segunda-feira, 31 de março de 2014

Sísifo eleitoral

Ticiano - Sísifo

Se o eleitorado dos países do Sul da Europa tivesse capacidade de reflexão, certamente se veria conduzido à questão: o que terá feito para sofrer, como Sísifo, este castigo de levar às costas - ou empurrando encosta acima - um grupo político que logo o abandona e esquece tudo o que tinha prometido? Ontem, em França, mais uma vez os eleitores, que ainda há pouco tinham eleito os socialistas para a Presidência da República e feito despenhar o centro-direita, decidiram carregar às costas o centro-direita e deixar rolar encosta abaixo os socialistas. Quando os socialistas se tiverem despenhado por completo, nas próximas presidenciais, os eleitores transportarão o candidato da direita até ao Eliseu, para dar início à tarefa de o empurrar e preparar a subida dos socialistas. Um crime muito grande terão feitos os povos do do Sul para que os deuses os tenham castigado com tal tarefa. A não ser que, exaustos do exercício, se entreguem nas mãos de soluções mais radicais. Em França, os sinais dessa exaustão começam a ser preocupantes e até aqueles que podem vir a ser as grandes vítimas da solução decidiram entregar-se nas mãos dos promitentes algozes.

domingo, 30 de março de 2014

Metamorfoses 28 - Encontrar razões na desrazão

Paul Cezanne - House and Trees (1890-94)

28. Encontrar razões na desrazão

Encontrar razões na desrazão,
ouvir o eco dos gritos,
a dor estendida no cristal das casas.

A vida desfaz-se vagarosa, quieta,
inscrita no húmus seco,
onde tudo, tudo se decompusera.

Pego no álbum de fotografias
e desfolho o passado.
Nos olhos, um rio de areia e metáforas.

sábado, 29 de março de 2014

A morte do grande planificador

Stalin dead

Mas, de repente, a 5 de Março, Stálin morreu. Esta morte rompeu o gigantesco sistema de entusiasmo mecanizado, da ira popular e do amor popular estabelecidos por ordem do comité do partido.

Stálin morreu fora do plano, sem ordem dos órgãos de direcção. Stálin morreu sem ordem pessoal do próprio camarada Stálin. Nesta liberdade, neste voluntarismo da morte havia qualquer coisa de dinamitador, contradizendo a própria essência profunda do Estado. Grande perturbação abrangeu as mentes e os corações. (Vassili Grossman, Tudo Passa, p. 31)

Mais uma vez somos confrontados com a questão: para quê a literatura? E a resposta não poderia ser mais clara do que neste extracto do romance de Vassili Grossman. O autor revela-nos aquilo que sem a literatura não seria visível. Se a vida não é o lugar onde se manifesta a liberdade, então esta refugia-se e revela-se na morte. Não estamos perante uma asserção metafísica, mas diante do uso de uma estratégia literária, a ironia. O supremo planificador e ordenador da vida de milhões de pessoas é impotente para planificar e ordenar a sua morte, esse momento tão íntimo e intransmissível. E nestas poucas linhas está todo o drama e toda a limitação do comunismo. O plano, a planificação e o planificador são impotentes perante a morte. Uma sociedade onde a vida era planificada ao mais ínfimo pormenor vê-se confrontada com a irreverência libertária da morte. A liberdade assomava onde seria menos esperada e menos deseja, ela que não era desejada em lado algum. Tudo isto torna-se visível porque a literatura, através dos instrumentos retóricos e poéticos de que dispõe, no-lo dá a ver. É para isto que serve a literatura, para dar a ver o invisível. 

sexta-feira, 28 de março de 2014

A herança

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Um dos aspectos mais doentios dos defensores das políticas governamentais prende-se com o problema da terrível herança do despesismo. A partir do púlpito governativo, das cátedras televisivas ou das tribunas da blogosfera, um conjunto de sacerdotes da ausência de despesa pública arengam contra as velhas gerações gastadoras. Fazem-no, sem pudor, em nome das novas gerações que irão ficar a braços com uma terrível dívida. Esta retórica pantanosa pretende misturar, como se fossem a mesma coisa, o conjunto de investimentos em importantes infra-estruturas materiais e imateriais com os gastos resultantes da corrupção ou dos delírios eleitorais das várias irmandades que têm estado no poder em Portugal.

É preciso sublinhar – pois são muitos os distraídos – que as gerações mais velhas, as tais que são agora acusadas de despesismo e de deixarem uma dívida para as outras gerações pagarem, quando morrerem não irão levar para a cova as auto-estradas, os hospitais e centros de saúde, as bibliotecas, os centros desportivos. Também não levarão as universidades, os politécnicos, as escolas, nem os laboratórios ou os centros de investigação. E mesmo que gostem muito de futebol, deixarão cá os malfadados estádios do Euro de 2004. Essas gerações, quando morrerem, também não levarão as licenciaturas, mestrados e doutoramentos que ajudaram a pagar aos filhos e aos netos. Se estivermos bem atentos, a terrível e negra herança da dívida tem um lado solar e luminoso. Tornou, apesar de tudo o que a crise trouxe de mau, a vida das novas gerações melhor e Portugal num país menos risível. Este discurso geracional é absurdo e injusto. Ninguém das gerações agora acusadas levantou a voz contra a dívida contraída na Monarquia e que só acabou de ser paga em 2002.

Mas não houve má despesa pública? Houve. Houve decisões erradas e dinheiro que se perdeu nos corredores da corrupção. Mas esta campanha contra a despesa pública, uma campanha que confunde investimento no país e nas pessoas com falcatruas e delírios eleitorais, tem um duplo objectivo. Em primeiro lugar, justificar a destruição das estruturas do Estado que visam fomentar a igualdade de oportunidades (a Educação, a Saúde e a Segurança Social). Em segundo lugar, e esse é o seu desiderato final, transferir grandes somas das instituições públicas para as mãos de privados, mercantilizando o acesso à saúde, à educação e, se for possível e rentável, à própria segurança social. O que esta gente pretende, em nome das novas gerações, é destruir qualquer possibilidade dessas gerações terem uma vida digna.

quinta-feira, 27 de março de 2014

O apagamento da figura humana

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 3.11.2009.

Desde que comecei, aqui no blogue, a publicar poesia feita em cima de quadros, a exibição da figura humana, nesses quadros, foi-se tornando cada vez mais rara. Há séries (séries de poemas publicados no averomundo) onde ela é constante, mas nas últimas,  actual incluída, são cada vez menos os quadros onde se vislumbra um ser humano. Não quer dizer que os não haja. A primeira série deste género que publiquei, uma série feita sobre - em cima de - quadros de Gustav Klimt, tinha um certo equilíbrio entre quadros onde a figura humana estava presente e outros onde ela estava ausente. Vista daqui parece o prenúncio de uma certa esquizoidia, entendida esta na sua raiz grega, que remete para uma cisão, uma fenda que se abre na forma das coisas, neste caso da realidade humana.

Esta evolução, provavelmente passível de reversão, não representa um acréscimo de misantropia, nem um culto tardio dos deuses silvestres, nem uma patologia específica, espero. Por vezes, a humanidade cansa-nos, ou cansamo-nos de nós próprios, o que vai dar ao mesmo. Isso seria uma boa razão para o seu esquecimento. Um olhar enviesado sobre o homem, por outro lado, pode ser mais penetrante, poeticamente falando, do que um olhar directo. Ao ir apagando a figura humana, deixo pairar perante o olhar as suas obras, a aldeia que fez nascer, a paisagem que deixou subsistir, a casa que construiu, a ponte que ergueu entre duas margens. Estas obras humanas transfiguradas pela arte acabam por tornar o Homem, apesar de tudo, mais aceitável. São uma ilusão, mas são aquela ilusão que permite não desesperar completamente da humanidade. Esquecer os homens nas suas obras, naquelas sobre as quais a arte fez cair o véu da ilusão, poderá ser a condição necessária para os aceitar.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Metamorfoses 27 - Escrevo sobre o papel a biografia

Michel Larionov - O nu azul (1903)

27. Escrevo sobre o papel a biografia

Escrevo sobre o papel a biografia,
a história que nos trouxe aqui
e te deixou à minha mercê.

Uma escrita hesitante, pensativa
cruza gestos esquecidos
com a crónica das palavras perdidas.

A página avança nestas mãos
e o corpo exulta
na feroz ventura da memória.

terça-feira, 25 de março de 2014

Isto e o seu contrário

Francisco de Goya - Morreu a verdade

Quanto valerá a palavra - a palavra política, entenda-se - de um político? Por exemplo, que valor tem a afirmação do líder da bancada parlamentar do PSD de que não haverá mais cortes de salários e de pensões? Ou, noutro contexto, que credibilidade tem a palavra de Obama sobre o fim da recolha maciça de dados telefónicos pela NSA? O interessante neste tipo de promessas é que elas estão excluídas dos dois jogos-de-linguagem onde podiam ter algum  valor para os cidadãos. Não representam um contrato jurídico e, por isso, os seus autores não podem ser confrontados com a quebra de um contrato. Também não representam uma afirmação moral e, por isso, os seus autores nem sequer estão submetidos ao escrutínio que sofrem as pessoas de moralidade duvidosa ou de má reputação que não honram a palavra. O valor deste tipo de afirmação é meramente político e insere-se no jogo da luta pelo poder e pela sua manutenção. O que está em jogo, então, neste tipo de afirmações não é a sua verdade, mas a sua eficácia política. Qual o resultado de tudo isto? Nada nos garante, a nós simples mortais, de que aquelas palavras queiram dizer o dizem e não queiram dizer, precisamente, o seu contrário. A verdade, só lateralmente, faz parte do jogo-de-linguagem político, enquanto auxiliar da luta pelo poder. Para nós, é como se Montenegro ou Obama nem sequer tivessem falado.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Para quê literatura?

Lewis Hine - Great Depression - man lying down on pier, New York City docks (1935)

Consciência, dizes tu? És demasiado pobre para manteres a consciência.  (Knut Hamsun, Fome)

Voltemos aos lugares-comuns para parafrasear Hölderlin: para que serve a literatura em tempos de indigência? Antes de mais, haverá tempos que não sejam de indigência? Não é o tempo a casa dos indigentes, isto é, de todos nós? Não nos desviemos, porém, e respondamos à questão de Hölderlin com outro lugar-comum: a literatura serve para perturbar e inquietar. Perturbar e inquietar significam dar que pensar. A literatura dá que pensar. É o que faz a frase de Knut Hamsun no romance Fome. Ela mostra-nos, inopinadamente, que a consciência moral não tem um valor absoluto. Está ligada a um nível mínimo de propriedade, abaixo do qual os homens não têm direito sequer à consciência moral ou direito à presunção de a possuir. Ao manifestar o trágico da existência, a literatura explora os estratos que compõe os nossos valores e desafia o pensamento, confrontando-o com o mundo da vida. O sujeito cartesiano, despido de corpo - logo, despido de fome - pode, nas suas diversas metamorfoses - nomeadamente, na kantiana - arvorar valores morais absolutos, mas a personagem literária não habita o céu puro do pensamento. Ela tem mundo, tem corpo e tem fome e é nesta terra impura que a literatura nos mostra os valores e nos obriga a pensá-los.

domingo, 23 de março de 2014

Metamorfoses 26 - Trabalhar lentamente a pedra

Caspar David Friedrich - Neubrandenburg in Morning Mist (1816-17)

26. Trabalhar lentamente a pedra

Trabalhar lentamente a pedra,
deixá-la levedar
no fogo do medo e da dor.

Depois, com as mãos, abrir-lhe sulcos,
um leito seco e rugoso
por onde a água em tropel correrá.

Quando regressar a sombra da noite,
esperar que o passado se vá
e a aurora traga o murmúrio da manhã.

sábado, 22 de março de 2014

Convicções

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 19.10.2009.

O meu problema não é a ausência de convicções. Eu tenho múltiplas e diferenciadas convicções, arrasto-as comigo, durmo com elas, passeio-as pela rua, chego a jantar com elas. O meu problema é diferente. Reside no simples facto de não acreditar em nenhuma das minhas convicções. Mas isso não é o pior. O pior é que eu não acredito mesmo em poder acreditar nessas convicções. Há um livro de Paul Ricoeur que me fascina desde que saiu, em 1995. Resultou de longas conversas com François Azouvi e Marc De Launay. O que me fascina não é o seu conteúdo, mas o título e aquilo que ele pressupõe. O livro chama-se A Crítica e a Convicção. O pressuposto é que o exercício crítico da Filosofia acaba por depurar as convicções, tornando o convicto mais convicto das suas convicções. O meu fascínio reside no simples facto de nenhuma convicção que eu possa ter resiste ao exercício da crítica. A crítica dissolve todas as convicções, todas as crenças, tudo aquilo que tomamos por verdadeiro. Por isso, protesto pela dissolução niilista da verdade, protesto contra o relativismo. Mas não creio sequer no meu protesto, não passa de um gesto inútil.

sexta-feira, 21 de março de 2014

O caminho para o autoritarismo


Um estudo europeu – European Social Survey “Significados e avaliações da democracia” – mostra a existência, em Portugal, dum declínio da satisfação com a democracia. Os dados da investigação referem que, nos países com maiores desigualdades de rendimentos, a justiça social surge como elemento indissociável do conceito de democracia. Ora, segundo alguns intelectuais de orientação liberal, a democracia não deve estar ligada às expectativas de evolução dos rendimentos das pessoas ou a considerações de igualdade social. A democracia seria apenas um método de escolha da governação, cujo valor seria intrínseco, isto é, que valeria independentemente do rendimento da população ou do sentimento de equidade social.

Esta abstracção não tem em conta que a democracia tem, antes de mais, um valor instrumental. Ela serve para alguma coisa. A democracia deve ser vista sempre – como o mostra a tradição política clássica do Ocidente – em concorrência com outros regimes políticos. Os regimes políticos visam assegurar uma vida social pacífica, onde as pessoas possam desenvolver os seus projectos de vida, os quais têm por finalidade promover a sua felicidade e bem-estar. Se a democracia for apenas um método de escolha das elites governantes, corre o risco de perder o conteúdo substancial (permitir que as pessoas se realizem) e tornar-se dispensável. É isto que o estudo referido detecta.

O declínio da satisfação com a democracia em Portugal nasce, certamente, da percepção, por parte dos portugueses, de que o regime não lhe está a proporcionar a possibilidade de realizar os seus legítimos anseios. Neste momento, a democracia não consegue evitar a emigração massiva dos portugueses, não consegue evitar a contínua diminuição dos seus rendimentos, não consegue evitar o desemprego avassalador, não consegue evitar o crescimento exponencial das desigualdades, não consegue evitar o estranho sentimento de que não há futuro que valha a pena.

Em Portugal, a democracia nasceu intimamente ligada à esperança de uma vida mais digna e mais realizada. Ao negar-se à vida democrática a capacidade de promover essa esperança e essa dignidade, está-se a abrir o caminho para que emirja o desejo de outro tipo de governação. Não é que o actual governo ou o anterior sejam não democráticos ou os seus membros não advoguem um regime democrático. O problema está nas políticas abraçadas pelos governos. São estas políticas – com o seu projecto de acentuação das desigualdade e injustiças socias – que estão a destruir a democracia e a abrir o caminho para soluções autoritárias. 

quinta-feira, 20 de março de 2014

Escola de monstros

Max Ernst - Placa para una escuela de monstruos (1968)

O novo livro de Filomena Mónica tem por objecto a escola pública. Melhor, a degradação da escola pública. Independentemente do método utilizado ou das opiniões pessoais da socióloga, há uma coisa que é óbvia e que ela sublinha muito claramente. Trata-se da culpabilidade dos ministros da educação no grau de degradação a que se está a chegar. Todas as utopias e desejos, mais ou menos secretos, de cada uma dessas personagens foi vertida em lei e acabou em cima da cabeça dos professores. Os ministros da educação - todos, o que inclui o actual incumbente - esforçaram-se arduamente para escavar a autoridade dos professores, trabalharam com afinco para os desviar das tarefas de instrução, inventaram uma instituição absolutamente doente e demente. Cada novo ministro tem por objectivo superar em delírio legislativo o anterior, embora raramente substitua os delírios dos anteriores. Soma delírio a delírio. A escola tornou-se, devido à imaginação desenfreada de tantos reformadores sociais, de esquerda e de direita, um lugar irreconhecível e monstruoso. Repito, monstruoso. As tarefas dos professores pouco ou nada têm a ver com a instrução. São longos exercícios burocráticos, exercícios executados por ordens ministeriais - vêm com a força da lei - e vigiados pelo zelo dos organismos respectivos.

Este lugar distópico, onde as regras normais de um lugar de instrução já não são reconhecidas, tornou-se um espaço produtor de monstros, uns maiores, outros menores. O sagrado peso da comunidade educativa, a intervenção, quase sempre enviesada e parcial, dos pais, a sobre-protecção das crianças e dos jovens, a abolição das regras de disciplina, a cultura de ócio e de desprezo pelo trabalho e pelo rigor são criações dos nossos ministros da educação. Utilizaram a escola e os professores para tentar ganhar votos, dando a ideia de que eram fortes e iam domesticar a classe docente. A bajulação do eleitorado, apanágio de vários governos, através da protecção dos supostos desejos dos encarregados de educação  e das forças locais tem tido como meta uma campanha interminável contra os professores. O resultado - e isto apesar de alguns progressos nos estudos internacionais - foi transformar a escola numa paisagem de um romance de Kafka ou num cenário de Beckett.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Metamorfoses 25 - As pequenas mudanças abrem crateras na rua

Sean Scully - Change Drawing # 7 (1974)

25. As pequenas mudanças abrem crateras na rua

As pequenas mudanças abrem crateras na rua
por onde entra o destino
coberto de poeira e pedras da calçada.

Trazem os braços sujos de musgo
e em cada mão a navalha esguia
com que retalham a vida cansada.

Onde chegam, tudo entra no segredo da noite.
E elas cantam num sussurro de água,
cantam na fímbria da vida a morte adiada.

terça-feira, 18 de março de 2014

Tragédia ou farsa?

KIRILL KUDRYAVTSEV - AFP - Putin na Praça Vermelha (Público)

Olho a fotografia de Kirll Kudryavtsev e sou tomado por uma mão-cheia de lugares-comuns. A incomum situação da Crimeia parece que serve para isso mesmo, para sublinhar os lugares-comuns a que a imaginação se vê compelida. A coreografia que a foto revela reenvia-nos, de imediato, para uma imagem tipo Hollywood. Eis um lugar comum inusitado. A elite russa, na Praça Vermelha, comporta-se à maneira americana. Se estavam à espera dum desfile modelo 1.º de Maio, com tanques, tropas e bandeiras vermelhas, enganaram-se. Temos o doce coração da Rússia como pano de fundo cinematográfico da tomada, por via referendária, da Crimeia.

Eliminada a exaltação soviética pela performance hollywoodesca, que outro lugar-comum salta aos nossos olhos? O nacionalismo russo expresso nessa letal ligação entre o coração - o amor - e a pátria - a bandeira. Nos tempos pós-nacionalistas e de morte do Estado-Nação, segundo a retórica liberal europeia, eis que o nacionalismo entra em força Europa adentro. Também os conflitos em torno do amor pátrio são um lugar-comum europeu. Estava recalcado, mas parece ter ainda potência suficiente para elevar a voz e lançar a Europa em plena irrisão. É preciso não esquecer que o nacionalismo europeu tem a seu crédito múltiplas guerras, entre elas duas guerras mundiais. E aqui entra um outro e surpreendente lugar-comum. Hegel terá dito que a história repete-se sempre, pelo menos duas vezes. Ao que Karl Marx acrescentou: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Resta-nos saber se a encenação que vemos se reporta a uma tragédia grega ou a uma farsa pós-moderna?

segunda-feira, 17 de março de 2014

Do exercício da arrogância

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 11.10.2009.

É preciso uma enorme dose de arrogância para alguém se candidatar a um cargo público com a suposição de ser capaz de resolver os problemas da comunidade ou dos outros. A candidatura, toda a candidatura, é um exercício paranóico de arrogância. Não basta a mera auto-estima, a confiança em si. Todo o poder, sem excepção, se funda na arrogância, exprime-se através da altivez e da sobranceria, por vezes, se conveniente, através do desprezo. Aquele que luta pela conquista ou manutenção do poder não é apenas audaz, é presunçoso e, muitas vezes ou sempre, insolente. A verdadeira virtude política não passa de um repositório de qualidades para a prática do mal. Não por acaso, o poder é o lugar do mal e o poder absoluto, o do mal absoluto.

domingo, 16 de março de 2014

As relações amorosas

Karl Schmidt-Rottluff - Kiss and Love (1918)

No espaço de tempo que me foi dado viver encontram-se, facilmente, três grandes paradigmas - digamos assim, utilizando a despropósito um termo que fez fortuna na escrita do epistemólogo Thomas S. Kuhn - das relações amorosas. Em cada época, há desvios ao padrão dominante, mas este é uma espécie de orientação que permite, apesar das excepções, ter uma compreensão global do que se passa. Cada um dos paradigmas exprime o Zeitgeist (espírito do tempo) e a forma como nele as relações amorosas se realizam.

O primeiro paradigma é o jurídico. As relações amorosas são vistas como um contrato que se celebra para a vida toda. A força da lei dá coesão às relações amorosas e estas são pensadas no âmbito do jogo respeito e/ou infracção da lei. Este era o padrão dominante na geração dos meus pais e nas que me antecederam. A relação amorosa estava ferreamente submetida à ordem jurídica do mundo, à dura lex, que lhe dava solidez e duração.

A minha geração, mas mais claramente as que se lhe seguiram, pertence já a um outro paradigma. O respeito pela lei é substituído pela experimentação. O modelo já não é o direito mas a ciência. As relações amorosas tomam uma natureza experimental. Se funcionarem são confirmadas, pelo menos até que os amantes descubram que são falsas. Falsificadas, deixam de fazer sentido e o território fica aberto a nova experimentação. Foi como se o quarto de casal se tornasse num laboratório íntimo e a vida amorosa fosse um imenso ensaio.

Nos últimos tempos, porém, o paradigma científico das relações amorosas tem vindo a ser substituído por outro paradigma que poderá ser catalogado como económico. A economia, no tempo do capitalismo financeiro, é o grande padrão do relacionamento amoroso. As pessoas estão no mercado sujeitas à lei da oferta e da procura. A relação amorosa não tem, todavia, a solidez do paradigma jurídico, nem o experimentalismo do paradigma científico. O que a marca é o consumo. As pessoas usam-se e deitam-se fora. Neste acto de consumo, inscreve-se a descartabilidade do outro, mas qualquer um é, neste tempo de consumo e mercados agressivos, outro. Logo, descartável. O mercado é imenso e não tem fins-de-semana, feriados ou férias.

sábado, 15 de março de 2014

Metamorfoses 24 - O lugar onde descansavas sob os plátanos

Paul Signac - PlaneTrees, Place-des-Lices, Saint-Tropez (1893)

24. O lugar onde descansavas sob os plátanos

O lugar onde descansavas sob os plátanos
é agora um matagal vazio.
Tudo escureceu dentro de casa,

os nomes, as flores, algum gesto perdido.
Sento-me na cadeira que era a minha
e sonho com as trevas a rosnar nas folhas.

Prendo-me na memória sonâmbula
e sou vento na erva da tarde,
sopro ateado no recato dos teus olhos.

sexta-feira, 14 de março de 2014

A nova ordem


Se olharmos para os signatários do manifesto para a reestruturação da dívida podemos ficar surpreendidos pela origem tão diversa das personalidades que o subscrevem. Gente de direita, do centro e de esquerda. Gente ligada à investigação e à Universidade. Empresários e sindicalistas. Esta miscelânea deveria ditar um afastamento entre estas pessoas e não a sua confluência num gesto de afrontamento à política seguida pelo governo. O que as unirá? Aquilo que as une é o passado. Representam o passado e a velha ordem moral do mundo. Nesta gente ainda ressoa um sentimento de piedade sobre o destino dos homens e a necessidade da política ser um lugar de equilíbrio entre as pretensões rivais das várias partes.

A reacção de Passos Coelho foi a esperada. Ele e o seu governo não pertencem a esse velho e moribundo universo, não aceitam a decrépita ordem moral do mundo, nem julgam que a piedade e a compaixão tenham qualquer lugar na política. Para Passos Coelho o manifesto é irrealista, pois assustaria os mercados. Na verdade, o manifesto é irrealista não porque assuste os mercados, mas porque põe em causa os objectivos políticos deste governo. Mais do que isso, este manifesto é irrealista porque seria uma forma de impedir o advento em Portugal da nova ordem moral do mundo, ordem essa que é o objectivo fundamental das políticas governamentais.

O que significa esta nova ordem trazida pela governação Passos Coelho? Significa em primeiro lugar a libertação, cada vez mais acentuada, das forças do mercado, eliminando as formas sociais de regulação, deixando os actores jogarem o jogo em conformidade com as suas forças. Quem for forte terá a recompensa da sua força, os fracos serão punidos pela sua fraqueza. Significa em segundo lugar, a progressiva destruição dos mecanismos de segurança e de solidariedade alicerçados no Estado. A política, nesta nova ordem, não se preocupa com o exercício piedoso de cuidar das pessoas. Cada um deverá cuidar de si até ao mais ínfimo pormenor, senão puder, paciência.

É para este admirável mundo novo que o governo nos encaminha, sem o mínimo de pudor ou qualquer peso na consciência. É contra este mundo que o manifesto foi publicado. Seja como for, com ou sem manifesto, estamos a aprender uma dura lição: o futuro já não é o lugar da esperança, como a minha geração e as anteriores pensaram. O futuro pode ser o mais negro dos lugares. A nova ordem moral que o governo incensa, o sítio de todas as injustiças.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Da violência dos contratos

El Greco - Jesus expulsa os vendilhões do Templo (antes de 1570)

Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas. Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas. Disse aos que vendiam as pombas: Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes. (João 2:13-16)

Vivemos numa sociedade onde o contrato é visto como a expressão da liberdade das partes. Supõe-se, na generalidade dos actos de troca social, que indivíduos livres e racionais se comprometem, sem coacção, a certa troca de bens. As sociedades liberais estão fundadas na crença espontânea da liberdade contratual. Vale a pena meditar, no entanto, na passagem evangélica - neste caso no evangelho de João - sobre o estranho episódio da expulsão, por Jesus, dos vendilhões do templo. Como todos os textos evangélicos este permite diversas interpretações, umas de carácter espiritual, outras de carácter social. Fiquemos numa interpretação de âmbito social.

Este episódio é estranho pois é o único onde Jesus tem um acto de violência, uma violência incompreensível, aparentemente. A questão central é a seguinte: como é que a passagem citada do evangelho nos pode ajudar a pensar os contratos? Olhemos para a cena. Nela, antes da intervenção de Jesus, não se passa nada de muito extraordinário. Temos negociantes com as suas mercadorias e podemos supor um processo de troca entre estes negociantes e os clientes. Aquela é uma situação onde se estabelecem, de forma informal, livre e pacífica, um conjunto de contratos onde certos bens mudam de mãos. Temos um mercado a funcionar na base de contratos que seriam livres e racionais. Ainda por cima, este mercado e estes contratos não ofendiam a hierarquia sacerdotal legítima que superintendia o Templo. Estavam por isso cobertos pela lei. O que haverá no contrato (todo o negócio é um contrato) que tenha levado Jesus a expulsar os negociantes do Templo?

É o próprio princípio contratual que desencadeia a reacção de Jesus. O contrato, ao contrário daquilo que se pensa, não é um acto livre e pacífico, mas a forma como a violência entre pessoas se sublima e se oculta. No contrato não estão duas liberdades que, racionalmente e de forma justa, trocam bens. Nele, estão dois seres marcados pela necessidade, com poderes e forças diferentes, em que o mais forte impõe, pela negociação, a sua força ao mais fraco. Os contratos são, desse modo, exercícios ritualizados de violência, onde a razão é usada de forma estratégica para fazer vencer o mais forte. Em cada contrato há, assim, uma violência dissimulada, mas cuja presença se pode já suspeitar na cobertura que a lei lhes dá. 

É esta violência dissimulada que Jesus torna manifesta pela sua própria violência. Olhamos para a cena e só vemos a violência do mais pacífico dos homens - do cordeiro de Deus, daquele que manda dar a outra face - e é ela que nos guia para a compreensão do que há de estruturalmente violento no acto contratual. Guia-nos como? Constituindo-se como o negativo fotográfico que, de forma paradoxal, revela a violência dissimulado nos actos contratuais. É esta natureza, violenta e injusta, oculta nos contratos que gera a reacção violenta de Jesus, sublinhando este, de forma absolutamente enfática, a não racionalidade e a violência presente no acto contratual. Por isso ele não pode ser realizado na casa de Deus.

quarta-feira, 12 de março de 2014

Metamorfoses 23 - O sol caminha na crista dos dias

Francis Picabia - Efeito do sol nas margens do Loing (1905)

23. O sol caminha na crista dos dias

O sol caminha na crista dos dias,
abre clareiras de luz
na sombra furtiva do jardim.

Parto em peregrinação pelas ruas
e oiço o ronronar da vida,
o espasmo das horas que passam.

Aguardo-te na fresta luminosa.
Se chegas, o coração ilumina-se,
sol aberto no incêndio do meio-dia.

terça-feira, 11 de março de 2014

Olhamos e não vemos

Benjamín Palencia - Estación de Atocha, Ferrocarril M.Z.A (1926)

Os atentados na estação de Atocha fazem hoje dez anos. O olhar distanciado tem a virtude de trazer à luz aquilo que são as ilusões da hora. Em 2004, vivia-se uma estranha sensação de confronto entre o mundo ocidental e o mundo islâmico. Os gravíssimos atentados em Espanha foram apenas um dos momentos desse confronto, o qual parecia ter um espaço aberto para se desenvolver. Olhar para tudo isso dez anos depois explica-nos porque é impossível fazer história sobre o presente ou o passado recente. Nestes dez anos muitas coisas se sucederam. A crise económica de 2008, depois a crise das dívidas soberanas, os resgates da Europa do Sul, as primaveras árabes, a guerra na Síria e agora mesmo o confronto entre o Ocidente e a Rússia, em torno do problema da Ucrânia e da Crimeia. O foco da nossa atenção - uma atenção sempre guiada e manipulada pelos meios de comunicação social - vai girando, conforme as luzes vão brilhando. Essa fixação na luz, nos fenómenos que concentram as atenções, parece ter o condão de nos cegar, de não nos deixar perceber o peso efectivo de cada acontecimento. Perante isto, podemos chegar a duas posições bem diversas. Por um lado, podemos pensar que a velha distinção entre aparência e realidade continua a fazer sentido. Nós, nos acontecimentos, apenas vemos a aparência, mas escapa-nos a realidade, a qual será, se o for, perceptível num futuro mais ou menos longínquo. Por outro, seremos inclinados a pensar que os acontecimentos são mais ou menos caóticos, episódios que, com a sua racionalidade interna, se manifestam mas que não constituem nenhuma cadeia causal com um sentido oculto que a história revelaria. Seja como for, uma coisa parece certa, a nossa cegueira perante o presente. Olhamos, olhamos e não vemos.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Entre aspas

Arpad Szenes - Signo (1970)

É num breve texto, Ideia de pensamento, integrado em Ideia de Prosa, publicado no distante ano de 1985, que Giorgio Agamben faz uma curiosa reflexão sobre o uso das aspas, muito para além do signum citacionis. Chama a atenção para que a prática generalizada do uso das aspas sugeriria a existência de profundas razões. Diz Agambem: "Através das aspas, quem escreve toma as suas distâncias em relação à linguagem: elas indicam que um determinado termo não é tomado na acepção que lhe é própria, que o seu sentido foi modificado (...), sem, no entanto, ser excluído da sua tradição semântica". Dito de outra maneira, o uso das aspas indicaria um uso distorcido de uma palavra em relação ao seu sentido corrente. A pessoa quer, com esse uso inusitado de uma palavra entre aspas, significar algo que a palavra não significa, mas cuja significação desejada necessita dessa palavra.

Agamben sublinha que a linguagem é, desta forma, convocada ao tribunal do pensamento para ser pensada na sua verdade semântica, digamos assim. Talvez isso tenha sido verdade no caso de um ou outro pensador, mas a democratização do uso das aspas no sentido assinalado, agora que passaram quase 30 anos sobre a publicação do escrito de Agamben, traz consigo um sinal muito diferente. O aspeio, já democrático, é agora praticado a torto e a direito, mesmo em situações de comunicação oral, onde as pessoas mimam com os dedos a colocação de aspas. Esta praxis não significa que os utilizadores da língua convocam certas palavras e expressões perante o tribunal do pensamento. Significa apenas que a linguagem se tornou obscura e que as pessoas se perdem nela. As aspas surgem, deste modo, como um sinal de SOS, com o qual alguém espera ser salvo da floresta da linguagem. Mesmo que o fenómeno conduza à inovação semântica, ele resulta já dum empobrecimento dos actos de discurso. O aspear de desmedido é um sinal dos tempos, um sinal da entropia que se vai apossando de todas as instituições, e da qual não faria sentido isentar a própria instituição da linguagem. Aspeie-se, então.

domingo, 9 de março de 2014

Demonstrativos

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 30.09.2009.

Quando escrevo poesia dou comigo a encher o poema de demonstrativos. Este, esse, aquele, contracções entre a preposição de e os demonstrativos, etc. É como se um impulso vindo do inconsciente, daquilo que há mais fundo em mim, quisesse falar e mostrar o que sou. Um falso poeta, onde a voz da filosofia, ou da dogmática filosófica, vem sempre ao de cima, como se um verso pudesse ser a conclusão de um silogismo. Esta voz da demonstração é uma voz da razão imperativa, tão imperativa e tão determinante que, mesmo no delíquio do metaforizar, encontra caminho para se fazer ouvir. Ou talvez seja ainda pior, o resto de um velho instinto, enfraquecido pelo torpor, para ordenar o mundo, um instinto político. Acabado o poema, fico sempre com o trabalho de exterminar os demonstrativos, como se disfarçasse os instintos mais arcaicos e reprováveis.

sábado, 8 de março de 2014

Metamorfoses 22 - Chegou o tempo azul da quaresma.

Ana Peters - Azul prusi (1993)

22. Chegou o tempo azul da quaresma

Chegou o tempo azul da quaresma.
Veio ferido de musgo
e um mistério de fogo sorri-lhe na tarde.

Conto em teus dedos cada páscoa vivida
e espero ouvir essa voz
quando o sino ressoar na floresta.

Estes são os dias de penúria,
onde errantes caminhamos descalços
e da indigência fazemos a breve glória.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Grandes narrativas


Nos finais do século passado discutiu-se com afinco o fim das grandes narrativas, uma ideia do filósofo francês Jean-François Lyotard. As grandes narrativas seriam formas de interpretação da realidade que davam ao homem uma compreensão global do mundo e da vida. O iluminismo, o marxismo, o idealismo, mas também o cristianismo, eram grandes narrativas que tinham perdido a capacidade de fornecer uma compreensão da realidade e de orientar um programa de acção política e social. A crença mais generalizada era a de que o tempo das grandes explicações do real tinha passado.

Ao mesmo tempo que essas narrativas tradicionais perdiam de facto apelo, outras ocupavam o palco da história. Do ponto de vista religioso, por exemplo, o Islão ganhou visibilidade enquanto grande narrativa orientadora da acção política. No pólo ocidental, o liberalismo tornou-se ele mesmo a única grande explicação da realidade social e a singular orientação dos governos. Sem se perceber isto, é impossível perceber o que se passou e passa nas ditas primaveras árabes, o que se passa na Europa do Sul, na Síria, na Venezuela e, agora, na Ucrânia.

O que está sempre em jogo é a abertura dos mercados e a conformação da realidade política a uma forma de governo que tenha como objectivo central o fomento do lucro privado. Quando as coisas não correm bem mas os governos simpatizam com a ideia, temos as intervenções do FMI, com ou sem troika. Quando os governos resistem ao apelo liberal, começam as manobras de levantamento popular até que os governos caiam. Caso seja necessário, recorre-se à intervenção armada, como no Iraque. Perceber o que se está a passar na Ucrânia implica ter em conta a estratégia das potências liberais e a grande narrativa do liberalismo.

Talvez os EUA e a UE se tenham, no entanto, equivocado num ponto. Pensaram que a Rússia, agora que se tinha despedido do marxismo, estava condenada a converter-se, também ela, ao liberalismo e que a penetração do Ocidente na Ucrânia, e depois na Rússia, eram favas contadas. Daí a extraordinária exclamação de Obama: a Rússia está do lado errado da história. O que o Ocidente não quer compreender é que existem outras grandes narrativas para além da sua. Também os russos têm a sua grande explicação sobre o seu papel no mundo, e demonstraram nestes dias que não estão dispostos a abdicar dela. Veremos se, em pleno século XXI, o sangue correrá na Europa em nome do conflito entre a grande narrativa liberal do Ocidente e a grande narrativa imperial russa. Os homens adoram matar-se em nome de grandes ideias, mesmo que estas apenas escondam os interesses mais mesquinhos.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Leituras poéticas - Luís Filipe Castro Mendes - "A Misericórdia dos Mercados"

El Greco - La expulsión de los mercaderes del templo (1570-71)

Nós vivemos da misericórdia dos mercados.
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si mesmo e as leis
são meras consequências lógicas dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta.
                                                       (Luís Filipe Castro Mendes, A Misericórdia dos Mercados, Assírio & Alvim, 2014, p. 81)

Quando decidi escrever sobre um dos poemas do último livro de Luís Filipe Castro Mendes hesitei entre o escolhido, em epígrafe, e o poema da página dez que tem por título Para quê poetas em tempo de indigência?, numa referência directa a Hölderlin. Vivemos num tempo em que a questão colocada pelo poeta alemão se tornou obsessiva. Recorde-se, por exemplo, a Terceira Miséria, de Hélia Correia. O poema escolhido, que dá título ao livro, pode não ser a resposta à questão de Hölderlin, mas contribui para perceber por que razão o nosso tempo é de indigência.

Uma leitura apressada pode ficar presa - por encanto ou por horror - ao carácter de intervenção política e social do poema. Haverá quem nele veja quase um panfleto. No entanto, o poema dá-nos a ver, já não na perspectiva clássica, as razões dessa indigência que cai sobre nós e toma conta da vida dos homens. Também a poesia e os poetas devem falar sobre a vida tal como ela nos acontece. No centro do poema está um conflito entre poeticidades  e é nesse conflito que descobrimos a indigência dos nossos dias.

A poética triunfante expressa-se nos versos O capital regula-se a si mesmo e as leis / são meras consequências lógicas dessa regulação, e, mais à frente, Os mercados são simultaneamente o criador e a própria criação. Assim, Capital e mercados são metáforas de um dispositivo que se tornou estranho aos homens, de um dispositivo auto-regulador, auto-legislador e auto-criador. Esse dispositivo tem uma clara natureza poética, pois a sua característica essencial é a de ser criador, e criador da criatura que ele próprio é. Estamos perante uma autopoeticidade que se cria continuamente e que nesse criar-se ilimitado deixa perceber a sua monstruosidade.

Essa monstruosidade não está apenas na auto-criação ilimitada. Ela está também na exclusão que fomenta. De um ponto de vista poético, a auto-poiesis dos mercados exclui duas poeticidades que até aos tempos modernos tinham convivido uma com a outra, a poeticidade do homem e a poeticidade de Deus. O que Luís Filipe de Castro Mendes torna evidente é a pura destruição dessas poeticidades. O homem, em dois versos, é dito não fazer falta e o próprio Deus vê ser-lhe negado o poder criador dessa nova e tão fantástica criatura. Eis a indigência da nossa época. Vivemos nos tempos em que Deus deixou de ser compreendido como criador e que o homem se tornou dispensável, perante o poder sem fim do novo criador. A indigência reside na dispensabilidade dos homens e de Deus.

Onde essa indigência se sublinha de forma absolutamente lapidar é no primeiro verso Nós vivemos da misericórdia dos mercados. A misericórdia divina - o supremo atributo de Deus na economia da tradição monoteísta - foi transferida para os mercados. Isto é uma outra forma de proclamar a morte de Deus. Ao mesmo tempo, o homem descobre-se - e essa é uma das nossas experiências vitais - dependente da compaixão ou da ira dos mercados, os quais não hesitam em sublinhar a inutilidade dos homens. Chegados aqui podemos refazer a pergunta de Hölderlin: Para quê poetas num tempo em que a única poética válida é a dos mercados?

quarta-feira, 5 de março de 2014

O eterno retorno ou a transfiguração

Miriam Schapiro - Time (1988-91)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação (texto de 2007/05/05).

Ao estudarmos essas sociedades tradicionais, surpreendeu-nos sobretudo um aspecto: a sua revolta con­tra o tempo concreto, histórico, a sua nostalgia de um regresso periódico ao tempo mítico das origens, à Idade do Ouro. Só descobrimos o significado e a função daquilo a que chamámos «arquétipos e repetição» quando com­preendemos a vontade que essas sociedades tinham de recusar o tempo concreto e a sua hostilidade em relação a qualquer tentativa de «história» autónoma, isto é, de história sem regulação arquetípica. Esta recusa não é simplesmente o efeito das tendências conservadoras das sociedades primitivas, como este livro provará. Quanto a nós, dever-se-á ver nesta depreciação da história, ou seja, dos acontecimentos sem modelo trans-histórico, e nesta recusa do tempo profano, contínuo, uma certa valorização metafísica da existência humana. Mas esta valoriza­ção não é, de modo nenhum, a mesma que certas corren­tes filosóficas pós-hegelianas tentam dar, nomeadamente o marxismo, o historicismo e o existencialismo, depois da descoberta do «homem histórico», do homem que existe na medida em que se faz a si próprio no seio da história. [Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno.]

Mircea Eliade deixou, há muito, de ser um autor que se possa citar em público. No entanto, muito do que escreveu merece leitura e o seu silenciamento deveria ser motivo de interrogação, se não mesmo de inquietação. Mircea Eliade, como outros autores, desenha perfis de sociedades e modos de vida diferentes dos nossos, mas com a particularidade de não serem sociedades utópicas, produtos da imaginação mais ou menos delirante dos seus autores. Fala de sociedades que existiram, as chamadas sociedades tradicionais. Estas foram absolutamente recalcadas, bem como os seus fundamentos metafísicos, com a vitória do mundo moderno, o mundo histórico em que o “homem existe na medida em que se faz a si próprio no seio da história”.

Esta ideia do «homem se fazer a si próprio» que habitava no seio do marxismo e das correntes pós-hegelianas não passava de uma ideia ainda ingénua. Mas esta ingenuidade – o eu é o fruto de uma experiência histórico-social – abriu as portas para os dias de hoje, nos quais essa ingenuidade desapareceu por completo. O desenvolvimento da ciência e da técnica traçaram o caminho para uma reconstrução da natureza humana, o primeiro passo para a sua transfiguração. Estas sociedades históricas são movidas pela atracção do futuro, mas esse futuro, começamos a descobri-lo, não nos fará mais humanos, mas tornar-nos-á noutra coisa qualquer, que ainda não sabemos, que está velada, mas que acabará por se revelar, isto é, mostrar-se naquilo que é em sua verdade.

Ao usar o conceito de «transfiguração», remeto para o domínio da arte. Toda a arte é transfiguração de uma matéria plástica (som, cor, luz, materiais diversos, língua, etc.). O que começamos a assistir é à transformação do homem em matéria humana plástica e assim ao abrir caminho para esse trabalho de transfiguração. A História, entendida como o processo do homem histórico, significa, desse modo, apenas a morte do homem. A dinâmica que nos empurra para o futuro não nos traz apenas a morte do indivíduo, mas prefigura a morte da própria espécie às mãos da sua arte de transformação. É este o verdadeiro significado do conceito de progresso.

As sociedades tradicionais representam a recusa de compreender o homem como uma ponte – uma ponte entre o animal pré-humano e aquilo que virá depois do homem. Dessa forma, recusam a morte do homem e, por isso abominam, a história. Não é que não tenham consciência do tempo, nem da passagem deste. Recusam, porém, a sua linearidade e sublinham a natureza cíclica, o que supõe um eterno retorno do mesmo. Este ciclo do eterno retorno é a imagem da eternidade e a natureza não seria mais do que um espelho dessa eternidade, onde a humanidade permanece sempre aquilo que é.

A verdadeira clivagem que existe no mundo não é entre liberalismo e marxismo, entre esquerda e direita, entre democracia e ditadura. A clivagem efectiva é entre tradição e modernidade, entre sociedades históricas e sociedades não-históricas. Aquilo que dá que pensar não é tanto a recusa da história pelas sociedades tradicionais, mas o ímpeto não questionado que nós, modernos, colocamos na aventura histórica que se dirige para a nossa própria transfiguração, isto é, para a nossa morte.

terça-feira, 4 de março de 2014

Metamorfoses 21 - O tormento das horas que passam

Jean Cocteau - Auto-retrato sem rosto (1910-13)

21. O tormento das horas que passam

O tormento das horas que passam
e nesse passar me esquecem,
deixando um rasto de anjos pelo chão.

Na ravina, erguem-se pássaros em flor,
volteiam no azul dos céus,
abrem asas sob o sopro das nuvens.

E eu que não sou anjo nem pássaro
olho-me na fúria do espelho
e espero o tempo na mudez da face.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Meditações dialécticas (25) - Desejo, competição e desordem

Jan Toorop - Desire and Gratification (1893)

Se não exaltar os talentosos, o povo não compete.
Se não valorizar o luxuoso, o povo não rouba.
Se não mostrar o desejável, o seu coração não se perturba.
Lao Tse, Tao Te King, III

No Tao Te King pensa-se as condições da sábia governação. O que está em jogo não é tanto o exercício duma dominação mas a busca da harmonia como princípio geral e fundamento da sociabilidade. Um príncipe sábio é aquele que, pelo seu não agir, assegura as condições dessa harmonia e evita a perturbação entre o povo. O excerto citado em epígrafe torna claro aquilo que é factor de cisão no corpo social: a exaltação dos talentosos, a valorização do luxuoso e a manifestação do desejável. Percebemos, então, que a harmonia social depende não da desvalorização do talento, do raro, e por isso luxuoso, e do desejável, mas da sua não hipertrofia aos olhos da comunidade.

O que se pretende evitar através deste jogo de equilíbrios? A competição entre as pessoas, o desrespeito pela propriedade e a perturbação dos indivíduos introduzida pela intensificação do desejo, o qual, percebe-se, é o factor dinâmico da competição e do desrespeito pela lei. Esta sabedoria tradicional chinesa encontrará, por todo o lado, perspectivas semelhantes, mais ou menos meditadas, mais ou menos fundamentadas. A possibilidade da existência nas sociedades tradicionais assentava, em última análise, na contenção do desejo.

O que a modernidade vem trazer de novo é a libertação do desejo e a sua exaltação paroxística. O desejo é o alvo a que a publicidade aponta as suas setas. Vivemos continuamente sob a estimulação da nossa faculdade de desejar. Desejar pessoas, bens, locais, situações, etc. Enquanto as sociedades tradicionais visavam a contenção do desejo nos limites do possível, as sociedades modernas intensificam, de forma massificada, a actividade desejante, sem ter em consideração as possibilidades daqueles que recebem o fluxo de estímulos que activam o desejo. Percebe-se facilmente como tudo isto pode gerar um grau de frustração e de insatisfação desmedido. O homem como máquina desejante ou a sociedade de consumo apenas sublinham esta nova situação.

Toda a modernidade é um programa de ruptura com aquilo que está retratado no texto de Lao Tse. A competição tornou-se essencial. Não apenas a competição entre empresas e mercadorias, mas a competição entre cada ser humano. Os tempos que vivemos sublinham bem esta nova condição. Aquele que está a meu lado não é o meu próximo, mas um competidor, um adversário e, em última análise, um inimigo. As relações humanas, introduzidas pela vitória da modernidade, têm como núcleo central uma categoria política dada no par conceptual amigo/inimigo. O que está em jogo, agora, não é a ocultação do talento mas a sua manifestação e avaliação como factor de inclusão ou de exclusão, criando-se a ideia de que não há lugar para os que não foram bafejados pelo talento ou pela eficácia.

A ligação estabelecida entre a competição entre indivíduos e a estimulação contínua do desejo constitui assim o núcleo central das sociedades modernas, a sua mola impulsionadora. O que poderemos esperar? Aquilo que se pode esperar não será muito diferente do que acontecia nas sociedades tradicionais. O que se pode esperar é a desordem. Nas sociedades tradicionais, devido à situação tecnológica, a desordem manifestava a escassez de bens para satisfazer as necessidades básicas, os limitados desejos básicos e socialmente permitidos. Hoje em dia, porém, os bens não são escassos, mas estão distribuídos de tal forma que as exigências desejantes de partes significativas da população, quase todas socialmente permitidas, são impossíveis de satisfazer. A diferença está em que a desordem de hoje nasce de uma estimulação contínua do desejo dos indivíduos, enquanto a desordem anterior nascia da impossibilidade de satisfazer os desejos mais básicos. Esta diferença não é, porém, meramente quantitativa. Ela traz uma qualidade nova. Nas sociedades tradicionais, a repressão do desejo, a sua sublimação, era fundamental. Nas sociedades actuais, passa-se o contrário, o desejo emancipou-se, mas um desejo sem gratificação possível, o que prefigura um grau de desordem incomensurável com aquele que existia nas sociedades tradicionais.

domingo, 2 de março de 2014

Carnaval, Carnaval


Um texto novo a intercalar nos textos dos Cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

Apetece-me escrever não fora a Quaresma, o Carnaval seria insuportável. Mas quem me iria entender? Sabe-se lá o que é a Quaresma. Fiquemos, então, pelo Carnaval, e imaginemos que não escrevi o que escrevi. Odeio o Carnaval? Não, não. Não se trata disso. Trata-se antes do desconsolo que cai sobre o mundo nestes dias. Deixe-se de lado o Carnaval brasileiro e a sua estranha combinação entre o delírio báquico e a racionalidade mercantil. Esqueçamos algumas festividades europeias, mais refinadas e ousadas, mas onde a tradição e o turismo se casam, segundo a lei do interesse. Olhemos para os Carnavais das nossas paróquias, apadrinhados por municípios ociosos, ou para os tristes mascarados que, por desespero, andam por aí perdidos. E eu sinto pena de tudo isso, pois tudo isso me dói, ao dar-me a ver que, não sendo eu o mascarado ou o figurante, sou eu que por ali vou, nesta triste figura de ser português como se fosse um sem-abrigo, um indigente que, ao causar repulsa, desencadeia a boa consciência e o grito abafado da piedade. 

sábado, 1 de março de 2014

Um cortejo de sombras e escuridão

Milton Avery - Dark Forest (1958)

Este não é um tempo de evidências, de conceitos claros e distintos, de certezas trazidas seja pela intuição, seja pelo cálculo lógico das proposições de qualquer argumento. Esse divertissement pode fazer carreiras académicas e trazer prestígio aos amantes do cálculo, mas está longe, muito longe, de poder deitar alguma luz sobre a massa heteróclita que desafia o pensamento dos homens. Ali, onde o conceito se mantém impreciso e indefinido, está aquilo que merece ser pensado. É o equívoco e não o unívoco que chama o pensamento. É a metáfora e todas as figuras da equivocidade da linguagem, com o seu cortejo de sombras e escuridão, que permanecem a injunção que determina o homem à reflexão. Um tempo sombrio como o nosso não suporta a transparência da definição e do conceito nem a complexa simplicidade da lógica. Por estranho que possa parecer, este é o tempo em que todos os gatos são pardos.