terça-feira, 29 de julho de 2014

Um véu de luz

Jackson Pollock - White Light (1954)

Um eléctrico azul passa na correnteza da rua, o ferro guincha nos carris, uma luz branca ilumina o interior vazio. No jardim contíguo, há árvores de tronco castanho e bancos de ferro forjado. Gostaria de saber por que ninguém se senta neles a descansar ou a namorar ao crepúsculo. O chão é imaculado. Das flores que por ali crescem não falo, só de pensar nelas já o pulso treme e a mão desfalece. Quando o eléctrico se some na embocadura da outra rua, a noite torna-se mais densa. Esfrego a cara no momento em que um arrulhar tonitruante me fere os ouvidos. Num banco, dois pombos maiores do que um homem sentam-se calmamente e, enquanto falam como se arrulhassem, poisam os olhos fixos nas flores de um canteiro. Não falarei delas. Escondido, observo-os: espiam assombrados, arrulham, crescem mais e mais, já mal cabem no banco. Na hora em que o som se tornou insuportável, levantaram voo, um atrás do outro. Ao dissipar-se a brisa trazida pelo bater daquelas asas, a manhã tinha depositado sobre um coração tremente, o meu, um véu de luz. (averomundo: a prosa dos dias, 2008/06/04)

4 comentários:

  1. Um post notável: O expressionismo na pintura e no texto, é assim que eu vejo.

    Um abraço

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  2. Acompanho de vez em quando o seu blogue. Adoro!
    Lamento e entristece-me que a esmagadora maioria das pessoas deste Pais não tenham capacidade de o perceber assim tão bem. Também não admira que assim seja, porque tem sido esse o treino que nos foi dado nos últimos anos. Estamos a colher o que se semeou. Mas fique tranquilo; essa maioria é que está errada, e a prova está à vista. Muitos parabéns! Adoro a sua escrita; para além de compartilhar consigo grande parte das suas opiniões, acho majestosa a forma como o faz. Mais uma vez BEM HAJA - IR

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    Respostas
    1. Muito obrigado. Agradeço o seu interesse, as suas palavras e as suas visitas. Quanto ao resto, as coisas são como são e nada melhor do que aceitá-las.

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