quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Civilização e barbárie

Jose Clemente Orozco - American Civilization-The Gods of the Modern World (1932)

Vale a pena reflectir na tendência geral que se afirma no mundo. Numa altura em que este se globalizou e que, graças à tecnologia ocidental, toda a gente está ligada a toda a gente, a vida dos homens parece caminhar no sentido contrário da vida civilizada. Haveria muitos exemplos fora do mundo ocidental onde isso é muito claro. Perseguições religiosas, políticas, fanatismos armados, impotência perante as epidemias e a fome, tudo isso faz parte do menu da vida incivilizada. Há algo, porém, muito mais insidioso que opera já no mundo ocidental e de que ainda não aferimos as verdadeiras consequências.

As conquistas civilizacionais do Ocidente assentaram numa crença básica de carácter utilitário, mas que teve uma importante repercussão no modo de vida das pessoas. Essa crença dizia-nos que havia uma correlação entre a educação de um povo e o desenvolvimento económico. Os ataques que os sistemas universais de educação estão a sofrer são a manifestação de que as elites políticas e económicas abandonaram essa crença. A educação universal deixou de ser vista como um investimento gerador de riqueza e bem-estar, para passar a ser tida como uma despesa, um verdadeiro desperdício e, por isso, um problema a eliminar.

É possível pensar – embora talvez seja muito mais difícil provar – que essa correlação entre educação e desenvolvimento económica seja, nos dias de hoje, mais fraca do que outrora (Thomas Piketty, no seu célebre livro O Capital, mostra, com argumentos fortes, precisamente o contrário). Mas mesmo que essa diminuição da correlação seja verdadeira, a questão é que a educação não visa apenas o desenvolvimento económico. Melhor, não visa essencialmente o desenvolvimento económico. O que está em jogo na educação é a produção de uma vida civilizada que valha a pena viver, uma vida orientada, progressivamente, por valores espirituais mais elevados, uma vida estruturada sobre a razão crítica. Uma vida civilizada de uma comunidade educada não é uma garantia absoluta contra a barbárie, como o seculo XX teimou em mostrar, mas será certamente um forte antídoto.

Aquilo a que estamos a assistir neste momento é a abertura de uma brecha na crença da importância de uma educação universal (aqui pode-se ver como Portugal desinveste na educação). A educação continuará a ser importante, mas será cada vez mais capturada pelas elites, que frequentarão escolas de grande qualidade e rigor, enquanto para a massa a qualidade da educação será cada vez mais degradada. Não faltará muito para que se faça ouvir, com estrondo e em nome da liberdade, ataques à obrigatoriedade da escolarização das pessoas. Isto será, porém, apenas mais um rombo no edifício que nos permitiu chegar onde chegámos. Não é apenas a barbárie exterior, na figura do fundamentalismo religioso, que põe cerco à vida civilizada. Nem tudo aponta neste sentido, porém. Li há pouco que a Alemanha eliminou todas as propinas no ensino superior. Mas não tenhamos dúvidas que um poderoso cavalo de Tróia, fundado em crenças de matriz económico e de inspiração liberal, opera dentro da própria civilização, apostando na destruição das mais importantes conquistas civilizacionais. Um terrível e poderoso combate trava-se na sombra entre civilização e barbárie. E o inimigo não está apenas fora de nós.

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