sábado, 18 de outubro de 2014

A obra e o seu leitor

Jorge Carreira Maia - Black & White Dreams. Luso. (2008)

Querem saber como começa o "Ferdydurke" do Witold Gombrowicz, romance que tanto entusiasmo despertou em escritores como Milan Kundera ou Susan Sontag? Eu sei que ninguém me perguntou, mas, mesmo assim, vou ser bondoso e transcrever as seis primeiras linhas...

«Na terça-feira acordei àquela hora mortiça e difusa, quando a noite já se acabou e o dia mal amanheceu. Ao acordar estremunhado, tive o ímpeto de arrancar num táxi para a estação, pois fui invadido pela sensação de que estava de partida - só no minuto seguinte me dei conta, com grande pesar, de que não havia nenhum comboio à minha espera na estação e que nenhuma hora havia ainda soado

Em seis míseras linhas quantas questões?  Por que motivo acordou ele àquela hora? E a que se deve a sensação de que pensava estar de partida? E que razão funda o pesar por não haver qualquer comboio à espera? E para onde iria esse comboio, se existisse nessa hora? E quando deveriam soar as horas que não soaram e por que não soaram? A questão que se me põe como leitor é se o romance responde ou não a estas questões, se elas são de facto decisivas. São elas que me irão guiar na leitura. São uma espécie de bússola. O que é que eu quero dizer com todas esta conversa? Quero dizer várias coisas, porventura desencontradas.

Ler não é um  mero divertissement. Recordo o conceito pascaliano. Não se trata de, através da leitura, encontrar uma porta por onde o leitor se esquive de pensar, por onde entre e evite confrontar-se com a infelicidade inerente à própria existência humana. Ler não é um acto de entretenimento, para usar uma expressão agora corrente, não é um passaporte para a alienação. Ler é um acto de confrontação. A obra, se for digna de apreço, confronta-nos, põe-nos em causa, questiona, com o seu mundo, o nosso mundo, que é sempre humano, demasiado humano.

Pelo facto de a obra literária nos confrontar, a leitura acaba por ser um combate corpo a corpo. Isto porque não é só a obra que confronta o leitor. Este também a confronta, a interroga, a põe em causa, questiona as opções, confronta a solidez das personagens, a estrutura da narrativa, o génio (no sentido de este ter mau ou bom génio) do narrador. Se me perguntarem quais as vantagens dos livros de papel sobre os eReaders, eu direi: nenhuma (não me comovem o cheiro a papel e outras perversões sensuais que os amantes de livros em papel gostam de sublinhar). Nenhuma, excepto o facto de, se eu estiver a ler alguém de que gosto particularmente, mas que tem o poder, pelo excesso da sua escrita, de me humilhar e irritar – por exemplo, a Agustina Bessa-Luís –, ser muito mais barato atirar um livro de papel à parede do que um eReader. Ler é assim um acto visceral, nada açucarado ou adamado. Quem não gosta de boxe, o melhor é não pegar num livro.

Voltemos agora à sensualidade do livro, mas não àquelas perversões que entusiasmam os cultores dos livros em papel. O jogo que a obra entretém com o leitor é um jogo de sedução. Um jogo sério de sedução e não um mero divertissement donjuanesco. A obra pretenda tornar o leitor num amante fiel e persistente, um amante que não a abandone no meio da noite, que não a troque por umas horas de sono ou outra mais sedutora. A sedução não visa apenas o prazer sensorial, mas a criação de vínculos, talvez mesmo um casamento mais indissolúvel do que o matrimónio católico. A sedução nasce nesse acto de confrontação, de corpo a corpo, de batalha entre o espírito e o corpo do leitor com o espírito o mundo da obra. E é essa sedução que leva à célebre suspensão da descrença vista por Coleridge como a razão pela qual o leitor persiste na leitura de uma obra ficcionalizada.

Apesar de tudo isto, e assim como Kant exigia que a religião, pela sua santidade, e o poder, pela sua majestade, respondessem no tribunal da crítica, também um romance, como qualquer outra obra literária, terá de responder no tribunal instaurado pelo leitor. A este é-lhe pedido não apenas o corpo a corpo com a obra, não apenas o jogo erótico com o conteúdo, mas também a imparcialidade do juiz, uma imparcialidade que não se deve deixar enganar pelo fulgor da batalha ou pelo ardor do amplexo. E para que o leitor seja esse juiz nada melhor do que estar atento ao início, não porque este seja deslumbrante, mas porque nele está contido uma promessa. E o juiz deve determinar que promessa ali está e se o promitente a cumpre. E na literatura, como na arte, não há mais moral que esta.

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