sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Um processo de destruição

 
A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Portugal, com a crise da dívida soberana e a actual governação, entrou, com o atraso que é habitual num país periférico, na era thatcheriana da política. Até aqui, tinha convivido com a vitória do neoliberalismo, mas tentava preservar algumas das conquistas sociais e civilizacionais que tinham chegado ao país muito tarde, depois do 25 de Abril e da adesão à CEE. Conquistas essas que a senhora Thatcher tinha mandado, pura e simplesmente, para o caixote do lixo. Para nós percebermos as consequências daquilo onde estamos metidos vale a pena citar uma frase célebre da ex-primeira-ministra britânica publicada em 1993: Não existe essa coisa da sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos.

Esta frase, que se tornou o lema dos poderes políticos que governam para os mercados, tem consequências terríveis. A principal é a duma ideologia que nega a existência do bem comum. Se não há sociedade, não há, como costuma dizer um amigo meu, nenhum bem comum que se sobreponha aos interesses particulares. Por isso, tudo pode e deve ser privatizado, desde a saúde à água, desde as infra-estruturas da electricidade às escolas. É isto que estamos a descobrir em Portugal. A segunda consequência prende-se com as antigas redes de solidariedade que suportavam a comunidade e a defesa do bem comum. Como o bem comum não existe, então não faz sentido a existência dessas redes de solidariedade, que vão dos sindicatos às estruturas governativas de protecção social. Desde há muitos anos que assistimos ao sistemático e paulatino desmantelamento dessas redes. Só os indivíduos existem, só os seus interesses particulares e egoístas contam.


É evidente que esta ideologia extremista fundada num individualismo radical não se impõe de um dia para o outro. Precisa de lutar e destruir as velhas tradições da humanidade. O homem sempre foi compreendido como um animal que vive em sociedade. A perspectiva neoliberal da senhora Thatcher – agora tornada dogma da direita portuguesa – entra em contradição com os hábitos da humanidade e a forma como os homens têm afirmado a sua vida. Nunca a não ser nos nossos dias alguém se teria lembrado de fazer política como se a sociedade não existisse. O que vamos assistir em Portugal é a um acelerar do processo de destruição dos laços sociais, das redes comunitárias, da sociedade, numa palavra. Em nome de quê e para quê? Em nome do indivíduo e dos seus interesses particulares e egoístas. Para que alguns indivíduos, socialmente fortes e bem colocados, possam fazer dos outros indivíduos, mais frágeis, isolados e sem defesas sociais, o pasto para as suas actividades de rapina.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Metamorfoses 20 - A liberdade de ir de lugar em lugar

Pierre Auguste Renoir - The Bathers (1884-1887)

20. A liberdade de ir de lugar em lugar

A liberdade de ir de lugar em lugar,
de traçar uma rota
e deixar o corpo caminhar em silêncio.

Esse silêncio que anuncia a primavera,
os dias inquietos a crescer
para dentro do tumulto do coração.

O teu coração despido de invernos,
aberto como um corpo
a arder no sangue venturoso da noite.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

À porta da tragédia

Gustav Klimt - Tragédia (1897)

O que poderemos esperar de uma escolha de governo em democracia directa, como em Esparta? Só uma palavra me ocorre: tragédia. A situação na Ucrânia está a ficar em perfeito descontrolo. Todos os radicalismos e utopias julgam ter o caminho aberto para as suas aventuras. Eleger uma governação de forma directa e em conformidade com a intensidade do ruído provocado pela a arruaça da plebe reunida é o pior que se pode desejar a um povo. Este divertissement de gente exaltada pode medrar no vazio de poder aberto pelo confronto surdo - ou não tão surdo quanto isso - entre as potências ocidentais e a Rússia. Para se perceber o caos para onde se caminha basta ler as palavras do que parece ser o chefe fáctico da revolução: "Não consigo explicar-lhe o que vai acontecer", diz Andrei Parubi e acrescenta: "É impossível prever, ou imaginar. É uma experiência que nunca se fez. E, claro, comporta muitos riscos. Pode acontecer que às sete horas 30 mil pessoas estarão aqui aclamando um governo, e , horas depois, outras 30 mil virão aqui derrubá-lo". Quem se interessa pelo fenómeno político percebe que, se um princípio de ordem não triunfar, estamos às portas de uma tragédia inominável.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Da essência da leitura

Jean-Baptiste Regnault - La Educación de Aquiles por el Centauro Quirán (1782)

A excessiva ocupação tem as suas consequências. Em vez de um texto novo um recuperado do meu antigo blogue averomundo.

Em novo lera muitos livros, mas chegado aos trinta anos descobrira que tanta informação pouco ou nada o fizera aprender. Decidiu, então, ler um só livro o resto da vida, mas lê-lo continuamente até descobrir o segredo que lá se ocultaria. Hesitou. Talvez a Bíblia devesse ser o livro escolhido, ou o D. Quixote, porventura a República. Por fim, elegeu a Ilíada. Ao fim de dez anos, sentiu que ainda assim havia excesso de palavras e o progresso na aprendizagem era pouco. Decidiu que apenas leria, mas leria total e completamente, o chamado catálogo das naus. E assim fez durante outros dez anos. No dia do quinquagésimo aniversário a razão segredou-lhe que o melhor seria apenas ler um e só um verso. Aí não teve dúvidas. Escolheu o primeiro da Ilíada, pois nele está já contido todo o poema. Dia após dia, mês após mês, ano após ano, lia ininterruptamente: «Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida». Quando fez oitenta anos, já há vinte, de manhã à noite, que apenas lia uma palavra: «cólera». A morte surpreendeu-o pela tarde luminosa de um dia de Junho. A face mantinha o sorriso de quem aprendera a suavizar o coração. A boca, porém, diz quem o viu, continuava a dizer pausadamente có-le-ra, có-le-ra, có-le-ra…

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Gestores da amargura

Ramón Pérez Carrió - A neblina é a cor da amargura (1995)

Os tempos que se aproximam trazem consigo uma necessidade imperiosa, a estranha urgência de gerir a amargura. Não é um mero problema de administração pessoal do azedume, da angústia e do ressentimento. Para isso, psicólogos e psicanalistas chegariam, aqui ou ali com a colaboração de algum sacerdote. A amargura que vai ser preciso gerir tem uma dimensão social, resulta da intensificação paroxística das múltiplas amarguras individuais. Depois de décadas em que se prometeu, ali mesmo ao virar da esquina, a abundância e a felicidade eterna, a velha cornucópia foi roubada, e onde se anunciava abundância há penúria, onde se oferecia felicidade apenas se vende desdita e infortúnio. No mundo onde escasseia o trabalho, criou-se um imenso mercado para os gestores da amargura.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Metamorfoses 19 - Não sei se o rosto diz aos outros o coração

Eugène Emmanuel Amaury-Duval - O nascimento de Vénus

19. Não sei se o rosto diz aos outros o coração

Não sei se o rosto diz aos outros o coração,
o fogo que arde no ventre da alma,
as promessas a que pela tarde disse não.

Não sei se estou demasiado longe ou perto,
se a morte campeia noutra pátria,
no lugar baldio dum poema inquieto.

Não sei, eis toda a certeza que me resta,
o olhar inclinado sobre o mundo,
o desejo do corpo que se manifesta.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Cadernos do esquecimento 7- A complacência


Continuação da recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 17.09.2009.


A complacência com os outros ou a mais completa indisponibilidade para a sua compreensão têm uma origem comum, a autocomplacência. Mas a autocomplacência não deve ser entendida como benevolência ou benignidade perante si mesmo. Todos temos o dever de ser benévolos e benignos connosco, mas não complacentes. A autocomplacência deve ser entendida como uma condescendência consigo, num suportar com indiferença o que em si deveria ser insuportável. Foi através dela que me descobri radicalmente português. Isso não significa uma legitimação da minha autocomplacência, apenas me integra numa comunidade de atitude, apenas me dá uma família de gesto. A indiferença com que suporto o que em mim deveria ser insuportável dissolve o padrão que me leva a considerar como insuportáveis certas coisas. A indiferença é uma estratégia de dissolução do elevado e da produção de condescendência com o que não merece benevolência. A indiferença produz a remitência do irremissível. Sempre fiquei seduzido por uma das ideias centrais da ética kantiana, nomeadamente na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. A ideia da natureza irremitente da razão. Temos o dever de não condescender connosco, o dever exige, sem remissão possível, a nossa absoluta submissão. O meu fascínio nasce precisamente da minha natureza inclinada à remitência de mim mesmo. Por isso sou com os outros, o mais das vezes, completamente complacente e, ao mesmo tempo, completamente indisponível.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A grande derrota

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Há muitas pessoas – umas mais ingénuas e outras nem tanto – que se interrogam por que motivo o comunismo exerceu uma tão forte influência no mundo intelectual e por que razão os crimes do comunismo – que não foram poucos – são tratados de forma mais benevolente do que os crimes nazi-fascistas. A questão, porém, não tem nada de esotérico, nem exige uma especial iniciação para a decifração do mistério. O comunismo trazia com ele a promessa de um homem novo, de um homem melhor, liberto não apenas da servidão mas também do egoísmo e da maldade. Esta promessa inscrevia na luta política e social, de uma forma laica e secularizada, a promessa cristã do homem novo. Foi esta estranha combinação que fez o prestígio do comunismo entre os intelectuais e que levou a minorar a dimensão dos seus crimes quando tomou o poder.

A queda do muro de Berlim e o desmoronar dos regimes e ilusões comunistas representaram uma grande decepção. Não do ponto de vista político ou mesmo social. A decepção reside no fim da crença no homem novo. Não há nenhum homem novo, liberto do egoísmo e da maldade, que se possa produzir por engenharia social. A política não é o lugar de produzir um homem melhor. Os processos educativos – mesmo os processos de educação para sociedades não concorrenciais e não fundadas no egoísmo – tocam muito superficialmente naquilo que o homem é. A grande experiência vivida no século passado foi a do fim desta ilusão – a bela ilusão de um paraíso alcançável por via política e educação colectiva. Essa grande experiência foi, contudo, a experiência da terrível derrota do optimismo antropológico.

Este fracasso duma visão optimista do progresso moral da humanidade não implica, contudo, que a política deva ser, como passou a ser, um lugar de protecção e fomento dos instintos egoístas e predadores existentes na espécie humana. Assistimos, desde os anos noventa do século passado, à glorificação social do egoísmo, ao louvor dos comportamentos predadores dos mais fortes sobre os mais fracos, à pulverização de todos os valores ligados à solidariedade e ao reforço da vida em comum. Com a crise actual, desapareceram, ao nível das elites governativas, quaisquer pruridos. Hoje, independentemente do tom mais ou menos suave, é dos próprios governos que vem a receita e a celebração daquilo que há de pior na humanidade. Ora se a política não é o lugar para construir um homem melhor, ela também não deve ser o lugar onde se glorifica e protege, com a cobertura da lei, aquilo que há de pior na humanidade. O facto de isso estar a acontecer é a maior das derrotas da civilização ocidental.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O incêndio de Kiev

Marc Chagall - A guerra (1964-66)

Vamos lá ver se me entendo no meio de toda esta barafunda. O que se está a passar na Ucrânia é uma guerra civil (Público), onde pessoas morrem e a violência alastra sem dó nem piedade. Neste momento há dois processos de construção do sentido dos acontecimentos que têm uma característica comum. São absurdamente vergonhosos. Por um lado, aqueles que apoiam a oposição falam de democracia, de direitos humanos, etc. Esquecem que um dos grupos mais activos dessa oposição é nazi. Por outro, os apoiantes do governo falam de luta anti-fascista e, quando a vergonha é nula, anti-capitalista, esquecendo o carácter nada recomendável do poder instalado. O que está em jogo, porém, não são os sentimentos e desejos das diversas facções do povo ucraniano, mas os interesses geopolíticos e geo-estratégicos das grandes potências, isto é, da Rússia e dos EUA, estes acolitados pelos serviçais da União Europeia. No que se está a passar na Ucrânia não há lado bom, mas apenas a maldade do poder, a falta de pudor das grandes potências, a continuação da guerra-fria, bem quente, noutras circunstâncias. O que estamos a assistir não é qualquer batalha pela emancipação dos ucranianos, seja qual for o lado considerado emancipador. Apenas observamos um exercício de pura realpolitik levado a cabo por ambos os lados, sem qualquer consideração pelas pessoas. Luta-se pelo território. Estamos a assistir ao nascimento duma Síria em plena Europa. Talvez um dia acordemos e o incêndio esteja já dentro de casa.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Assimetrias educativas

Giorgio de Chirico - Escola de gladiadores (1953)

A partir da análise dos resultados do PISA, a OCDE descobriu que o sistema de ensino português não consegue reduzir as assimetrias sociais (Público). Esta extraordinária constatação serve para quê? Como estamos em Portugal, pode servir para duas coisas. Se o governo estiver centrado no PSD, esta constatação servirá para reforçar o objectivo de privatizar a escola portuguesa, de entregar os dinheiros dos impostos aos "empresários" da educação, que hão-de surgir como cogumelos. Se o governo, porém, estiver centrado no PS, as conclusões da OCDE servirão para aumentar até à paranóia a burocracia escolar, inventando reuniões, projectos, planos, actas, grelhas, avaliações. Seja qual for a opção, o importante é que se finja que se faz alguma coisa para que tudo continue como está.

A OCDE talvez não perceba, mas o sistema educativo português está desenhado para não reduzir as assimetrias sociais. Pelo contrário. Apesar da propaganda, ele foi concebido para solidificar as assimetrias existentes e, neste momento, está a ser pensado para as aumentar ainda mais. Imagine o leitor que o nosso sistema funcionava como o finlandês ou o japonês, sistemas onde as assimetrias sociais têm muito pouco peso nos resultados dos alunos, ao contrário do que se passa em Portugal. Isto significaria à partida que muitos mais alunos teriam bons desempenhos e muito mais gente deveria entrar nas universidades e institutos politécnicos. E depois? O que fazer dessa gente?

Esta pergunta cínica pretende chamar a atenção para uma outra coisa. Há muito tempo que o desempenho do sistema educativo, apesar da forma como está concebido, é mais eficiente do que o mundo empresarial e as elites políticas. Apesar das disparatadas e iníquas políticas educativas, o professorado português tem feito um trabalho absolutamente notável, sublinho notável. De tal forma que o mundo empresarial - esse mundo tão louvado pelos políticos de serviço - não consegue absorver as pessoas que saem do ensino superior, o qual já eliminou muita gente que com mérito lá tinha entrado. Têm de emigrar, como todos agora sabemos. 

Nem as elites económicas nem as elites políticas têm conseguido estar a par da qualidade de formação dada pela escola portuguesa, apesar desta estar muito longe daquilo que é desejável num país do primeiro mundo. A única solução que essas elites encontram é, precisamente, desenhar e impor um sistema educativo que petrifique ou amplie as diferenças sociais. Numa sociedade onde os empregos interessantes e bem remunerados são muito escassos, a solução encontrada é manter, através da escola, a estrutura social existente, enquanto se grita, na televisão, que tudo se está a fazer para uma escola que assegure a igualdade de oportunidades. Quem conhece bem o sistema educativo, sabe perfeitamente o que está em causa. Seja como for, os professores que se preparem. Vão ser o bombo da festa das conclusões da OCDE.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Metamorfoses 18 - Abandono o lugar que me deram

Aguiar (docteur) - Maisons à Auvers-sur-Oise (1875)

18. Abandono o lugar que me deram

Abandono o lugar que me deram,
a certeza sobre a raiz das coisas,
a verdade que me entrega na noite.

Vou para a rua de pele estilhaçada
e abrigo-me nas lâmpadas do jardim,
na palavra que suspeito na tua boca.

Tempo transfigurado e sem destino,
abre-me a porta da velha casa
e deixa-me olhar o mundo dessa janela.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Cadernos do esquecimento 6 - A imaginação pura


Aulas e mais aulas, apoios e, para acabar o dia, uma reunião. Uma daquelas que passaram a ser o objectivo especializado da escola portuguesa. Tudo isso é um contributo para continuar a recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 16.09.2009.

Um artista tem uma imaginação prática. Ela impele-o para a realização, para a transformação da matéria em novos objectos, singulares e irrepetíveis. A imaginação prática do artista é uma imaginação produtora, demiúrgica. Eu também sou um ser de imaginação, mas a minha não é prática. Ela é um nevoeiro onde fico retido. Nada nela me impele a agir, a transformar, a tornar concreto. Sofro de imaginação pura, de uma imaginação que odeia o concreto e o concretizar-se. Uma imaginação pura é uma imaginação sonâmbula. Sofrer de sonambulismo é um destino tão nobre como outro qualquer, como o de ser artista, por exemplo. Desde sempre me lembro de sofrer de uma imaginação assim, sonâmbula, de uma imaginação que armadilha o corpo, que rompe os laços com o real, que destrói, uma a uma, as fibras da vontade. Por vezes finjo que sou um ser da razão, mas isso é apenas um penoso exercício exterior, uma máscara social, o mínimo que me permite pagar as contas. Para além disso, há apenas um nevoeiro de imagens sortidas, de coisas que vão e vêm, de um fascínio que me prende na quietude dos dias. Talvez exista, ou tenha existido, algum povo assim. Esse seria o meu povo. 

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Leituras poéticas - Eduardo Bento - "Perdura a memória"

Fotografia de Margarida Trindade

Perdura a memória
revestida de pó
a desfazer-se
como corre o Letes sem nascente e sem foz.
Ali
é onde o olhar se prende
onde gestos e vozes
se apagam lentamente
e o palpitar do peito
resiste às cinzas e ao vento.

                                           (Eduardo Bento, A casa já não abriga vozes, 2011, p. 41)

Este poema pertence a um livro feito a duas mãos. Combina poesia e fotografia. De todas as combinações possíveis essa é a menos espúria, pois que outra coisa é a fotografia senão uma metáfora que encontra a sua irmã na metáfora poética? A poesia é de Eduardo Bento e as fotografias de Margarida Trindade. A conjunção de ambas deu origem a um belo objecto estético que dá pelo nome de A casa já não abriga vozes. Mas concentremos a atenção apenas no poema em epígrafe, que pode ser uma chave de leitura para o jogo que no livro poesia e fotografia vão entretecendo.

A comparação indiciada pela conjunção como no início do quarto verso (como corre o Letes sem nascente e sem foz) introduz um inusitado estranhamento. Este pode ser pensado como o dinamismo propulsor de todo o poema. O que é dito do Letes? Que corre sem nascente e sem foz, isto é, sem princípio e sem fim. O como estabelece, então, uma analogia entre a memória e o rio Letes. Pela analogia, também a memória não tem principio nem fim. Apesar de revestida de pó a desfazer-se, ela perdura e, pela analogia estabelecida, podemos dizer que a memória perdura na sua infinitude. A analogia liga dois infinitos. Então se a memória e o Letes coincidem na sua infinitude, como justificar que a analogia introduza um estranhamento propulsor do poema? Que estranhamento será este fundado numa analogia, essa estratégia que visa compreender o familiar naquilo que parece estranho?

O estranhamento deriva do facto do rio Letes ser o rio do esquecimento, provém da composição analógica fundada não numa semelhança, mas na oposição entre memória e esquecimento. O que aproxima estes dois elementos é aquilo que os afasta. Uma escavação arqueológica na matéria desta analogia não deixa de revelar uma densa presença da filosofia ocidental. Num primeiro momento, o leitor é reenviado para a coincidentia oppositorum (coincidência de opostos) de Nicolau de Cusa. Na sua infinitude, a memória e o esquecimento, apesar de opostos, coincidem. Depois, a referência ao rio Letes traz a inevitável presença da concepção platónica de verdade (αλήθεια - alétheia). Em Platão a verdade é alétheia, a negação do esquecimento, é memória, recordação, anamnese. A analogia introduz, dessa forma, dois focos tensionais, geradores de energia poética: a memória e o esquecimento, a verdade e a não verdade.

A partir deste núcleo dinâmico o poema vai centrar-se na revelação da natureza da própria vida. Isso é feito através da mediação do quinto verso. Este resume-se a um advérbio: Ali. Ali, sim, mas onde? Na casa que a fotografia mostra? Sim e não. A casa que a fotografia de Margarida Trindade revela não é uma casa, mas o locus onde se dá a tensão entre memória e esquecimento, entre verdade e não verdade. Aquela casa é o infinito onde estes pares de opostos coincidem. Ali a vida ganha sentido - diria antes, a vida luta pelo seu sentido. Como?

De novo pela coincidência dos opostos: Ali / é onde o olhar se prende /(...) / e o palpitar do peito / resiste às cinzas e ao vento. A vida afirma-se, na sua potência, na acção do olhar, no palpitar do peito que resiste às cinzas e ao vento. Mas Ali / (é) onde gestos e vozes / se apagam lentamente e se tornam cinzas e vento. Ali é o lugar onde a morte se inscreve na impotência da vida. Morte e vida coincidem ali. Nesta coincidência, a vida ganha todo o seu sentido como jogo entre a potência do olhar e da resistência e a impotência do apagamento e redução a cinzas. Ganha sentido na hábil administração do memorável e do esquecível. Ganha sentido na luta entre a verdade e a não-verdade, que não é outra senão a luta pela persistência infinita da memória perante a infinita ameaça do esquecimento.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Uma mancha obscura

Marlene Dumas - Night Time (1993)

São negros os tempos. Esta sensação parece ter-se pegado aos dias e não os larga, contaminando tudo, alastrando no centro da vida, instalando-se nos sítios mais inimagináveis. Não se trata da crise. É muito mais do que isso. A distribuição da riqueza, ou a sua ausência, é apenas a consequência dessa mancha obscura que cresce no horizonte. Que palavra utilizar para caracterizar o que se passa? Colapso? Falência? Qualquer coisa colapsou dentro das pessoas, abriu brechas e deixou que o pior começasse a vir ao de cima. Sim, o pior está a emergir e vai continuar. A muralha abriu rombos e os diques cederam. O mal encontra cada vez menos obstáculos. Tomou conta dos governos e tornou-se legislador. A lei já não serve para conter o mal, mas para o ampliar, para o tornar obrigatório, para banalizar aquilo que antes seria motivo de escândalo. O mal é agora a linguagem comum, domina as conversas, apropria-se das expectativas, desdobra-se através do zelo dos apóstolos. Uma mancha obscura alastra sob a cumplicidade estridente do silêncio.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Um triste caminho


Associamos a ideia de cidadania à ideia de inclusão. Ser cidadão significa ser reconhecido como fazendo parte de uma certa comunidade política, a qual confere um conjunto de direitos e exige um conjunto de deveres. No conceito de cidadania, todavia, não se pensa apenas a inclusão. Dele faz parte a exclusão do estrangeiro. Para perceber o que se passou no referendo suíço, onde foi aprovada uma drástica limitação à imigração proveniente da União Europeia, convém não esquecer este lado – o de promotor de exclusão – do conceito de cidadania. Ser cidadão é fazer parte de um clube onde o direito de admissão é reservado, muito reservado.

Esta ideia de clube selecto e reservado é fundamental para percebermos o que se está a desenhar por essa Europa fora. Não são apenas os suíços que querem limitar a entrada de imigrantes. Difunde-se, um pouco por toda a Europa, um espírito de exclusão em nome dos interesses dos cidadãos nacionais. O que se está a passar? Em nome de um capitalismo globalizado, assiste-se à liquefacção – para usar um termo de Zygmunt Bauman – das fronteiras. Capitais, mercadorias e pessoas – na generalidade, mão-de-obra – fluem de um lado para o outro, segundo os humores dos mercados e os interesses daqueles que dominam esses mercados.

Este fluir de dinheiros, produtos e gentes tem por consequência – e por objectivo – desagregar os direitos sociais, conferidos pelos estados nacionais, que suportavam e davam conteúdo material aos direitos cívicos. Isto gera uma grande pressão sobre o modo de vida dos europeus, começando naqueles que possuem empregos menos diferenciados, mas atingindo já as classes médias. Quando muitos esperariam que a resposta à contínua política de liberalização fosse uma inclinação das populações para soluções políticas de esquerda, o que se está a passar é precisamente o contrário. Um pouco por todo o lado – embora o fenómeno ainda não esteja presente em Portugal – é a extrema-direita nacionalista e iliberal que cresce.

As pessoas em vez de procurarem soluções fundadas na solidariedade e na defesa comum dos instrumentos de bem-estar comunitário – protecção social, saúde e educação públicas –, entregam-se ao sentimento de exclusão que está presente na ideia de cidadania. Perante a desgraça que a economia globalizada representa para o modo de vida dos europeus, a resposta que está a ser encontrada – como um amuleto contra essa mesma desgraça – é escorraçar os ainda mais desgraçados, é fortalecer o velho nacionalismo e reanimar velhos ódios. Nada disto é novo. Por duas vezes, no século passado, foi o caminho, um triste caminho, para a guerra mundial.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Vittorio de Sica - Os Sequestrados de Altona


A obra de Vittorio de Sica, de 1962, é uma adaptação da peça homónima de Jean-Paul Sartre, estreada em 1959. O filme move-se no território sombrio e pantanoso da relação dos alemães - da grande indústria alemã - com o nazismo e, depois, com o regime democrático e os aliados, seus ex-inimigos. Há uma intuição central que torna o filme bastante actual, o domínio alemão. Esta intuição da peça de Sartre, apesar de ocorrer ainda nos anos cinquenta, não é original. Em cima da própria derrota alemã, em 1945, o filósofo francês, de origem russa, Alexandre Kojève sublinhava já, em memorando ao General De Gaulle, a necessidade de uma aliança dos países latinos para contrabalançar o poderio técnico e económico da Alemanha. 

A trama gira em torno da família Gerlach, ligada à construção naval. Ao patriarca da família e gestor dos negócios é-lhe diagnosticado um cancro e uma esperança de vida de seis meses. O problema que se lhe põe não é o da sua morte, mas o da sua sucessão nas estaleiros navais da família. Franz fora a grande esperança do pai, mas tornara-se numa sombra fantasmática. Teria fugido para a Argentina, na sequência de prováveis crimes de guerra, onde fora dado oficialmente como morto. Na verdade, vivia há muito fechado no sótão da mansão dos Gerlach, onde só recebia a incestuosa visita da irmã, Leni. Restava Werner, o outro filho, mais interessado no teatro e numa actriz, Johanna, que representa a consciência moral anti-nazi e, não por acaso, lateral à família Gerlach.

Algumas traduções do título do filme, como a inglesa ou a brasileira, trocam "sequestrados" por "condenado", numa clara tentativa de ler o isolamento de Franz no sótão como uma condenação. A questão que o filme coloca é, porém, muito diferente. Não se trata de uma condenação mas de clausura, de fechamento. Toda a família Gerlach - antes de todos o pai e Franz - está sequestrada por lógicas  e princípios morais diversos, os quais lhes reforçam o núcleo central das suas convicções, aliás bem diferenciadas.

Em Gerlach pai o facto decisivo é o negócio, a prosperidade da empresa. Para que ela prospere, aliar-se-á com o próprio diabo. Serviu Hitler, denunciou um jovem rabino judeu, e, no presente, serve os aliados que derrotaram Hitler. Não há nele outra moral que não a da preservação da empresa. Os regimes passam mas os negócios da família devem continuar. Para a grande burguesia alemã não há estados-de-alma ou considerações de carácter ideológico. Gerlach está sequestrado pela sua própria concepção do mundo, fechado nela e, por isso mesmo, incapaz de compreender o mundo moral dos filhos.

Franz Gerlach, cuja culpabilidade nos crimes nazis nunca é esclarecida, está também sequestrado. Mas o seu sequestro não é tanto o do sótão onde vive fechado há muitos anos, mas o da própria narrativa que ele, ajudado pela irmã, constrói sobre a contínua decadência de uma Alemanha derrotada, em ruínas, sem futuro ou esperança. Ele escreve a crónica do século XX alemão que será lida no século XXX, uma crónica delirante e completamente desligada da realidade. Franz Gerlach está sequestrado na sua visão moral do mundo e no delírio que construiu.

A certa altura é dito: Graças à derrota a Alemanha tornou-se a maior potência da Europa. Uma derrota providencial. O mecanismo interno deste triunfo revela-se nestas duas personagens. O pragmatismo germânico está construído sob um processo de recalcamento e de delírio. A racionalidade de Gerlach pai - essa velha racionalidade da burguesia germânica - tem no seu cerne a loucura e o delírio de Gerlach filho, como se o fundamento da razão - da razão prática e utilitária - fosse a desrazão. É a síntese da razão calculadora e da desrazão delirante que faz da Alemanha uma potência desmedida e trágica. Melhor, uma potência cuja falta de medida a conduz à tragédia, como está patente no destino do pai e de Franz.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Metamorfoses 17 - Ainda há folhas secas presas nos ramos

Piet Mondrian - Red Tree

17. Ainda há folhas secas presas nos ramos

Ainda há folhas secas presas nos ramos.
Aguardam o sopro do vento
para dissolver na terra o fruto do Verão.

Escondem nas manchas turvas uma promessa,
a esperança de amanhã voltar à vida
e verdes caminharem na terra da eternidade.

Olho-as, oscilando na sombra da janela,
e sinto-me baloiçar num velho ramo:
Espero na terra que o vento me reclame.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Cadernos do esquecimento 5 - O futuro

Em maré de muitos afazeres deste blogger, continua a recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 15.09.2009.


A condição histórica é a natureza da humanidade fora do estado paradisíaco. Submetido ao tempo, o homem soçobra sob o jugo terrível do império do futuro. Este sempre foi visto como uma ameaça, o cumprimento de uma sentença inapelável de condenação à morte. A modernidade, porém, subverte esta experiência arcaica e faz do futuro um lugar radioso, o sítio onde se cumprem todas as expectativas. Assim se percebe, por exemplo, a natureza do homem revolucionário, e eu já fui um revolucionário, embora diletante e falhado. Quer destruir o presente – toda a ordem da presença é abominável – para que o futuro se realize. Por isso, deixa atrás de si um rasto interminável de sangue. O futuro nunca deixou de ser o lugar da morte. 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Um topo de gama

Le Corbusier - Automóvel (1928)

Esta história de um sorteio com facturas para combater a evasão fiscal transporta, para além do pitoresco (na voz da imprensa espanhola) ou da abjecção (na crónica de Pulido Valente), um sinal revelador da nossa sociedade e da mentalidade - talvez em grande sintonia com a sociedade - daqueles que nos governam. Os governantes, na sua impaciência e falta de liquidez para ajeitar as próximas eleições, perguntaram-se como se haveria de levar a tribo a cooperar na magna questão do combate à evasão fiscal. A resposta foi curta e grossa: um topo de gama. 

Por um carro topo de gama, imaginam os governantes, não há português que não queira a sua facturazinha com número de contribuinte. Talvez não imagine mal. Não me parece, porém, que o problema esteja na delação, como afirma Vasco Pulido Valente. O cliente não delata, apenas faz com que o fornecedor do serviço não fuja aos impostos. As funções policial e de controlo fiscal foram distribuídas, dessa forma, por toda a população. Uma distribuição soft e em jeito de quermesse de festa na aldeia. Não há quem não queira uma rifas para ver se lhe sai um penico de barro ou um alguidar de plástico. 

Tudo isto - para além de abjecto ou de enxovalhante para este pitoresco país - é revelador do mundo onírico dos nossos governantes (não apenas dos actuais, não apenas do poder central). Sonham com carros topo de gama, lutam pelo poder para poderem ser transportados em carros topo de gama, fazem um conjunto de safadezas inomináveis aos eleitores para que sejam vistos em carros topos de gama. O topo de gama é a matéria que preenche o vazio que há naqueles cérebros. O topo de gama é o passaporte do desbiografado e do desqualificado que a política acolhe, é a senha que lhe há-de permitir, pensa ele, entrar no mundo daqueles que tudo o que têm é topo de gama. E foi esta gente que se lembrou do discurso - um discurso topo da mais baixa gama - sobre os portugueses que viveram acima das suas possibilidades. O sorteiozinho não é outra coisa senão a projecção do desejo que habita em quem nos governa. Esta democracia paroquial de tipo orwelliano estará mais inclinada para o 1984 ou para o triunfo dos porcos?

domingo, 9 de fevereiro de 2014

O sentido das coisas

Edvard Munch - The Storm (1893)

Em certo tipo de pensamento simbólico - pensamento que horrorizará os guardiões do templo da razão - estabelece-se conexão entre o que se passa entre os homens e os acontecimentos da natureza. Por exemplo, o desarranjo dos elementos simbolizará o desarranjo da vida e sociedade humanas. A ira dos céus estará em correspondência com a raiva na Terra. Este pensamento analógico não explica, certamente, nem os fenómenos físicos nem os naturais. Também não permitirá fazer previsões ou construir estratégias de defesa do homem contra as indisposições da natureza. Deitá-lo fora, porém, seria amputar a humanidade da imaginação como instrumento de construção do sentido das coisas.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Esta história do Miró irrita-me

Joan Miró - Campesino catalán en reposo (1936)

Na polémica sobre a venda ou não dos quadros do pintor Joan Miró - quadros herdados por Portugal na infeliz nacionalização do BPN - há qualquer coisa que me irrita. Não sei bem o que é, mas que me irrita, lá isso irrita. Vejamos se descubro a fonte da irritação. Irrita-me a certeza dos lados em confronto. Esta gente nunca tem dúvidas? Tudo é óbvio no assunto? Os que querem vender, parece que querem vender porque sim e porque não temos dinheiro (uma mentira esfarrapada). Os que não querem vender, não querem porque não e porque aqueles que são a favor da venda são uns labregos. Parece que estamos num cenário já pré-determinado. A esquerda quer conservar, a direita quer vender. Mas isto faz algum sentido? A esquerda não deveria equacionar o problema económico? A direita não deveria meditar sobre a importância do valor artístico dos quadros e a possibilidade deles serem um investimento nacional? O tipo de intervenções proveniente da classe política, bem como dos que lhe servem de eco, à esquerda e à direita, é do mais rasteiro e do mais miserável que se poderia encontrar. Tudo isto irrita-me, mas há uma coisa que ainda me irrita mais. É o ar de sobranceria com que os portugueses são tratados neste caso por alguns comentadores. Na verdade, segundo eles, os portugueses não passam de um bando de gente ignorante e que não deveria abrir a boca sobre o que quer que seja. Então se se tratar de cultura, tirando esses comentadores, ninguém tem o direito, se estiver no seu perfeito juízo, de dizer seja o que for. Nunca ninguém, segundo essa gente, terá ouvido falar de Miró, quanto mais conhecer-lhe a obra. É um despautério a plebe querer falar de pintura e até haver gente que queira que Portugal fique com os malfadados quadros. Tudo isto mostra a doença profunda que se abate sobre o país. Isto irrita-me.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O direito à humilhação


Não queria escrever sobre a vexata quaestio das praxes académicas. O que me demoveu desse intento foi ver, num programa de televisão, um estudante proclamar: todos nós temos direito a ser humilhados. Vi, ouvi e recostei-me sem alento. Todos aqueles rapazes e raparigas que ali estavam em defesa da praxe vinham anunciar um novo direito, o direito à humilhação. No meu desalento, e perante aquela gente que, toda ela, teve aulas de filosofia no secundário e estudou a ética de Kant, perguntei-me para que serve um professor de filosofia. Para que serve ensinar que a moral kantiana nos impõe como dever absoluto o respeito pela dignidade da pessoa, tanto na nossa pessoa como na de qualquer outro? O direito à humilhação, agora reivindicado pelos jovens adeptos da praxe, é o direito a não ser respeitado, é o direito a que a nossa condição de pessoa seja suspensa e sejamos tratados como coisas. Para que serve um professor de filosofia, se os seus antigos alunos querem ser coisas?

Depois pensei na história dos homens e tornei-me menos severo com a minha profissão. Na verdade, vinte séculos de Cristianismo e de prédica do amor ao próximo de nada serviram. O próximo não quer ser amado, quer ser humilhado. Três séculos de Iluminismo e de glorificação da razão e da ciência são nada perante o novo e romântico direito de ser humilhado. Dois séculos de direitos humanos, direitos que sublinham o respeito pela pessoa, e estes garbosos rapazes e raparigas gritam bem alto: o único direito que nos interessa é o de sermos humilhados.

Houve tempos em que os estudantes universitários correram sérios riscos para defender o direito inalienável – pensava eu – de ninguém ser humilhado. Era neles – também neles – que se fazia ouvir a voz da razão. Hoje os estudantes apenas querem ser integrados num círculo onde a humilhação é a moeda de troca. Hoje sou humilhado, amanhã humilharei. Eis uma experiência de vida, como dizem os adeptos da praxe. É esta experiência que trarão para as empresas, para as instituições, para o país. Este caldo cultural que, há algumas décadas, começou a fermentar na universidade portuguesa não augura nada de bom. Corremos o risco de vir da própria universidade o desprezo pela liberdade, o ódio ao saber, a perseguição aos direitos humanos básicos, a nova inquisição com as suas fogueiras. Tudo isto em nome do direito à humilhação, o qual tem, por contrapartida lógica, o dever de humilhar. A partir da universidade, a sociedade está a tornar-se num imenso e reles reality show sado-masoquista. Vão-se catar.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Cadernos do esquecimento 4 - A regência da amargura


Em maré de muitos afazeres deste blogger, recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 14.09.2009.

A política concerne ao nosso ser mais profundo ou é apenas uma governação de máscaras? Ela diz respeito ao homem expulso do paraíso. Mas aqui surgem todos os perigos. Uns, perante a posição extra-paradisíaca do homem, fazem da governação uma gestão do inferno. Outros fazem da política uma viagem de retorno ao paraíso, de onde Deus nos expulsou. Não são diferentes dos primeiros. Estar fora do paraíso não é necessariamente habitar no inferno. Pode ser amarga a vida quando se descobre o despejo divino e a imutabilidade desse decreto, mas nem a felicidade nem a infelicidade são os objectivos da política. Sensato será fazer da governação a mera regência da amargura. 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Metamorfoses 16 - Profunda, a noite com os seus mistérios

Claude Lorrain - Noite (1672)

16. Profunda, a noite com os seus mistérios

Profunda, a noite com os seus mistérios,
segredos envoltos na volúpia
com que a luz se apaga na Terra.

Um perfume de rosas anoitece no rio,
onde almas solitárias respondem
à sombria convocação das estrelas.

Um rumor de vento acorda a folhagem
e as minhas mãos dançam
na solidão nocturna do teu rosto.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O romance e a caverna platónica

Rafael Barradas - Cavernas (1917)

Recuperação de textos, em maré de cansaço, do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Texto de 07.02.2010.

A intuição de Nietzsche, que compreende Platão como um percursor do romance moderno, capta, talvez para além daquilo que o próprio Nietzsche pensava, uma relação essencial entre a filosofia platónica e a narrativa moderna. O essencial da conexão entre Platão e o romance moderno (e aqui poderia pensar outras formas de arte) não se encontra apenas na estrutura dialogada dos textos platónicos ou na fina psicologia com que são retratados alguns personagens, nem sequer nas peripécias dos diálogos ou nas técnicas narrativas.

O essencial dessa conexão encontra-se naquele que é, porventura, o texto mais famoso de Platão, a alegoria da caverna  (República, livro VII; pode ler aqui). Neste texto, como na generalidade da sua filosofia, Platão divide o mundo em dois. O mundo dentro da caverna, onde os seres humanos se encontram presos às suas necessidades naturais e às ilusões ideológicas que lhe estão associadas. Fora da caverna, existe um outro mundo, um mundo onde apenas se pode aceder pela libertação da necessidade natural e das ilusões provocadas por essa necessidade. Toda a filosofia não é mais do que o esforço de alguns prisioneiros para se libertarem da sua condição natural e das ilusões inerentes a essa condição.

O que tem, no entanto, tudo isto a ver com a literatura, nomeadamente com o romance moderno? O romance moderno, a literatura e a arte em geral, não são outra coisa senão descrições, digamos assim, daquilo que se passa dentro da caverna. Os romances, todos eles, falam apenas e só da caverna e das acções que os prisioneiros da caverna levam a efeito dentro dela. A caverna platónica com os seus prisioneiros e a verdade que eles pensam possuir é o arquétipo do mundo humano, e é deste mundo que o romance trata. Um exemplo. D. Quixote, de Cervantes, é tido como o primeiro romance moderno. Não é curioso que o personagem principal sofra de ilusões cognitivas que o levam a distorcer a realidade de tal modo que confunde moinhos com gigantes? Quixote é uma personagem da caverna platónica, e a Mancha, uma refiguração dessa caverna. Poder-se-iam multiplicar, ad nauseam, os exemplos.

Deste modo, todo o romance moderno vive da intriga gerada pela confluência das nossas necessidades naturais, manifestadas em desejos, paixões, sentimentos, etc., e as ilusões cognivitas de que somos portadores. Isto tem uma consequência. O romance, e acrescentaria toda a arte, vive sob o império da necessidade. Não me refiro à liberdade do artista enquanto criador, mas aos mundos desenhados nessas obras de arte. Necessidade e ilusão, eis a matéria do romance e, por extensão, da arte. Mas nós só sabemos que a ilusão não é a verdade e a necessidade não é a liberdade por oposição ao fora da caverna, à crença filosófica na existência de um mundo onde liberdade e verdade são a condição dos seus habitantes, se é que existe algum.

A alegoria da caverna não é apenas uma metáfora sobre a condição de possibilidade da filosofia. É ela que torna possível todo o romance e as respectivas intrigas no espaço da caverna. Sem a caverna platónica e o mundo fora da caverna (isto é, sem a cisão ontológica, para usar o filosofês), não haveria literatura nem arte em geral. Fundamentalmente não haveria romance moderno. Isto é assim mesmo que, paradoxalmente, exista literatura e arte muito antes de Platão ter visto a luz do Sol. Aqui, porém, é preciso distinguir o nível cronológico e o nível ontológico. O sentido ontológico, de que a alegoria da caverna é o símbolo, é a condição de possibilidade de toda a arte em geral.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Uma questão de amor

François Maréchal - Corrupção (1977)

Parece que, segundo Bruxelas, Portugal não possui uma estratégia de combate à corrupção (ver Público). Por outro lado, se tivermos em consideração os dados do Eurobarómetro, Portugal tem uma estranha percepção do fenómeno. Para 90% dos portugueses a corrupção é generalizada (a média europeia é de 76%). Esta percepção, porém, não é corroborada pela experiência. Apenas 1% dos portugueses afirmam que lhes foi solicitado um suborno (a média europeia é de 4%). Se a experiência da solicitação do suborno é tão diminuta, por que razão haverá a ideia duma pandemia no tecido social?

Esta visão talvez nasça de uma crescente consciência de que os negócios públicos e os cargos do serviço público se devem pautar por regras universais e imparciais. A percepção que se tem, porém, é que as regras, tendo a aparência de serem universais, são construídas de forma parcial. Esta parcialidade visa proteger os membros da família e excluir os que são estranhos. Por família entende-se a família propriamente dita, mas também algo mais amplo. Desde a preferência por amigos e conhecidos até por gente da família partidária, passando pelas famílias dos pequenos e grandes interesses, tudo isto cabe na ideia de família. Pensa-se estar perante um nepotismo generalizado, onde se institui um amplo sistema de protecção familiar.

A posição dos portugueses não deixa, todavia, de ser ambígua. Se denunciam o clima generalizado de corrupção, gostam também de se sentir parte de uma família. Quem não quer ter uma família protectora? Se há uma corrupção generalizada em Portugal, como parece haver, o problema não é apenas da classe política. É um problema de cultura que, na prática, despreza as regras racionais, universais e imparciais de gestão dos bens públicos, e pratica aquilo que se poderá chamar uma gestão afectiva desses mesmos bens. São distribuídos conforme os afectos. Isto é, são distribuídos segundo o gosto de quem os distribuiu e esse gosto está ligado ao facto de distribuidor e receptor serem afectos um ao outro. Podemos então dizer que a corrupção em Portugal não é apenas uma questão de família, é também, e essencialmente, uma questão de amor. 

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Cadernos do esquecimento 3 - A razão humilhada

Um texto novo a intercalar nos textos dos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

O zelo que o pensamento ocidental introduziu no mundo não será apenas uma espécie de doença. É um exercício de falta de probidade. Refiro-me, por exemplo, ao escândalo que é a crítica do uso de afirmações auto-refutantes. Se pudesse, ou se tivesse talento para tal, apenas usaria afirmações desse tipo. A verdade de cada uma delas implicaria a sua falsidade. Só assim me sentiria reconciliado comigo e autêntico para com o mundo e os outros. Porque tudo aquilo que digo é manifestamente falso e, por isso mesmo, verdadeiro. Este jogo risível que as afirmações auto-refutantes introduzem não é o resultado de uma deficiência lógica, mas o preço que devemos pagar pela pretensão de abrir a boca sobre seja o que for. Não se trata de uma razão equivocada, mas de uma razão humilhada.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Metamorfoses 15 - No vazio que cai sobre a cidade

Georgia O'keeffe - A black bird with snow-covered red hills (1946)

15. No vazio que cai sobre a cidade

No vazio que cai sobre a cidade,
oiço o cântico da ruína,
um pássaro de cristal silencioso.

Fora eu da grande estirpe dos profetas,
a voz troaria sobre as casas,
sobre o inverno exausto da melancolia.

No vazio que habita cada casa,
canto a ruína da cidade,
o voo silencioso do pássaro de cristal.