quarta-feira, 25 de junho de 2014

O lago tenebroso

Wifredo Lam - Auto-retrato (1938)

As selfies são longínquas herdeiras do exercício pictórico do auto-retrato. Longínquas não no tempo, mas na intencionalidade. O auto-retrato está ligado a um cru - por vezes, cruel - processo de auto-conhecimento mediado pela técnica pictórica. A selfie é um divertissement pós-moderno cuja função é a glorificação do pequeno ego do retratado, um ego que se partilha para que, ao tornar-se parte do domínio público, seja confirmado na glória da existência. O auto-retrato na pintura é, muitas vezes, sóbrio e sombrio, enquanto a selfie depende, quase sempre, de uma instantaneidade galhofeira, como se ela fizesse parte de um processo de ocultação daquilo que o ego quer esconder de si mesmo. Não haverá coisa no mundo mais repelente que um auto-retrato de nós mesmos, um auto-retrato que fosse a nossa mais completa revelação. Por mais farisaica que seja a consciência, não há quem possa suportar ver-se tal como é. As selfies fazem parte da cortina com que cobrimos perante nós e os outros o lago tenebroso que se esconde no fundo de cada ser humano.

7 comentários:

  1. Daqui a uns tempos começam a aparecer alguns Dorian Gray modernos...deve haver um ou outro por aí...

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    1. Candidatos não faltarão, os tempos, porém, são outros.

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    2. Eu olho para as selfies como estratégias de marketing (com um toque de Photoshop consoante a "exigência") para os mais conscientes e uma "brincadeira" para os mais inconscientes.
      Telemóvel meu, telemóvel meu! Há alguém mais bela do que eu?
      ;)

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    3. Estratégias de marketing. Isso já diz muito. Mas nestas coisas não há nem marketing nem brincadeiras inocentes.

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  2. Jamais conseguiria pintar um auto-retrato porque sou um inepto. O mesmo se pode dizer das selfies, dado que assumo a minha incompetência para manejar uma câmara (incluindo o telemóvel).
    Vou recorrendo ao talento de terceiros.
    Quanto ao ser ou não ser belo interiormente, eis a questão.

    Um abraço

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    1. Há, no fundo de cada ser humano, um mar tenebroso. Também é possível que ele traga consigo um céu luminoso. A maior parte das vezes, porém, o homem move-se entre ambos, numa zona de sombra. Julgo, porém, que mais facilmente ele cai no mar do que se eleva aos céus.

      Abraço

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  3. Um homem é uma fracção, cujo numerador corresponde ao que ele é, enquanto o denominador é o que acredita ser. JTM

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