segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Vicenzo Campi - Cristo em casa de Maria e de Marta

Vicenzo Campi - Cristo em casa de Maria e de Marta (segunda metade séc XVI)

São vários os grandes pintores que tomaram a visita de Cristo a casa das irmãs de Lázaro, Marta e Maria, para tema. Este quadro de um autor do século XVI, Vincenzo Campi, não é apenas marcado pela ironia. Traz nele o novo mundo que com o Renascimento começa a ser erigido. No texto bíblico (Lucas 10:38-42), a azáfama de Marta, preocupado com o serviço material do Senhor, tem um estatuto secundário. Maria, diz Cristo, escolheu a melhor parte. Escolheu sentar-se a seus pés e escutar-Lhe as palavras. Entre a acção de Marta e a contemplação de Maria, a melhor parte é a atitude contemplativa, o exercício da escuta.

O que vemos nós no quadro de Campi? O primeiro plano é ocupado por Marta e pela sua azáfama. Ela está rodeada de naturezas mortas e o seu gesto é o de uma mulher de acção. Cristo e Maria ocupam um plano remoto e absolutamente secundário, quase diluindo-se no horizonte. Apenas os discípulos se vêm ainda mais ao longe. Há uma clara subversão do texto evangélico. Agora o importante é o dinamismo de Marta, a forma como gere a cozinha e lida com os alimentos, os quais são representados em abundância.

Ao olhar este quadro é impossível não pensar em Nietzsche e no seu famoso "Deus está morto!" O quadro de Campi - um quadro da segunda metade do século XVI - é já o sintoma dessa morte. A contemplação de Maria, a presença do Cristo, a sombra dos discípulos, tudo isso é já completamente secundário. O essencial é a relação estabelecida entre a abundância de bens materiais - simbolizada no bem maior que é o alimento - e a actividade de Marta. Esta actividade não é a acção propriamente dita - o que seria a prerrogativa do cidadão grego ou do nobre romano ou medieval - mas o trabalho.

Olha-se o quadro de Campi e, escorado na nitidez da representação, vê-se a dissolução das categorias mentais - religiosas e sociais - provenientes das tradições greco-latinas e medievais. Mais do que essa dissolução, porém, assiste-se à emergência de um mundo mais prosaico, menos dado à contemplação e centrado nessa equívoca categoria que é o trabalho. Cristo bem pode dizer "e Maria escolheu a boa parte, a qual não lhe será tirada" (Luc. 10:42), que o homem moderno já não lhe dará ouvidos. A boa parte está ali à sua vista, nessa abundância de alimentos para consumir. E é tão cintilante que, até hoje, continua a ofuscar o homem. Ouvimos ainda Nietzsche: Deus está morto! Deus permanece morto! E fomos nós quem o matou!

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