sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Como se faz um ministro em Portugal?


Quando Nuno Crato foi indicado para ministro da Educação fiz um prognóstico contrário às expectativas de muitos professores. Estes pensavam que Crato iria ser o ministro que perceberia a classe docente e o estado da Educação. Eu estava convicto de que Nuno Crato seria o maior flop do governo. E Nuno Crato é, de facto, o maior falhanço de um governo onde não falta gente falhada. O actual ministro da Educação é um exemplo acabado da leviandade com que se escolhem os governantes em Portugal.

Quando supus que Nuno Crato seria um imenso malogro político não foi porque discordasse das opiniões que emitia. Genericamente, estava de acordo. O problema é que escrever crónicas num jornal ou comunicar na televisão pertence mais ao foro literário do que à análise racional e sensata da realidade. Nuno Crato tinha tudo para falhar. Em primeiro lugar, as suas opiniões sobre a realidade escolar eram vagas e sem consistência científica. Em segundo lugar, Nuno Crato não fazia a mínima ideia do que era uma escola, do que eram os professores, os alunos e as famílias. A realidade escolar, que ele iria governar, era-lhe completamente desconhecida. Em terceiro lugar, tinha um programa ideológico fundado nos preconceitos liberais sobre a educação e uma agenda privatizadora do ensino. Por fim, tinha excesso de boa imprensa, o que o dispensou de se questionar e de tentar compreender o sector que iria tutelar.

Este cocktail de ignorância, incompetência e ideologia só podia conduzir o sector ao descalabro que todos agora percebem. Esse desastre estava já escrito desde a primeira hora que Crato assumiu a pasta. A sua manifestação pública era apenas uma questão de tempo. O que me interessa, no entanto, não é já o fracasso, motivado pela acção política, que atinge a Educação em Portugal. Isso é uma tradição. O que me interessa é a facilidade com que se chega a ministro no nosso país. O que me interessa é a irresponsabilidade dos primeiros-ministros na escolha das suas equipas.

Nuno Crato, do ponto de vista da Educação, era uma irrelevância. O facto de fazer opinião, seja sob a forma de crónica, de intervenção na televisão ou de livro, não atesta qualquer saber ou capacidade na área que se vai tutelar. O que contou na sua escolha não foi a competência técnica nem a virtude política, foi a sua mediatização, a ideologia liberalizante e a boa imprensa de que estava rodeado. É com este vazio que se chega a ministro em Portugal. Depois, quando tudo corre mal, fica-se muito admirado. Esperamos sempre que haja milagres. Não há.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Vagarosas silhuetas

Caspar David Friedrich - Autumn (1826)

Um sol baço corre entre nuvens, um rasto de luz quebra-se nos fios de água. Aqui e ali, manchas azuis, um sobejo de Primavera, a nespereira carregada de frutos, as rosas desfolhadas pela chuva. As casas são agora vultos cansados, dobrados à garra afiada do tempo. Casas sonolentas, pardas de esquecimento. Eu, pobre de mim, perco-me nas águas à tua espera, perco-me nas tuas mãos onde, insensato, deixo um livro marcado por uma velha folha de plátano. Perco-me no sonho de uma noite de Verão. Das janelas entreabertas assomam vagarosas silhuetas, observam aquilo que passa, olham da sua eternidade e abanam gravemente a cabeça. Assim julgam, naquela sabedoria que o cansaço traz, o bulício que corre sob a inclemência do tempo. Depois recolhem-se no vácuo negro onde habitam. No horizonte, há um vazio inominável e feroz. Alguém grita. E eu oiço, aqui tão perto, um eco mudo vindo sabe-se lá de onde. A tarde desvanece-se na vagarosa silhueta que em mim se recolhe à espera que tragas, na tua, todo o Outono que nos espera. (averomundo, 2008/05/08, revisto)

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Dinheiro e pudor

Ticiano - O dinheiro do tributo (1535-40)

Ao falar do dinheiro o rosto do homem tomou uma expressão repugnante...
(Hugo von Hofmannsthal, Andreas)

Até há relativamente pouco tempo cultivava-se um certo pudor relativamente ao dinheiro. Esse pudor poderia ser uma reminiscência, que se terá democratizado, de uma sobranceria da nobreza perante a emergência de uma burguesia agressiva, do poder do dinheiro e do fim do ethos aristocrático. Seja como for, a ligação entre dinheiro e repugnância era um topos subliminar de certo tipo de educação, a qual tinha a virtude de impedir que o dinheiro fosse, fora de certos locais e ocasiões, motivo de conversa. Esse pudor tinha uma semântica complexa e com tonalidades contraditórias. No entanto, havia nele um reconhecimento de uma coisa que hoje desapareceu. Reconhecia-se que o dinheiro não podia nem devia ser a coisa mais importante na vida dos homens. Isso permitia que outras actividades, para além de ganhar e acumular dinheiro, tinham uma legitimidade inquestionável e, mesmo a hipocrisia social, era-lhes obrigada a prestar tributo. Um dos sintomas da doença que afecta o Ocidente é a perda do pudor de falar de dinheiro. Não só o dinheiro deixou de ser uma coisa pouco digna, embora desejável, como a repugnância de falar dele se transformou no seu contrário. A única coisa que interessa à ideologia dominante é o dinheiro. E a ideologia nunca se cala. Multiplica-se na voz de cada um, transformando a vida social numa liturgia do bezerro de ouro. Para quê? Para fazer mais dinheiro, multiplicando-o vezes sem conta, com a única finalidade de continuar a sua multiplicação. O dinheiro é agora a única realidade, o meio e o fim de todas as acções humanas. O pudor que havia de falar dele era a última resistência ao mundo cujo sentido está reduzido à pura multiplicação de capitais. Isto é, a nada.

sábado, 25 de outubro de 2014

A ilusão do progresso

Giorgio de Chirico - O duo (1915)

A ilusão do progresso foi, algumas vezes, benigna. Inspirou alguns avanços sociais genuínos, como a abolição da tortura nos processos judiciais. (Ironicamente, como refiro no Capítulo 15, alguns liberais americanos argumentam, agora, a favor da sua reintrodução.) Mesmo assim, acredito que ela [a ilusão do progresso] se tornou perniciosa. Qualquer que tenha sido o seu papel no passado, a crença no progresso tornou-se num mecanismo de auto-decepção que apenas serve para bloquear a percepção dos males que vêm com o crescimento do conhecimento. Em contraste, os mitos da religião são cifras que contém a verdade da condição humana. [John Gray (2004). Heresies Against Progress and Other Illusions. London: Granta Books, pp. 5]

Como o próprio Gray esclarece, a questão da ilusão na crença do progresso refere-se ao progresso ético e político da humanidade. A ciência e a técnica progridem efectivamente. Há um acumular de conhecimentos científicos e um acréscimo do poder técnico da humanidade. Não há, concomitantemente a este progresso do conhecimento da natureza e dos mecanismos sociais, uma transformação da natureza humana. A realidade humana mantém-se inalterada bem como a sua conduta moral e política. A grande ilusão dos séculos XIX e XX residiu na ideia de uma transformação política da qualidade moral dos homens. Tanto o marxismo como o liberalismo, esses dois irmãos inimigos nascidos das entranhas do Iluminismo, propagaram essa fé, com os resultados que se conhecem. 

Parece-me, no entanto, que está a emergir, de forma insidiosa mas nem por isso menos ameaçadora, uma nova abordagem do problema. Gray refere que a crença no progresso [moral e político] bloqueia a percepção dos males que provêm do acréscimo do conhecimento científico, com o poder desmesurado que esse conhecimento confere à capacidade de violência da humanidade. Mas o que se está a passar é algo mais perigoso. O próprio mal moral, e posteriormente o mal político, irão ser colonizados pela ciência. Não uma ciência do mal, mas uma ciência dos comportamentos patológicos. O mal não derivará da liberdade humana e da responsabilidade do agente (uma perspectiva de claro pendor cristão, coisa fora de moda, como tudo o que tenha a ver com a liberdade), mas de uma falta de sanidade. 

Ao transformar o mal numa questão de saúde pública, está a legitimar-se a intervenção da ciência. Isso começou já há muito, nomeadamente nas áreas da psicologia e da psiquiatria. A psicanálise, por exemplo, é um momento singularmente importante na escalada da transformação do mal moral em problema de saúde mental ou comportamental. Mas como já se está a descobrir, este tipo de intervenção é apenas o prenúncio de uma intervenção mais radical e decisiva. A lobotomia, que valeu o único prémio Nobel a um cientista português, é uma antepassada remota do que se prepara. A chave reside no domínio do código genético. Mais tarde ou mais cedo, emergirão projectos de manipulação da estrutura genética que, por exemplo, molda comportamentos violentos ou comportamentos socialmente reprováveis. 

A tentação subliminar é então a seguinte: fazer com a ciência aquilo que a política não conseguiu, gerar por intervenção científica um progresso moral e político da humanidade. Isso já pode ser pensado e aquilo que é pensado, mais tarde ou mais cedo, é tentado. Por muito rudimentar que ainda seja o saber genético, é já possível surpreender no Zeitgeist a ideia de uma metamorfose da espécie humana. Esta metamorfose não é, nem de perto nem de longe, semelhante àquela que as doutrinas místicas, ou mesmo a filosofia platónica, propõem. Estas são conversões pessoais radicadas na autodescoberta e num processo de libertação pessoal do egoísmo. Aquilo que  está em jogo, porém, não tem este carácter benigno. Visa uma intervenção na própria natureza humana para a alterar radicalmente, visa o desenho efectivo de uma pós-humanidade, numa espécie que se liberta definitivamente do mito da criação, e dos que lhe estão associados, para se tornar numa espécie autoconcebida, isto é, autoproduzida, autocriada. (averomundo, 2009/12/09)

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Menos que as acções do BES


Vivemos numa época em que a cultura clássica é objecto do mais acintoso desprezo. No entanto, é sempre proveitoso olhar para as grandes obras da antiguidade, pois elas possuem modelos que nos ajudam a compreender o presente. O destino de Agamémnon, narrado na tragédia homónima de Ésquilo, é o modelo fundamental para interpretar o trajecto que aguarda, nos dias de hoje, a maioria dos políticos vitoriosos.

Agamémnon é o chefe dos reis gregos que destruíram Tróia. A sua vitória esteve, porém, ligada ao sacrifício de Ifigénia, sua filha, cuja imolação foi por ele autorizada para convencer os deuses a deixarem rumar a armada grega para Tróia. Vitorioso, voltou para a pátria onde o esperava não os louros da vitória mas a morte às mãos da mulher, Clitmnestra. Em resumo, a vitória política assenta no sacrifício instrumental de um inocente e torna-se o caminho mais rápido para a derrota. Com este modelo podemos interpretar o destino político de homens como Guterres, Barroso, Sócrates.

Concentremo-nos, contudo, em Passos Coelho. Ainda há uns escassos três anos, o actual primeiro-ministro era alguém exuberante, cheio de ideias sobre o destino da pátria e a reforma dos costumes que iria trazer à sociedade portuguesa. Não foi uma Ifigénia que foi sacrificada aos novos deuses, os deuses do mercado, foram centenas de milhar ou milhões que Passos Coelho decidiu oferecer em holocausto. Sem compaixão, movido pelo desígnio de purificar a sociedade portuguesa de gente que não se adapta ao mundo novo, o actual primeiro-ministro perseguiu, empobreceu e destruiu tudo o que tinha à mão. Eis a sua vitória, a desarticulação da Saúde, da Educação, da Segurança Social, da Ciência. Destruição, destruição, destruição.

Olhemos hoje para o homem, para aquele super-herói do combate pela sociedade liberal. Onde está? Desapareceu. Onde havia a alegre vanglória do castigador, agora há uma melancolia infinita. Parece que vive assombrado pelo clamor das vítimas que ofereceu em hecatombe. Não dá um passo sem que não tenha suores frios, não vá surgir alguma Clitmnestra. Na verdade, toda a melancolia e todo o temor do primeiro-ministro são inúteis. A sombra da sua derrota já caminha para ele e ele, outrora tão soberbo e ufano, sente a armadilha que a pátria lhe prepara. Todos as suas utopias do livre mercado, toda a construção do homem novo racional e liberal, em nome das quais semeou pobreza e desalento, valem agora menos que as acções do BES. Um destino de Agamémnon. 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A vertigem do absoluto

Leon Spilliaert - Vertigo (1908)

As notícias sobre a presença de ocidentais nas fileiras de combatentes do Estado Islâmico e os dois atentados agora ocorridos no Canadá, perpetrados por recém convertidos ao Islão têm levado muitas pessoas a interrogar-se sobre as motivações que poderão existir nos ocidentais para aderirem a uma agenda de terror e sangue sob a bandeira de uma religião que lhes é estranha. Há múltiplas explicações, umas de tonalidade psicológica, outras de matiz sociológica, outras de natureza política. Todas elas acabam por iluminar um aspecto do problema. Há, contudo, motivações que podem ter outro cariz, outra natureza, uma natureza metafísica. 

O que pode atrair, e certamente terá atraído, muitos jovens para a militância fundamentalista - e que não é muito diferente daquilo que atraiu outrora outros jovens para a militância esquerdista e anarquista - pode ser aquilo que podemos designar pela vertigem do absoluto, a submissão do desejo a imperativos incondicionais que justificam qualquer acção, e acima de todas elas o terror. A condição humana é frágil, fragmentária, finita. A relatividade está inscrita em nós, mas é sentida como um ferrete, um ferrete que acaba por espicaçar o desejo e os delírios de uma ordem absoluta, onde exista uma verdade absoluta que justifique absolutamente a realização dos nossos desejos.

Dotado de uma capacidade infinita de desejar, mas limitado drasticamente pela sua finitude, o homem pode ser conduzido à tentação máxima, que é de se proclamar a voz e a mão de Deus, do Absoluto, na terra. É esta tentação, fundada num desejo sem controlo nem mediação, que conduz muitos destes jovens às opções que agora todos conhecem. Isto, contudo, não é novidade. A história ocidental está cheia de exemplos de vertigem do absoluto. Nas guerras religiosas, na criação de seitas, na teologia política que fundou coisas tão distintas como o anarquismo, o comunismo, o fascismo ou o nazismo. Em todos estes lugares encontramos a mesma doença metafísica do desejo, que não suporta os limites que a realidade impõe à sua realização e à sua natureza. A única novidade é que agora não é uma ideologia produzida no Ocidente que mobiliza a vertigem do absoluto. Mortas as ideologias, o lugar logo foi preenchido por uma nova importada do mundo muçulmano. Onde a vertigem do absoluto se manifestar, tarde ou cedo o sangue correrá e o terror tentará desarticular a vida comum. E é isto que está a acontecer sob o nosso olhar perplexo.

Impressões (iv) - um sopro de luz

Van Gogh - Boulevard de Clichy (1887)

iv. um sopro de luz

um sopro de luz
e o silêncio volta
ao lugar onde
te ouvia

os passos que deste
a poeira da rua
o ventre
dilacerado da noite

um sopro de silêncio
e tudo em ti
se ilumina

(6/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O negrume impenetrável

Georgia O'keeffe - Black abstration (1927)

O homem arrastou-se pelo negrume impenetrável.
(Sjón, A Raposa Azul)

A nossa cultura de homens modernos tende a ver os dias de hoje como mais luminosos que os do passado. Em muita gente persiste ainda a velha crença iluminista no progresso moral da humanidade, um progresso que vê, no desenrolar da história e apesar dos sobressaltos, uma contínua iluminação. Paralela a esta crença sempre existiu uma antagónica, alimentada nos subterrâneos da vida intelectual, onde se considera a nossa época como a mais negra de todas as eras, uma Idade de Ferro, para usar uma imagem derivada do platonismo, mas, por certo, bem anterior. Há nestas perspectivas evolucionistas e involucionistas da história um desejo de fugir - seja para o futuro, seja para o passado - da condição presente. E esta condição presente não é a de hoje, mas a de sempre. Cada época é, para os que nela vivem, um tempo de trevas pelo qual se arrastam. Por mais que se abram os olhos, somos impotentes para ver. Resta penetrar na escuridão. Uns imaginam luzes no fundo do túnel, outros aceitam a escuridão tal como lhe foi imposta. Seja qual for a nossa situação, o importante, porém, é aprender a arrastar-se nesse negrume impenetrável.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

As pequenas mitologias

Jorge Carreira Maia - Mitologias (o grande hotel) (2008)

Todas essas pequenas mitologias que fazem a vida dos homens - a dos grandes e a dos pequenos - estão a tornar-se-me estranhas. Poucas coisas são as que ainda me tocam, como se a verdade de todo o resto se tivesse manifestado já na sua ausência de verdade. Talvez sempre tivesse sido assim. Nos tempos de juventude, quando toda a gente mergulhava no devaneio do rock, ele era-me radicalmente estranho. Hoje, por exemplo, não partilho com a maioria das pessoas o prazer de viajar. Há naturezas assim. Falece-me o espírito do nómada e nunca consegui descobrir esse supremo encanto de me ver arrastado de lugar em lugar, de ser estranho em qualquer sítio, e, mais grave, estar num lugar que nunca me acolherá, pois os lugares têm segredos que ocultam cuidadosamente do turista. Tornei-me, no fundo, um discípulo de Xavier de Maistre. Haverá quem diga que não passo de um medieval, o que será sentido por mim como um elogio. Que poderei eu encontrar no mundo que não encontre no meu quarto ou, melhor, na cadeira do meu escritório? Quando viajo - por vezes, o destino avaro leva-me a isso - sinto sempre uma incongruência entre mim e as cidades por onde passo. Que queres tu de mim? Perguntam-me e eu, confesso, não sei que responder. Eu sou um intruso, um ladrão, um triste voyeur que espreita aquilo que não compreende, aquilo que existe para eu não compreender. No meu tempo de universitário estava muito em voga ainda a crítica das ideologias. Aquilo que precisamos é algo mais radical, a crítica das nossas pequenas mitologias, a manifestação do vazio que se esconde nelas. Por exemplo, a crítica da viagem turística, mesmo daquela - ou fundamentalmente dessa - que é feita segundo o triste pressuposto de acumulação de experiências culturais.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Os agentes da escuridão

Francis Bacon - Head (1951)

Aonde vais chega o outono e anoitece.
(Georg Trakl)

Retorno muitas vezes a estas palavras de Trakl quando penso em certas pessoas. Elas possuem um estranho poder, o de roubar a claridade onde ela existe, o de tornar sombrio o que é luminoso, o de transformar em trevas o que era apenas sombra. O outono de que fala Trakl não é o meu outono benfazejo. Este vem amenizar o tempo tórrido que quase me leva ao desespero. O de Trakl é já o sinal da acção do mal na vida comum. Perante essas pessoas, nunca sei se a produção de trevas é uma missão metafísica que, numa obscura dimensão da existência, lhe foi confiada, ou se se deve apenas a uma patologia grave da personalidade, que transforma um ser humano normal numa perversa encarnação do mal. Mas em todas elas – pelo menos nas que conheço – há uma distorção do carácter que é, ao mesmo tempo, sinal de uma pequenez congénita e uma espécie de luz negra, uma luz intensa mas que apenas derrama à sua volta escuridão.

Impressões (iii) - tudo se entrega

Paul Helleu - Autumn at Versailles (1897)

iii. tudo se entrega

tudo se entrega
ao fulgor da queda

as folhas exaustas
a luz do outono

a música
com que orfeu
matou eurídice

(5/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões, do meu antigo blogue averomundo.)

sábado, 18 de outubro de 2014

A obra e o seu leitor

Jorge Carreira Maia - Black & White Dreams. Luso. (2008)

Querem saber como começa o "Ferdydurke" do Witold Gombrowicz, romance que tanto entusiasmo despertou em escritores como Milan Kundera ou Susan Sontag? Eu sei que ninguém me perguntou, mas, mesmo assim, vou ser bondoso e transcrever as seis primeiras linhas...

«Na terça-feira acordei àquela hora mortiça e difusa, quando a noite já se acabou e o dia mal amanheceu. Ao acordar estremunhado, tive o ímpeto de arrancar num táxi para a estação, pois fui invadido pela sensação de que estava de partida - só no minuto seguinte me dei conta, com grande pesar, de que não havia nenhum comboio à minha espera na estação e que nenhuma hora havia ainda soado

Em seis míseras linhas quantas questões?  Por que motivo acordou ele àquela hora? E a que se deve a sensação de que pensava estar de partida? E que razão funda o pesar por não haver qualquer comboio à espera? E para onde iria esse comboio, se existisse nessa hora? E quando deveriam soar as horas que não soaram e por que não soaram? A questão que se me põe como leitor é se o romance responde ou não a estas questões, se elas são de facto decisivas. São elas que me irão guiar na leitura. São uma espécie de bússola. O que é que eu quero dizer com todas esta conversa? Quero dizer várias coisas, porventura desencontradas.

Ler não é um  mero divertissement. Recordo o conceito pascaliano. Não se trata de, através da leitura, encontrar uma porta por onde o leitor se esquive de pensar, por onde entre e evite confrontar-se com a infelicidade inerente à própria existência humana. Ler não é um acto de entretenimento, para usar uma expressão agora corrente, não é um passaporte para a alienação. Ler é um acto de confrontação. A obra, se for digna de apreço, confronta-nos, põe-nos em causa, questiona, com o seu mundo, o nosso mundo, que é sempre humano, demasiado humano.

Pelo facto de a obra literária nos confrontar, a leitura acaba por ser um combate corpo a corpo. Isto porque não é só a obra que confronta o leitor. Este também a confronta, a interroga, a põe em causa, questiona as opções, confronta a solidez das personagens, a estrutura da narrativa, o génio (no sentido de este ter mau ou bom génio) do narrador. Se me perguntarem quais as vantagens dos livros de papel sobre os eReaders, eu direi: nenhuma (não me comovem o cheiro a papel e outras perversões sensuais que os amantes de livros em papel gostam de sublinhar). Nenhuma, excepto o facto de, se eu estiver a ler alguém de que gosto particularmente, mas que tem o poder, pelo excesso da sua escrita, de me humilhar e irritar – por exemplo, a Agustina Bessa-Luís –, ser muito mais barato atirar um livro de papel à parede do que um eReader. Ler é assim um acto visceral, nada açucarado ou adamado. Quem não gosta de boxe, o melhor é não pegar num livro.

Voltemos agora à sensualidade do livro, mas não àquelas perversões que entusiasmam os cultores dos livros em papel. O jogo que a obra entretém com o leitor é um jogo de sedução. Um jogo sério de sedução e não um mero divertissement donjuanesco. A obra pretenda tornar o leitor num amante fiel e persistente, um amante que não a abandone no meio da noite, que não a troque por umas horas de sono ou outra mais sedutora. A sedução não visa apenas o prazer sensorial, mas a criação de vínculos, talvez mesmo um casamento mais indissolúvel do que o matrimónio católico. A sedução nasce nesse acto de confrontação, de corpo a corpo, de batalha entre o espírito e o corpo do leitor com o espírito o mundo da obra. E é essa sedução que leva à célebre suspensão da descrença vista por Coleridge como a razão pela qual o leitor persiste na leitura de uma obra ficcionalizada.

Apesar de tudo isto, e assim como Kant exigia que a religião, pela sua santidade, e o poder, pela sua majestade, respondessem no tribunal da crítica, também um romance, como qualquer outra obra literária, terá de responder no tribunal instaurado pelo leitor. A este é-lhe pedido não apenas o corpo a corpo com a obra, não apenas o jogo erótico com o conteúdo, mas também a imparcialidade do juiz, uma imparcialidade que não se deve deixar enganar pelo fulgor da batalha ou pelo ardor do amplexo. E para que o leitor seja esse juiz nada melhor do que estar atento ao início, não porque este seja deslumbrante, mas porque nele está contido uma promessa. E o juiz deve determinar que promessa ali está e se o promitente a cumpre. E na literatura, como na arte, não há mais moral que esta.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

O Sínodo e a quadratura do círculo


A Igreja Católica está, com o Sínodo dos Bispos sobre os problemas da família, a confrontar-se com um problema de difícil solução, problema que a assombra desde a Reforma protestante e o posterior surgimento do que se convencionou chamar Modernidade. O problema é o da conciliação entre a autonomia da pessoa – a conquista central da Modernidade – e a tradição que se funda, para além das Escrituras, na autoridade da hierarquia eclesial. É esta autoridade, detentora do poder doutrinal, que muitas vezes choca com a autonomia da pessoa, nomeadamente em questões de moral sexual, tendendo a limitar a liberdade dos crentes.

O conflito entre autonomia do indivíduo e autoridade religiosa acabou, nos países ocidentais onde a Igreja Católica possui influência, por conduzir a um afastamento entre os princípios doutrinais da Igreja e as práticas sociais e individuais das pessoas, incluindo as dos crentes. Este fenómeno foi potenciado por dois outros. O primeiro foi a transformação das narrativas bíblicas, de carácter simbólico e mítico, em narrativas históricas e o confronto dessa suposta verdade histórica com os dados das ciências. O segundo é o da separação entre o Estado e a Igreja com o fim da autoridade política desta. A autoridade social e moral, mas também espiritual da Igreja foi assim diminuindo até chegar à actual situação de vazio religioso. Neste momento, e esse parece ser o grande problema, esse vazio começa a ser preenchido, seja pela penetração do Islão, seja pelo advento e afirmação das seitas pentecostais.

A estratégia seguida pelo actual Papa tem a sua âncora na virtude da misericórdia. Misericórdia social, com a crítica à deriva ultraliberal da economia e o apelo a um mundo mais solidário, e misericórdia moral relativa às condutas ditas desordenadas no âmbito da sexualidade e das emergentes formas de família. O problema é se este apelo à misericórdia, ao perdão e à compreensão do outro, chegará para fazer a quadratura do círculo e conciliar tradição e modernidade, autoridade da Igreja e liberdade individual. A liberdade do indivíduo não necessita de misericórdia, precisa de ser completamente reconhecida em todas as suas dimensões, incluindo a da sexualidade. Reconhecida esta liberdade, talvez a Igreja possa perceber que o seu grande problema é de dimensão espiritual e não moral, é o de abrir caminhos, no mundo moderno, para que indivíduos livres e autónomos possam realizar a transformação do homem velho no homem novo, do velho Adão no novo Cristo, para utilizar a simbólica neotestamentária. Não foi para isto que foi criada? Ou terá sido para julgar a mulher adúltera?

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Civilização e barbárie

Jose Clemente Orozco - American Civilization-The Gods of the Modern World (1932)

Vale a pena reflectir na tendência geral que se afirma no mundo. Numa altura em que este se globalizou e que, graças à tecnologia ocidental, toda a gente está ligada a toda a gente, a vida dos homens parece caminhar no sentido contrário da vida civilizada. Haveria muitos exemplos fora do mundo ocidental onde isso é muito claro. Perseguições religiosas, políticas, fanatismos armados, impotência perante as epidemias e a fome, tudo isso faz parte do menu da vida incivilizada. Há algo, porém, muito mais insidioso que opera já no mundo ocidental e de que ainda não aferimos as verdadeiras consequências.

As conquistas civilizacionais do Ocidente assentaram numa crença básica de carácter utilitário, mas que teve uma importante repercussão no modo de vida das pessoas. Essa crença dizia-nos que havia uma correlação entre a educação de um povo e o desenvolvimento económico. Os ataques que os sistemas universais de educação estão a sofrer são a manifestação de que as elites políticas e económicas abandonaram essa crença. A educação universal deixou de ser vista como um investimento gerador de riqueza e bem-estar, para passar a ser tida como uma despesa, um verdadeiro desperdício e, por isso, um problema a eliminar.

É possível pensar – embora talvez seja muito mais difícil provar – que essa correlação entre educação e desenvolvimento económica seja, nos dias de hoje, mais fraca do que outrora (Thomas Piketty, no seu célebre livro O Capital, mostra, com argumentos fortes, precisamente o contrário). Mas mesmo que essa diminuição da correlação seja verdadeira, a questão é que a educação não visa apenas o desenvolvimento económico. Melhor, não visa essencialmente o desenvolvimento económico. O que está em jogo na educação é a produção de uma vida civilizada que valha a pena viver, uma vida orientada, progressivamente, por valores espirituais mais elevados, uma vida estruturada sobre a razão crítica. Uma vida civilizada de uma comunidade educada não é uma garantia absoluta contra a barbárie, como o seculo XX teimou em mostrar, mas será certamente um forte antídoto.

Aquilo a que estamos a assistir neste momento é a abertura de uma brecha na crença da importância de uma educação universal (aqui pode-se ver como Portugal desinveste na educação). A educação continuará a ser importante, mas será cada vez mais capturada pelas elites, que frequentarão escolas de grande qualidade e rigor, enquanto para a massa a qualidade da educação será cada vez mais degradada. Não faltará muito para que se faça ouvir, com estrondo e em nome da liberdade, ataques à obrigatoriedade da escolarização das pessoas. Isto será, porém, apenas mais um rombo no edifício que nos permitiu chegar onde chegámos. Não é apenas a barbárie exterior, na figura do fundamentalismo religioso, que põe cerco à vida civilizada. Nem tudo aponta neste sentido, porém. Li há pouco que a Alemanha eliminou todas as propinas no ensino superior. Mas não tenhamos dúvidas que um poderoso cavalo de Tróia, fundado em crenças de matriz económico e de inspiração liberal, opera dentro da própria civilização, apostando na destruição das mais importantes conquistas civilizacionais. Um terrível e poderoso combate trava-se na sombra entre civilização e barbárie. E o inimigo não está apenas fora de nós.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Impressões (ii) - não tragas a ferida

James Ensor - Bathing Hut (1876)

ii. não tragas a ferida

não tragas a ferida
para junto do mar

cobre as pústulas
de erva e sal
e esconde a dor
nos favos do horizonte

não há oceanos
que lavem
tamanha mágoa
nem voz que cale
tal agonia

(4/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões, do meu antigo blogue averomundo.)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Um amor perverso

Max Ernst - Oedipus Rex (1922)

Por vezes, reprovam-me, ou olham com desconfiança, o meu interesse pela política. Talvez pensem, e isso seria mais um cumprimento do que uma crítica, que é um desperdício de tempo falar de coisas que, nos dias de hoje, são consideradas pouco nobres. Há, no entanto, um equívoco. É um facto que eu tenho posições políticas e que, como qualquer outro ser humano, sou movido por interesses que nascem da tensão entre os meus desejos e as necessidades da comunidade. Mas não é isso que me interessa, nem tão pouco julgo que a política seja o lugar da produção do bem, mesmo do bem comum. O meu interesse é puramente perverso. Talvez esta perversidade nasça do amor à tragédia. O lugar do meu interesse é literário, estético, digamos.

Não há na vida social dos homens lugar mais trágico que o da política. Não é por acaso que as principais tragédias clássicas são protagonizadas por figuras políticas. A tragédia da política nasce da incomensurabilidade entre a natureza do poder e a capacidade dos homens. O poder – o poder político, note-se – exige, pela sua natureza, que aqueles que o ocupam sejam deuses, mas os candidatos são apenas homens, limitados, finitos, mortais. Houve uma altura que a distância infinita entre a exigência do poder e a natureza do governante era preenchida por um truque. O governante era declarado um deus. Com o cristianismo, o truque modificou-se. O governante já não é um deus mas um ungido por alguém em nome de Deus. Estes truques tentavam disfarçar aos olhos da plebe a verdade, a condenação e a derrota de todos aqueles que chegam ao poder. Condenação nascida da sua finitude, de uma finitude que não lhe permite cumprir os imperativos infinitos que o poder impõe.

A minha perversidade nasce do prazer trágico de ver homens como Passos Coelho, Sócrates, Seguro, Costa, Cavaco Silva e todos os outros – cá e no estrangeiro – dirigirem-se, no momento da vitória e da conquista do poder, para a sua perdição. A sua vaidade cega-os e dá-lhes uma breve ilusão. Eles riem, acenam, mas a derrota, como a morte no momento do nascimento, já começou a trabalhar por dentro da sua vitória. Se estes homens fossem apenas homens privados, a sua finitude seria apenas contrastada com a de outros seres e tarefas finitas. Expostos sob a luz do poder, a sua mediocridade – igual à de todos nós – logo se torna patente. Passados semanas, muitos já são risíveis. Mesmo os mais audazes e talentosos acabam por ser desmascarados e o ridículo da sua coragem e virtude políticas é exposto na praça pública. Não são deuses, são mortais, a que a secularização do poder roubou o truque da presença divina. A tragédia grega, a qual supostamente tratava de caracteres nobres e elevados, não nos diz outra coisa. Agamémnon e Édipo caminham nas asas da vitória para a sua própria derrota. E é este jogo entre a vaidade do homem político e a humilhação a quê está inevitavelmente condenado que me interessa. É sempre um espectáculo purificador, para seguir a lição de Aristóteles. Uma perversidade.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Um esquema genial

Francisco de Goya - Sueño de la mentira y la inconstancia (1796-7)

A máquina está montada. Os erros de colocação de professores vão sair caro não ao ministro causador de todo este imbróglio, mas aos próprios professores. Como? Há dias discutimos aqui o artigo de José Manuel Fernandes, onde se esboçava já a estratégia de entregar a colocação de professores à iniciativa local. Mas José Manuel Fernandes era apenas o primeiro. Hoje, no Público, João Carlos Espada alinha pelo mesmo diapasão. A cereja em cima do bolo veio da boca do Presidente da República. No meio disto tudo, há um conjunto de mentiras postas a circular. Uma delas é que os erros de colocação são recorrentes. Não é verdade. Com esta dimensão, aconteceram com este ministro e aconteceram com um governo de Santana Lopes. Imagine-se.

Não vou retornar aos argumentos aqui expostos há dias. Todos nós sabemos como vão ser os concursos de professores quando eles forem entregues à iniciativa local. O que quero sublinhar, porém, é a convergência de certos sectores políticos, na impossibilidade de privatizar toda a educação, para retirar a questão dos professores da esfera do poder central. Visa três coisas. Em primeiro lugar, retirar força social aos professores, força que lhe é dada pela sua relação com o Ministério da Educação. É o fim de uma dor de cabeça. Em segundo lugar, pretende-se completar o processo de proletarização docente. Sem força, espartilhada entre autarquias e autonomias locais, a profissão será cada vez mais mal paga. Por fim, mas não menos importante, pretende-se entregar um bolo interessante aos poderes fácticos locais, para o gerirem conforme as suas necessidades. 

O esquema é genial. O ministro não gosta dos concursos nacionais. Lança, por incompetência, presume-se, o caos na educação. Em vez de ser demitido, vai tornar-se um herói. Vai alcançar através do caos que lançou os objectivos que aqueles que o apoiam tanto desejam. Mais uma vez, os professores são uma espécie de bombos da festa. Presos por terem cão e presos por não o terem. Nuno Crato, um dos piores ministros da Educação, ainda vai ser condecorado como herói por ter aberto caminho à libertação da classe política da sombra do professorado. Quanto aos professores, que se aguentem. Quem os mandou escolher uma profissão que visa o bem comum?

domingo, 12 de outubro de 2014

Impressões (i) - o rasto de areia

Camille Pissarro - A Square at La Roche-Guyon (1867)

i. o rasto de areia

o rasto de areia
na silhueta da tarde

um traço de carvão
se o sol declinar

e a noite virá
cobrir de silêncio
quem se perdeu
na luz solar

(3/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões, do meu antigo blogue averomundo.)

sábado, 11 de outubro de 2014

A zoada infinita

Jorge Carreira Maia - Heimat VI, TN (ESAG) (2014)

Um murmúrio infecta a tarde, cresce, zoa nos ouvidos, toma conta de casas e pessoas, abre uma brecha na textura do mundo. Se o silêncio viesse cobrir de paz estas horas, tudo se tornaria mais fácil. Alguém vai ao terraço e rega as plantas, cobre cada vaso com uma fina película de água e depois recolhe-se, como se toda a vida ganhasse sentido no acto de se acoitar na inviolabilidade do casulo. Sentado noutro terraço, um homem olha o horizonte. Conta os carros que passam e boceja, depois retoma a contagem e torna a bocejar. O murmúrio cresce enquanto ele conta, cresce indiferente às contagens humanas. É um zumbido de carvão, lasso, o rufar de uma nódoa na claridade que se ergue da terra. Penso nas infinitas contagens a que os homens dedicam a vida. Quantos dias faltam para o fim-de-semana? Quantas horas para embarcar? Quantos instantes até que a morte venha e tudo seja já nada? O discreto bocejador desapareceu engolido pela vida doméstica. Não há carros na linha do horizonte, apenas a zoada infinita a crescer como uma mancha cheia de nada que se derrama dentro de mim. (averomundo, 2008/05/22, revisto)

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A Cruz, o Crato e os corninhos do Pinho


Portugal é um país curioso. Talvez o leitor esteja lembrado de Manuel Pinho, antigo ministro da Economia, num governo de Sócrates. Acabou a carreira política numa troca de galhardetes com a bancada do PCP. No calor da disputa, não se conteve e fez uns terríveis corninhos para o deputado Bernardino Soares, salvo erro. Não apenas a honra do deputado comunista foi posta em causa, como a própria pátria terá ficado de tal maneira lesada pelos dois dedos que saíram pelas laterais da testa do ministro, que este teve de se demitir.

Olhemos para estes últimos meses da governação de Portugal. Nenhum ministro perdeu as estribeiras e fez corninhos para a oposição. Mas a ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, e o ministro da Educação, Nuno Crato, são responsáveis por dois inenarráveis processos de desarticulação da Justiça e da Educação em Portugal. Processos judiciais parados, confusão nos tribunais, pessoas com a vida suspensa a aguardar que o sistema volte à normalidade. Alunos sem professores, professores colocados e despedidos, professores deslocados para um lado e depois para o outro, escolas fechadas. Um pandemónio. Tanto Teixeira da Cruz como Nuno Crato são responsáveis políticos directos por transtornos inimagináveis na vida de muita gente. Isso parece ser muito menos grave que os corninhos de Manuel Pinho.

Não digo que a demissão de Manuel Pinho, motivada pelo seu gesto, foi excessiva. Aquilo que ele fez, e o levou à demissão, em nada prejudicou os portugueses, enquanto as decisões e a gestão de Teixeira da Cruz e de Nuno Crato causaram sérios prejuízos às instituições, à sociedade e a muitos cidadãos. Demitiram-se? Foram demitidos? Não, no momento em que escrevo este artigo, leio que o primeiro-ministro afasta a demissão de Crato. Em Portugal, um ministro pode ser demitido por uma pilhéria de mau gosto, mas se afecta os cidadãos com os seus erros parece que deve ser protegido, senão mesmo louvado.

Estes episódios mostram duas coisas. Em primeiro lugar, que há muito mais tolerância para ministros de direita do que para ministros de esquerda, mesmo que seja de uma esquerda que quase não se distingue da direita. Em segundo lugar, e o mais importante, é que erros ministeriais (não digo políticas, digo erros) – fundamentalmente, se vieram da direita – que afectem ou destruam a vida das pessoas não têm qualquer sanção. Fica claro o valor que os cidadãos têm aos olhos do governo. Nenhum! Afecta-se a vida da população, paciência. O ministro pede desculpa e amanhã é outro dia. Grave, grave é se um ministro faz uns corninhos. Aí a pátria vai abaixo.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A questão é entrar

Antonio Tápies - Porta Roja (1995)

- Escute, homem! Você quer entrar na Politica? Quer. Então, pelos Historicos ou pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos são constitucionaes, ambos são christãos... A questão é entrar, é furar. Ora você, agora, inesperadamente, encontra uma porta aberta. O que o póde embaraçar? As suas inimisades particulares com o Cavalleiro? Tolices! [Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires; ortografia segundo a regra da época.]

Não estamos no século XXI. Eça retrata o constitucionalismo monárquico do século XIX. O problema reside no simples facto de não haver qualquer diferença entre o oportunismo político da altura e o actual. Para além de uma vaga reverência ao constitucionalismo e aos valores cristãos, uma espécie de senso comum da época ou, para usar uma infeliz expressão em voga nos dias de hoje, o politicamente correcto de então, qualquer convicção é dispensável às elites políticas portuguesas em períodos de constitucionalismo normal.

Nas sociedades pós-modernas em que se vive a indiferenciação programática dos partidos políticos deve-se à erosão de alternativas. Pode haver diferentes formas de gerir a coisa pública, diferentes memórias histórico-partidárias, diferentes famílias políticas internacionais, mas todas elas coincidem no essencial, como os últimos governos não se cansam de confirmar. A indiferenciação político-partidária portuguesa, porém, não se inscreve apenas nesta perspectiva de ausência de alternativa das sociedades ocidentais actuais, das sociedades tardo-capitalistas, para usar uma expressão cunhada por Werner Sombart e mais tarde adoptada pela Escola de Frankfurt. Ela é uma tradição profunda de ausência de valores políticos sólidos, de convicções sobre o bem comum, de falta de carácter dos protagonistas.

Na verdade, e apesar de uma guerra civil no século XIX entre liberais e tradicionalistas (miguelistas), Portugal, para além das convicções atávicas da velha Monarquia que se foram desfazendo, nunca foi lugar de enraizamento de valores políticos modernos, talvez com a excepção da área dominada pelo Partido Comunista. De certa forma, Portugal foi pós-moderno mesmo antes de chegar a ser moderno, se é que alguma vez o foi efectivamente. Para as elites nacionais a questão é só uma, a questão é entrar, furar. A monarquia constitucional é um repositório dessas virtudes pátrias. A República mudou o regime mas não os hábitos. O Estado Novo dispensou a liberdade, mas manteve as velhas virtudes do constitucionalismo e da República. O actual regime nunca encontrou motivação para tornar o país num sítio um pouco mais asseado e o Estado num lugar mais imparcial. Há que encontrar a porta e entrar. (averomundo, 2010/02/22, revisto)

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Falsificar a realidade

Escolas Primárias de Torres Novas (Arquivo Municipal) (1956)

A presente trapalhada da colocação de professores neste ano lectivo mereceu um artigo de apoio ao Ministro Crato por parte de José Manuel Fernandes (JMF). Este artigo é um hino a tudo o que é mau nos debates da esfera pública portuguesa. Em resumo, o articulista acha que a culpa é dos sindicatos e não do ministro. O motivo dessa culpa reside no amor desmesurado que os sindicatos têm pelo concurso centralizado baseado na nota profissional e no tempo de serviço, enquanto JMF, bem como o ministro, acha que se deve avançar, como no caso actual e que deu o brilhante resultado que temos perante nós, para que as contratações se façam segundo o arbítrio do director de cada escola. Se ele é responsável, então terá de ter o direito de escolher quem muito bem entender, segundo critérios que definirá. Sob este manto está a ideia de que cada director escolherá os melhores professores que puder para a sua escola. Eu sei que os leitores já estão a contorcer-se de riso, mas vamos por partes.

JMF falsifica a realidade escondendo que não são apenas os sindicatos que não gostam deste tipo de concursos. São também os professores, incluindo os melhores professores, os mais dedicados, os mais preocupados com a formação dos alunos. JMF oculta este dado para não discutir aquilo que é essencial. Por que motivo os professores, mesmo os melhores, temem os concursos de escola? Por que motivo, apesar de tudo e daquilo que tem de negativo, preferem um concurso centralizado e com regras iguais para todos? Por um simples motivo, porque vivem em Portugal e temem, fundados num saber ancestral, que, no momento em que for dada total liberdade de contratação, muitos directores escolham não os melhores mas aqueles lhe são mais próximos, aqueles que as câmaras lhes indicarem, aqueles que eles queiram dar emprego. Não estamos na Finlândia, nem numa cultura protestante. Ser melhor em Portugal pode ser até motivo para não ser contratado, podem crer. Não serão todos os directores assim. Mas com o tempo isso passará a ser assim na generalidade. A cultura dominante, que em Portugal é a do nepotismo, da cunha e da influência do poder político, prevalecerá e acabará por expulsar todos aqueles directores que, sendo justos e profissionais, não queiram obedecer aos ditamos dos poderes fácticos que rodeiam a escola.

JMF sabe tudo isto e finge que não sabe. Ou será que ele não vive nem conhece o país sobre o qual derrama em abundância as suas opiniões? O mais estranho é que os ultra-defensores do liberalismo em Portugal sejam tão complacentes com a cultura iliberal, que nem se apercebam que a liberdade de escolha de um director ficará de imediato condicionada pelos poderes reais, legítimos e não legítimos, que rodeiam as escolas? Famílias poderosas, empresários, poderes autárquicos, tudo isso fará da escola pública - como fará das escolas privadas (não se tenha ilusões sobre isso) - um pasto para empregar as pessoas certas, isto é, os professores que tenham os padrinhos adequados. O artigo de JMF é um caso claro de ausência de um debate sério sobre os problemas. Cada parte, e umas mais do que outras, escamoteia a verdade da situação, para tentar vender ideologia. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Uma folha cansada

Berthe Morisot - The Cherry Tree (1893)

São focas em combate as nuvens que vejo pelos céus. Correm, saltam, estilhaçam-se sob o império do vento. Pássaros inquietos voam na largura do horizonte, procuram os telhados onde fizeram ninho, aves citadinas habituadas ao rumor trânsito, ao fumo dos escapes. Temem o silêncio dos campos, o pó da terra, o excesso de erva pelo chão. Focas e pássaros lutam, agora, pelo domínio dos ares, enquanto o sol declina e as gentes se perdem nas ruas a caminho da melancolia da noite. Num pequeno quintal, uma cerejeira abre os ramos, dedos estendidos ao que neles poisa. De súbito, um pequeno tremor. Um pássaro que poisa? Uma cereja que cai? Não, apenas uma folha cansada que no chão adormece. (averomundo, 2008/05/23, revisto)

domingo, 5 de outubro de 2014

De socialista a insociável

Evaristo Valle - Bernard Shaw (1950)

Muitas vezes a minha memória é assediada pelo título de um livro que nunca li. Trata-se do romance de Bernard Shaw, publicado em 1887, Um Socialista Insociável (An Unsocial Socialist). É um título que me acompanha há quarenta anos. Foi nessa longínqua juventude onde uma inevitável confluência entre ingenuidade, desarranjo hormonal, generosidade e pouco exercício dos neurónios, entre outras infelicidades, me levou à militância política em prol do socialismo. Foi nessa altura que o título do livro de Bernard Shaw se cravou, misteriosamente, na minha memória e nunca mais me largou. O que eu não sabia – e hoje isso parece-me muito claro – é que ele era uma cifra do meu próprio destino. Não que fosse naquela altura um socialista insociável, não o era, ou que, com o decorrer do tempo, me tenha tornado em tal. Não tornei. A verdade é outra. Naquela altura acreditava piamente no socialismo – melhor, no socialismo científico, seja lá o que isso for –, com o passar dos anos a crença no socialismo, mesmo no científico, perdeu-se e, em paralelo, foi crescendo a minha insociabilidade. 

Não me tornei misantropo, mas não consigo pertencer a grupos, partilhar gostos, conjugar os meus esforços em prol do que quer que seja. Não é por comodismo ou por crer que a vida privada seja o núcleo central da vida humana. É por uma questão de respeito pelas sociabilidades dos outros. Se pertencesse a qualquer grupo acabaria por me rir dos seus objectivos, das suas actividades, da sua organização. Talvez dos seus membros, a começar por mim. Por isso, não faço parte de nada, nem de clubes recreativos ou culturais ou desportivos, nem de um partido ou de uma paróquia, nem de um círculo de leitura ou de uma confraria. Nada. Cada vez mais o que é humano se me torna estranho. Penso-me activo num qualquer grupo e só consigo ver o desconcerto da melancolia. A sociabilidade onde o meu pobre socialismo juvenil floresceu vacinou-me. Mas sem dar por isso, essa vacina era já o vírus da insociabilidade que se me inoculava. Terríveis são os presságios que só descobrimos que o são quando o vaticínio está consumado.

sábado, 4 de outubro de 2014

Vontade e virtude

Il Perugino - Fortitude and Temperance with Six Antiques Heroes (1497)

Foi, sem dúvida, com profunda sabedoria que os romanos deram o mesmo nome à força e à virtude. Não há, com efeito, virtude propriamente dita sem vitória sobre nós, e tudo aquilo que não nos custa nada não vale nada. [Joseph Maistre, Soirées de Saint-Pétersbourg]

Esta velha sabedoria lembrada por Joseph de Maistre, o mais famoso e consistente adversário da Revolução Francesa – um dos eminentes pensadores inimigos da liberdade, segundo Isaiah Berlin – parece, nos dias de hoje, completamente estranha. Uma ideologia hedonista fundada na gratificação imediata é a explicação mais corrente. No entanto, a desvalorização da vontade enquanto faculdade humana que precisa de ser cultivada tem um papel central no obscurecimento daquilo que, para os romanos, era já particularmente claro. A ideia de vencer-se a si mesmo ou a disposição para pagar por aquilo que é essencial foram arrastadas pela voragem que varreu a educação da vontade como elemento essencial de formação.

O mais curioso é que, se queremos compreender o infindável colapso português, temos aqui uma chave fundamental. As elites não o são porque se venceram a si mesmas, contiveram o desejo e adiaram a gratificação e o prazer. Não, as nossas elites são o fruto do privilégio, da ausência de competição e de concorrência. Vivem do bloqueamento dos outros e de uma rede de interajuda que as protege e lhes evita o esforço e a necessidade de auto-superação. Excepto em casos raros, os erros são absorvidos pelo todo nacional e os que os cometeram continuam com papéis, estatutos e privilégios idênticos aos que tinham. Portugal não tem verdadeiros liberais, pois ninguém valoriza o vencer-se a si mesmo, a ascese que permite construir uma obra, o sacrifício que dará um fruto longínquo. Os nossos liberais odeiam a liberdade. Usam o liberalismo como mero expediente para justificar privilégios pessoais e de casta.

Se a vontade das elites está corroída, assim como o seu carácter, o mesmo se passa com as camadas populares. Se não há liberais em Portugal, também não existem, na verdade, socialistas. A democracia política foi uma oferta, por vezes relutante, dos militares. A generalidade dos portugueses não a pediu e muito menos se bateu por ela. Com as excepções conhecidas, os portugueses nunca se mostraram dispostos a pagar para serem livres. Como salientou Eduardo Lourenço, os portugueses viveram o regime de Salazar sob uma “calma soberana”. Se a liberdade foi uma oferta das elites militares em ascensão, o chamado Estado Social foi uma oferta apaziguadora das elites burguesas radicais. Pela generalidade dos portugueses, nunca foi sentido como algo pelo qual pagaram (embora, o que não deixa de ser irónico, o tenham pago) e, por isso, a sua destruição não os comove e, muito menos, os movimenta para defender aquilo que deveria ser sua propriedade. Sistemas de Saúde, de Educação e de Segurança Social são vistos com coisas que, havendo-as, se usufrui e se explora, não como muita consideração, mas se desaparecerem, paciência, aquilo não lhes diz respeito. Aquilo pela qual não se sente que houve um duro preço a pagar não tem valor.

Hoje em dia, o principal foco, em Portugal e em parte do mundo ocidental, de corrosão da vontade e do carácter é o sistema de ensino, onde proliferam teorias sobre os afectos, atitudes, saberes ser, estar e fazer, e outro lixo ideológico que académicos ociosos propagam entre famílias perplexas e à deriva e classes docentes pouco críticas. A grande crise que afecta os portugueses é esta estranha ideologia que despreza a virtude da superação de si e da disponibilidade para pagar aquilo que lhe é essencial. Para que serve uma elite que vive do privilégio, da excepção e da protecção? Que felicidade pode haver num povo que não está disposto a pagar – e este pagar não é fundamentalmente monetário – por aquilo que lhe permite lançar os fundamentos da superação da sua situação? Que futuro brilhante – porque o outro, de uma maneira ou de outra, haverá sempre – pode esperar um povo no qual a vontade, tanto nas elites como nas classes populares, é frágil e incapaz de se impor imperativos que levem à superação de si mesmo e da situação em que se vive? Que futuro pode ter a vida em liberdade num sítio onde é aceite mas pela qual não se está disposto a pagar seja o que for? 

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Um caso exemplar


O fenómeno político merece uma atenção especial pelos dramas que nele se representam. António José Seguro sonhou ser primeiro-ministro e, durante uns tempos, ao chegar à liderança dos socialistas, julgou que o poder lhe cairia no colo, devido ao desgaste da coligação no poder. O mundo é cruel e não perdeu tempo em tornar evidente que o agora ex-líder do PS era um político pouco dotado para aquilo que pretendia, o poder. Se a oposição que fez a Passos Coelho foi mais colaboração do que oposição, onde Seguro mostrou a sua irrelevância política foi na forma como acolheu o desafio de António Costa. Toda a estratégia que seguiu tornou patente a sua fraqueza.

Se António José Seguro fosse um político virtuoso teria reagido, ao desafio que o Presidente da Câmara de Lisboa lhe lançou, de forma completamente diferente daquilo que fez. A política tem como objectivo central a conquista do poder e aqueles que o querem devem esperar a hora exacta para agir. Tudo tem um tempo. Foi isso que António Costa fez. Esperou a hora em que o ataque ao poder no partido poderia ter sucesso e não hesitou. Seguro deveria ter respondido de imediato que sim senhor, vamos resolver rapidamente o assunto da liderança, em vez de, como uma dama ofendida, se lamentar com a traição do camarada e de ter manobrado para que a decisão do assunto demorasse uma eternidade.

Na forma como agiu, toda a gente percebeu que ele era um candidato fraco e incapaz. Fraco porque partiu, numa situação em que isso era visto negativamente pelos eleitores, para ataques pessoais ao adversário. Incapaz, porque calculou mal. Ele teria toda a vantagem em resolver o assunto num rápido congresso do partido e sem eleições primárias. Fez exactamente o contrário. Um hara-kiri. As primárias socialistas não mostram a virtude política de Seguro. Mostram o equívoco que ele era. Quem se engana de tal forma na manutenção do poder dentro de um partido menos capaz é de o alcançar no país.

O que é interessante na política não é a esperança de que ela nos resolva os problemas. Não resolve. Os nossos problemas teremos de ser nós a resolvê-los condicionando os políticos. O interessante é observar estes dramas pessoais, nos quais descobrimos muitas vezes um abismo entre as pretensões que os indivíduos alimentam sobre si mesmos e a sua verdadeira natureza e capacidade para conquistar o poder. Na política como no desporto, a vitória é o único sinal de competência. O resto é pregação moral, mas a política não é o lugar da moralidade, como Seguro percebeu no domingo passado. Um caso exemplar.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A gesta do presente

Joan Miró - Diálogo de insectos (1925)

Novalis também pensa, como August Wilhelm Schlegel – fundador, com o irmão Friedrich, do romantismo –, que «a poesia dos antigos era a da possessão, a nossa é a da nostalgia».
(Claudio Magris, Alfabetos, pp. 90-91)

Se a poesia dos antigos era o delírio provocado pela possessão divina e a dos românticos a da nostalgia por essa possessão, o que será a nossa? A nostalgia romântica dissolveu-se, pois esses antigos afastaram-se de tal maneira de nós que nem para a nostalgia há, nos dias de hoje, um objecto que a preencha. Houve um momento em que até os poetas sentiram nostalgia do futuro e fizeram parte dos fiéis dessa igreja. Hoje, porém, com a exclusão dos homens de negócios – e esses só no que diz respeito ao seu métier – ninguém se interessa pelo futuro. Nem a experiência divina dos antigos, nem a nostalgia dos românticos, nem a expectativa dos modernistas. Qual o território do poeta? Esta pergunta interpela-me uma e outra vez. Nunca se deverá ter escrito tanta poesia no mundo como hoje, mas isso parece-me mais o sintoma de uma ausência do que a afirmação de uma vitalidade. Há dias que chego a pensar que tudo o que é poeticamente permitido está condensado em Gregor Samsa, esse infeliz caixeiro-viajante que, por uma estranha metamorfose, se torna num horrível insecto.

Não haverá símbolo maior do mundo moderno do que o caixeiro-viajante. Ele é o mediador por excelência, mas um mediador que não está fixo no território, que se desloca para estabelecer pontes entre aqueles que querem vender e aqueles que querem comprar. Ele constrói com o seu labor o mercado. De súbito e inexplicavelmente, Gregor Samsa transforma-se,como se fosse possuído agora não pela mania vinda dos deuses mas por algo que vem dos fundos do ser, e que o arrasta para a sua nova situação. Se em O Castelo e em O Processo Kafka torna patente o significado da racionalização da vida, desiderato ordenador da modernidade, em A Metamorfose joga-se algo mais fundamental para a condição humana. Num mundo onde, idealmente, todos devem ser mediadores e instituir, pelo seu labor, o mercado universal, a poesia possível é a da epopeia negativa onde o homem se vê lançado num nível inferior de animalidade. Não há lugar para a possessão divina dos antigos poetas, nem para a nostalgia romântica, nem para os sonhos futurista ou realistas. Há a gesta do presente, e esta não é mais do que a transformação do homem num insecto.