feira.

10 comentários:

  1. Aliás, é a única porta. Estreita, como diria Mateus, mas a verdadeira porta. A fraternidade não passa de uma versão laica do amor cristão. A Igreja, ou é amor, ou não o é. Mas outros valores se levantarão e o portão deverá continuar a ser a passagem mais cobiçada.

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    1. Completamente de acordo, tanto na estreiteza da porta como na cobiça do portão.

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  2. Se Bergoglio criou um problema, terá de o resolver, como espero, no seio de pouco mais de metade dos cristãos, que corresponde a cerca de 17% da população mundial.
    A ICAR tem uma importância incontestável, mas não creio que a "solução" assente numa visão redutora do que é fraternidade e solidariedade entre todos Homens.

    Um abraço

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    1. Não é obrigatório reduzir a resolução do problema criado por Bergoglio ao universo católico, pois esse problema tem incidência fora dele. Nas actuais circunstâncias e no actual estado de correlação de forças - para usar uma expressão caída em desuso - o retorno da ideia de fraternidade já não é pouca coisa.

      Abraço

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  3. Bastante interessante esta abordagem às questões política e económica mundiais. Dá que pensar. Espero que se encontre, a breve prazo, uma saída para estas questões, que tenham em maior consideração, o ser humano em geral.

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    1. A consideração pelos seres humanos parece ser "mercadoria" com pouco valor no mercado global. Parece que é coisa descartável, como o Papa não cessa de denunciar.

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  4. De entre os três valores de revolução francesa, a fraternidade implica um compromisso interminável para com o outro, um compromisso pessoal que não pode ser substituído por legislação ou determinações políticas, talvez seja este o nervo d questão, a fraternidade pratica-se mas não se pode impor, como o amor.

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    1. A questão da fraternidade teve, na Revolução Francesa, um papel estratégico. Julgo que visava sublinhar que a divisão da sociedade em castas ou estamentos não fazia sentido, pois todos os homens eram irmãos. A fraternidade serviu como fundamento da igualdade perante a lei. Também visava granjear o apoio dos outros povos à causa da Revolução. Ela não pode ser apenas uma prática, embora o deva ser na sua essência, ela é corresponde à condição humana. A fraternidade na tradição ocidental é um valor ambíguo. Ela soa-nos como significando uma amizade universal entre os homens, mas o conflito entre Eteócles e Polinices pelo trono de Tebas ou, na tradição judaica, os de Abel e Caim e de José e os seus irmãos, sublinham o lado negro da fraternidade. Começamos a mexer no conceito de fraternidade e há lá muito mais, e muitos fantasmas, do que se pensa à primeira vista.

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  5. Ontem não tive tempo para escrever pelo que, um bocado atrasada, venho aqui hoje.

    A questão que levanta no seu post é do mais pertinente que há. As grandes empresas de consultoria e auditoria ou os grandes bancos recrutam os seus jovens quadros entre os melhores alunos da Católica. As maiores empresas do país (e talvez do mundo mas só falo do que sei) enviam os seus quadros mais promissores ou os seus dirigentes a ter formação na Católica ou na AESE. Existem protocolos com o INSEAD para onde os dirigentes empresariais são enviados a seminários. "Gerir é criar valor para o accionista", é o lema - e até aí nem estaria dramaticamente mal. O drama começa quando se ensina que, para tal, a melhor estratégia, por exemplo, passa pela alavancagem financeira (leia-se, não usar capitais próprios mas, sim, recorrer a financiamentos). As empresas (e o país) ficaram afogadas em dívida com base nestes ensinamentos.

    Estes ensinamentos por si só também não estão forçosamente mal só que eles só são válidos quando o crédito é ilimitado e barato. Quando começou a escassear e os seus custos a aumentar, o país ficou de gatas (tanto mais quanto quase não tem empresários 'ricos' que pudessem fazer face a este volte face; grande parte dos empresários não tem liquidez, tem, sim, monstruosas dívidas)

    Toda a gestão ensinada nas melhores escolas do país (as melhores segundo os rankings) assenta nisto.

    Como vão conseguir alterar os 'mind sets', os programas escolares, os livros, as 'sebentas'?

    O Papa Francisco está a levantar questões difíceis de resolver, lá isso está.

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    1. Há ainda outra faceta nesses cursos. Trata-se da ocultação não da força de trabalho mas das pessoas que a constituem. Essas pessoas, enquanto membros de uma empresa, não são pessoas mas despesa ou mercadoria. A partir daí são descartáveis. O lema "gerir é criar valor para o accionista" diz tudo sobre a "descartabilidade" dos que são geridos. Enfim, julgo que muita desta gente apenas está à espera que o Papa passe depressa e as suas palavras sejam esquecidas. Enquanto isso não acontece lá vão tentando dizer que ele não disse o que tem dito. Outros, porém, já ameaçam cortar os apoios e as obras de caridade, o que não deixa de ser interessante.

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