segunda-feira, 14 de abril de 2014

Knut Hamsun, Fome


Quando é que adquirimos um nome? Não no sentido de no-lo terem dado, mas no sentido, mais fundamental, de se ter conquistado o próprio nome. Esta pergunta surgiu na sequência da leitura do romance Fome (1890), do escritor norueguês Knut Hamsun (Nobel da Literatura em 1920). O romance conta-nos a vida de um jovem pretendente a escritor na cidade de Kristiania (actualmente, Oslo), entre o tempo da sua chegada e o da sua partida. É a história de uma derrota, a qual se consuma com a partida do protagonista da cidade. Para não morrer de fome, acabou por aceitar trabalho num barco de transporte de mercadorias para o estrangeiro. Nunca o leitor acede ao verdadeiro nome do protagonista. Ele não é apenas anónimo. É alguém que não conquistou o seu próprio nome e é como se o não tivesse.

O conflito central da narrativa pode-se descrever, a partir da linguagem psicanalítica, como o conflito entre o princípio de prazer – o prazer dado pela escrita e a realização de uma vocação – e o princípio de realidade – a qual cai sobre o anónimo sujeito da acção como fome. Quando os escassos recursos se esgotam, o protagonista fica preso num círculo infernal. Para escrever, precisa de não ter fome nem de perder tempo com outras funções. Para não ter fome, porém, necessita de fazer alguma coisa que não a escrita, pois o dinheiro que poderá ganhar com esta será precário. Este círculo, que tem a fome como vector central, sublinha os limites da condição humana. Por grande que seja o desejo e por empenhada que a vontade se mostre na realização do desejo, a necessidade acaba por ser a voz decisiva.

Quase sem dar por isso, o leitor está perante um conflito de dimensões metafísicas, o conflito entre liberdade e necessidade. A fome não é apenas o sintoma de uma carência fisiológica. Ela é a voz da realidade, de uma realidade sombria e poderosa que submete os homens ao seu poder. É este conflito, no entanto, que permite ao narrador – o anónimo protagonista da aventura romanesca – manifestar uma outra dimensão, a qual nos dá uma outra perspectiva do conflito. Usando o monólogo interno e abolindo a relação causa-efeito que se supõe estar presente na construção romanesca, Knut Hamsun introduz o leitor num universo indeterminista, marcado pela irracionalidade dos pensamentos e dos actos da personagem, cujos motivos são, muitas vezes, incompreensíveis para ela mesma. A introdução deste universo indeterminista entre os pólos da liberdade e da necessidade é fundamental.

Ele introduz um factor estranho na lógica das coisas e na vida dos homens. É verdade que o romantismo já teve o seu apogeu, é verdade que na filosofia as vozes fundamentais do denominado irracionalismo – Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche – já falaram, é ainda verdade que a própria Física não está já muito longe de ultrapassar o universo determinista herdado do século XVII. Apesar de tudo isso, o século XIX, mesmo na sua parte final, vive ainda na sombra do mecanicismo determinista da natureza e da concepção de uma vontade livre herdada do Iluminismo. A narrativa de Hamsun rompe com esse universo, fazendo conflituar necessidade e liberdade para que se manifeste uma camada de irracionalidade que interfere tanto nas decisões livres do homem como nas sequências, determinadas pela relação causa-efeito, das acções. Essa camada é-nos mostrada, como se disse atrás, através do diálogo interior, cuja utilização por Knut Hamsun antecipa os grandes nomes da literatura do século XX, como Kafka, Joyce ou Proust.

Esta intromissão do não razoável, esta manifestação de indeterminações que desagregam as categorias com que organizamos e pensamos a existência, deixa-nos ver, em negativo, o funcionamento do princípio de eficácia. A modernidade preza, fundamentalmente na sua vertente económica, a eficácia e mede por ela a racionalidade da acção. O que se descobre, ao ler o romance de Hamsun, é que o homem está muito longe de agir segundo esse princípio de eficácia, pois nele manifesta-se e arrasta-o para a acção o não razoável, o não eficaz, o não livre, porque pura e simplesmente indeterminado. A fome surge, desta forma, não apenas como o que se opõe ao desejo e à liberdade de realização do protagonista, mas como aquilo que desencadeia a manifestação de uma realidade que está recalcada na cultura moderna. Os antigos lidaram com essa realidade através do mito. Mas o homem moderno vive num mundo desencantado, onde os mitos perderam o fulgor e a potência organizadora da vida. Resta então que essa realidade se manifeste como irracional, ineficaz, impotente para realizar o desejo da personagem. Nessa impotência, ela nunca chega a ter um nome, pois não o conquistou e vê-se obrigada a, literalmente, zarpar para terras estranhas.


Knut Hamsun (2008). Fome. Lisboa: Cavalo de Ferro Editores. Tradução de Liliete Martins.

2 comentários:

  1. Se bem entendo a metáfora, a impotência obriga a realidade a emigrar.

    Abraço

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    1. Talvez a impotência seja a própria realidade e o que emigre seja o desejo.

      Abraço

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