domingo, 30 de novembro de 2014

Para que serve?

Jorge Carreira Maia - Black & White Dreams (2014)

Ao cair da tarde, olhei pela janela e vi na escola aqui ao lado uma tira de luz brilhante, uma luz solar que dizia tudo é possível, ainda. O ainda grita dentro de mim e eu olho para o lado à procura da máquina fotográfica. Pego nela e viro-me. Tudo estava diferente. O ainda desaparecera na voragem do instante. A luz, agora baça e triste, uma luz de domingo à tarde, mesclada de sombras, transida de frio, negava a esperança de há pouco e sussurrava a inutilidade e a impossibilidade de tudo. Ensimesmado, o Sol declinou, escondeu-se para lá da serra e deixou que o tropel da noite poisasse diante de mim. Para que serve escrever tudo isto? Para que serve escrever seja o que for? Para quer serve?

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Conversa vazia

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Vivemos tempos conturbados e cheios de equívocos. Isso tolda a razão daqueles que deveriam ter um discernimento acima do senso comum. Não me refiro ao triste caso de Engenheiro Sócrates, o qual pertence a um mundo que já mostrou os frutos que tinha para dar. Refiro-me à visita do Papa Francisco ao Parlamento Europeu e ao protesto do eurodeputado da Frente de Esquerda e ex-candidato à presidência de França, Jean-Luc Mélenchon. Argumentou que, em nome da laicidade das instituições europeias, o Papa não tinha que discursar em Estrasburgo. Mélenchon e os seus apoiantes cometem dois erros. Um de princípio e outro estratégico.

Ao nível dos princípios, não se compreende como o discurso de um líder religioso afecte a laicidade das instituições. O Papa foi fazer catequese ao parlamento europeu? Foi obrigar os deputados a converterem-se? O Papa tem poder para anular a laicidade das instituições políticas europeias? O Papa quer acabar com a laicidade dos Estados? Todas estas questões têm uma resposta: não. A única coisa que subsiste no protesto de Mélenchon é o preconceito anticatólico, tão ao gosto de um certo republicanismo francês e de uma esquerda que vive presa a representações da religião próprias do século XIX. Este preconceito cega-o para o dever de acolhimento de alguém que, do ponto de vista religioso e social, é significativo para uma parte considerável dos cidadãos europeus.

Estrategicamente, ainda é mais incompreensível a atitude de Mélenchon. Num momento em que para a generalidade das pessoas a vida se tornou difícil senão mesmo um calvário, alienar a voz de um Papa, que se tem destacado por questionar e criticar os actuais caminhos da economia e da política, raia a irracionalidade. A voz de Francisco pode fazer muito mais pelos pobres, deserdados e até pelas classes médias em desagregação do que todos os sermões político-ideológicos a favor dos explorados e oprimidos.


O mundo mudou. Pessoas e instituições que ontem eram adversárias, senão inimigas, têm hoje, devido ao avanço avassalador das posições ultraliberais, mais pontos em comum do que de oposição. É evidente que o Papa não sonha com revoluções nem com a imposição de uma ditadura do proletariado. Como muitos moderados e como manda a doutrina social da Igreja, quer um mundo onde os pobres tenham oportunidades, onde haja mobilidade social, onde a vida de toda a gente seja decente. E isto é o mais importante. Para as pessoas é indiferente que esse mundo chegue pela mão de A ou de B. O importante é que venha. A esquerda deveria perceber isso, e deixar-se de conversa vazia e retórica do século XIX.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Da fonte de todo o desconsolo

Tiziano - Venus recreándose con el amor y la música (1548)

(...) de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer. (Stig Dagerman)

Para lá das múltiplas razões que Stig Dagerman aponta para essa necessidade de consolo (podem ser lidas aqui), há uma outra que entendo ser a fonte de todo o desconsolo. Não é propriamente a finitude de ser mortal, mas algo que está relacionado com isso. A impossibilidade de consolo deriva de eu me sentir sempre e já como órfão de mim próprio. A morte não é apenas o fim de um processo biológico ou do prazer de viver. Põem fim ao processo de recriação e invenção contínuas que faço de mim, no qual eu sou pai de mim mesmo, pois vou-me moldando sempre e sempre e, por esse acto poético, sendo continuamente outro. A impossibilidade de consolação nasce, deste modo, de eu saber a priori que o meu trabalho poético de auto-construção está destinado a ter um fim, a ser eternamente incompleto. O que me traz um desconsolo impossível de superar não é o desaparecimento previsível deste eu finito que sou, mas a impossibilidade de criar todos os eus que ainda não fui nem jamais virei a ser e que, no entanto, pressinto que na eternidade seriam possíveis.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Impressões (IX) - pede-se demasiado à vida

Pere Ysern Alié - Esbozo del cuadro La Bohemia (1901)

ix.pede-se demasiado à vida

pede-se demasiado à vida
a perfeição de um lugar
a sombra e o sol
o amor eterno
a luz de uma saudade

e ela oferece-nos
o banco de jardim
onde se desvanece
no fluir das estações
a face de quem passa
e a dor dos que esperam

(11/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O princípio de esperança

José Bellosillo - Esperanza (1982)

Tenho na memória uma citação avulsa de uma frase de Hegel ou atribuída a Hegel. Não consigo agora situá-la já no contexto da obra do filósofo alemão. A frase diz o seguinte: quando a Ideia muda a realidade não resiste. Não me vou prender à hermenêutica dos conceitos aqui usados. Prefiro olhar para a frase como um princípio de esperança. Toda esta conversa vem a propósito da tomada de posição de Wolfgang Münchau, um colunista conservador do Finantial Times. Apesar de conservador, Wolfgang Münchau reconhece que sobre o problema das dívidas soberanas quem tem razão é a esquerda radical. Diz mesmo que quem defenda que a Europa precisa de mais investimento público e de reestruturar a dívida deve votar em partidos como o Die Linke (Alemanha), Syriza (Grécia) e Podemos (Espanha). O que significará, digo eu, que em Portugal deverá votar no Bloco de Esquerda ou no Partido Comunista. 

Münchau refere que é uma tragédia que os partidos da Internacional Socialista, mal cheguem ao poder, se tornem respeitáveis. O que significará esta respeitabilidade? Significa alinhamento pelas posições neo-liberais e anti-keynesianas. O interessante, porém, reside no facto de os partidos daquilo a que chamamos esquerda radical serem, na verdade, partidos social-democratas, muito mais keynesianos do que marxistas. A esperança não reside neste apelo atípico ao voto nessa esquerda radical, mas no facto da ideia neoliberal estar a estilhaçar-se e a reemergir uma nova forma de conceber o papel do estado e da economia na sociedade. Essa nova forma não está apenas presente nessa esquerda radical, mas em amplos sectores da sociedade, assim como em parte importante da Igreja Católica, onde o actual Papa tem insistido (na visita de hoje ao Parlamento Europeu, em Estrasburgo, voltou a insistir) na necessidade de alterar as políticas económicas, de forma a defender a sacralidade da pessoa. Lentamente, a visão do mundo ultra-liberal mostra-se na sua negatividade e uma nova visão pode - digo pode e não mais do que isso - erguer-se, de forma que a actual e triste realidade não resista.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O caso Sócrates e o decoro

J. G. Platzer - La venganza de Sansón

Talvez devesse falar da detenção de Sócrates e daquilo que se diz. Não gosto – e é dizer pouco – do personagem e não vou especular sobre um assunto, o dos eventuais crimes, que não é do meu foro. Só espero que, se ele for inocente, a justiça o reconheça e se penitencie do espectáculo que proporcionou. Se for culpado, que o puna segundo a lei. Espero mesmo, em caso de culpa, que a justiça seja mais misericordiosa do que Sócrates (com o aplauso de muitos que agora vitoriam a sua situação) o foi com mais de uma centena de milhares de professores, onde me incluo, a quem ele humilhou, maltratou, prejudicou e usou como bode expiatório de uma situação social e económica fruto dos devaneios, para não dizer outra coisa, dos políticos. Não canto vitória nem abri uma garrafa de champanhe pela sua detenção, como não o fiz aquando da recente condenação de Maria de Lurdes Rodrigues, sua cúmplice política no ataque aos professores. Em cada um de nós deve haver um sentido de decoro para com a infelicidade alheia, mesmo se ela é fruto das sua opções, dos seus delírios e dos seus eventuais crimes, mesmo se aquele a quem a infelicidade tocou nos é repugnante. Não devemos deixar que o mal e a humilhação que sentimos nos corroa a alma. Acredito que todos os homens, na intimidade da sua consciência, sabem distinguir o bem e o mal, mesmo quando mascaram este como se fosse um bem, e todos sabem que sentir felicidade pela desgraça alheia é, eticamente, tão reprovável como provocar a infelicidade dos outros. Foi isto que me foi ensinado e ainda não encontrei razão alguma para alterar a crença nesse ensinamento. A justiça não é o lugar da vingança, nem deve servir de consolação subjectiva aos que clamam vingança.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Da imoralidade dos costumes

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Depois do trambolhão do reino Espírito Santo, pouca coisa mais merecerá o nome de escândalo. A pequena história dos vistos gold é um escandalozinho de vão de escada, coisa de funcionários, perante a sucessiva queda de bancos e banqueiros, gente idolatrada pelo poder e reverenciada pela comunicação social. É evidente que a entrada na União Europeia e a chegada de muito dinheiro criou uma cultura facilitadora destes comportamentos. A coisa mais fácil – mas também a mais inútil – que o país pode fazer é ver nestes episódios apenas um trágico e continuado conluio entre o dinheiro e a política. É não perceber onde está a raiz da questão.

A revista do Público de domingo passado trazia um trabalho, O Estado da Meritocracia em Portugal, que merece ser lido, pois ajuda-nos a compreender o chão de onde brotam os grandes problemas que afligem a sociedade portuguesa. O artigo só espantará os muito distraídos. O mais interessante é que torna evidente que não existe diferença de comportamento entre as instituições públicas e as empresas privadas. Mostra que o mérito dos indivíduos não é premiado em Portugal. Mesmo nas empresas privadas vale mais um incompetente com uma boa cunha do que alguém de qualidade, mas sem pedigree. A questão é mesmo mais grave. Ser competente pode ser um risco para a carreira de uma pessoa. Em geral, embora existam excepções, nas instituições públicas ou nas empresas privadas, a incompetência promove-se e é promovida. Esta cultura, velha de séculos, explica muito bem o nosso atraso. Mas explica mais do que isso.


Explica as teias de cumplicidade que brotam nos lugares de decisão, nos lugares onde o dinheiro aflui, nos lugares onde o país escreve o seu destino. Este jogo de famílias que se conhecem desde há muito é o território ideal para que pequenos, médios e grandes escândalos financeiros surjam. A cumplicidade – que a expressão popular uma mão lava a outra tão bem traduz – faz nascer um poderoso sentimento de impunidade. Nos lugares de topo, as pessoas conhecem-se, devem-se favores mutuamente, uma mão lava a outra, e tudo parece fácil e, mais do que isso, parece ser um direito adquirido, fundado em antigas alianças, treinadas a comprar a cumplicidade da política e o silêncio da justiça. Toda a nossa sociedade está organizada de forma a que o mérito singular seja punido e um certo tipo de crime seja não apenas permitido como admirado. Portugal é, como diz o Público, uma república da cunha, do nepotismo e do amiguismo. Depois, admiram-se da imoralidade dos costumes em vigor na pátria.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O fascínio do mal


A notícia do Público refere a presença, entre os carrascos do Estado Islâmico, de um jovem luso-descendente. Há outros ocidentais, mas a fotografia possui mais do que um mero valor noticioso. Ela mostra a natureza dos homens e aquilo que são capazes de fazer em nome da ideologia (seja política, religiosa ou outra). Se o século XX teimou em desmentir a ideia de progresso moral da humanidade, o século XXI continua, com afinco, esse desmentido. Podemos perguntar sempre o que leva um jovem ocidental a abraçar causas que lhe são estranhas. Haverá respostas de índole psicológica, sociológica ou mesmo política. Mas há uma pergunta mais fundamental, aquela que nos envia para o mysterium iniquitatis: porquê este fascínio pelo mal? Olho para esta fotografia e é a única coisa que me ocorre, o mistério do fascínio que o mal exerce na alma dos homens.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A tortura mais insuportável

Hyacinthe Rigaud - Portrait of Jacques-Bénigne Bossuet (1702)

Terão alguma vez os tiranos inventado torturas mais insuportáveis que aquelas que os prazeres fazem sofrer aos que se abandonam a eles? Eles trouxeram ao mundo males desconhecido ao género humano, e os médicos ensinam, a partir de uma perspectiva comum, que estas funestas complicações de sintomas e de doenças que desconcertam a sua arte, confundem as suas experiências, desmentem tantas vezes os antigos aforismas, têm a sua origem nos prazeres. [J-B Bossuet, Sermon contre l'amour des plaisirs, I.º point]

Eis o progresso. Desde a condenação do prazer visto como tortura, devido à insuportabilidade de um desejo nunca saciado, até aos actuais programas políticos da educação para o prazer vão cerca de três séculos. A grande diferença, curiosamente, é que Bossuet sermoneava desta forma perante Luís XIV e a sua corte, como forma de tornar os poderosos mais contidos, enquanto hoje é o poder político que evangeliza a população para o culto do prazer. Restará, contudo, fazer esta estranha pergunta: o que ganham as elites políticas com esta evangelização? O que pretendem elas? Bossuet diria que pretendem abrir uma espécie de caixa de Pandora e disseminar os males pelo mundo, ao mesmo tempo que submetem as populações à tortura mais insuportável, a do desejo nunca saciado (curiosamente, não é este desejo que funda a sociedade de consumo?). Mas Bossuet não passava de um teórico do absolutismo, adversário da democracia. (averomundo, 15/11/2009)

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Ágil, agilizar, agilidade

Goerge Seurat - The Circus (1891)

Há palavras que valem não mil mas milhões de imagens. Por falar em imagens, imaginemos o verbo agilizar. Toda a gente sabe que agilizar é a acção, um verbo denota uma acção, de tornar ágil, de tornar mais rápido. Toda a nossa vida social - a pobre vida dos portugueses - tem na sua essência, apesar da resistência dos indígenas, a dinâmica da agilização. Por exemplo, o senhor Manuel Palos, director do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) confessou ao juiz Carlos Alexandre que tinha recebido instruções políticas para agilizar a concessão de alguns vistos "gold". Esta agilização, que parece ter aborrecido as autoridades judiciais, é inerente aos tempos modernos, nos quais tudo deve ser rápido, veloz, ágil, mesmo que não seja gracioso. Aquilo que me prende a atenção, porém, não é este triste caso que levou à detenção de onze pessoas, umas suspeitas de agilizar e outras de serem demasiado ágeis. Este caso é apenas um sinal, talvez um símbolo, da natureza do país que somos.

Para dizer a verdade, Portugal - refiro-me às instituições portuguesas - sempre se deu mal com a estapafúrdia modernidade, cheia de iniciativas, progressos, velocidades roncantes e outras arbitrariedades que nos desconfortam. Os portugueses sentiram e sentem que tudo isso lhes viola o sagrado direito a estarem descansados e poderem repousar, enquanto o tempo passa e a morte não chega. O problema é que Portugal não é a ilha de Ogígia, e os portugueses são obrigados a conviver com os amantes da modernidade e do mundo supersónico. E aqui está o imbróglio. As elites políticas, por certo porta-vozes esclarecidas do sentir popular, desenham instituições pesadas, de passo lento, pachorrentas, instituições que abominam a velocidade e execram a agilidade. Ao mesmo tempo, porém, essas elites pesadonas e conservadoras querem, no estrangeiro, parecer modernas, ágeis, velozes.

E é desta estranha contradição que o país vive. Meio mundo anda a agilizar a outra metade, num desespero surdo de parecer moderno e tornar ágil aquilo que é pesado e foi desenhado para ser muito pesado. Num país como o nosso, onde o calor rouba parte apreciável da nossa energia, metade daquela que resta serve para criar instituições mais lentas que uma tartaruga, a outra metade serve para os exercícios de agilização. O que não percebo é porque estas pessoas são agora perseguidas pela justiça, se não fizeram nada que fosse estranho à cultura instalada. Se as coisas são pesadas e lentas, então não há que agilizá-las? Não é isto que nos fará ser modernos e trazer para a nossa pequena pátria aqueles grandes homens e mulheres dotados de agilidade e que hão-de ser o modelo para as acrobacias dos nossos netos? Por amor da Santa, digam-me lá onde está o crime?

Impressões (viii) - agora tudo se apaga

Francis Picabia - Amanecer en la bruma, Montiguy

viii. agora tudo se apaga

agora tudo se apaga
no frio da manhã

as folhas trazidas pela noite
o vestígio do amor

a desolação
com que despediste
o teu do meu coração

(10/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

domingo, 16 de novembro de 2014

Diário da paixão

Raymond Pettibon - Religión, love, ambition... (1997)

É como a febre, pensou. Aumenta conforme o dia vai passando. Ao levantar, a luz da razão espraia-se sobre o mundo e tudo parece claro e distinto. As paixões, essas secretas inclinações da alma, são vistas à transparência, e a doença que nelas se inscreve é compreendida como doença. Como é possível, perguntou-se, não ver aquilo que é tão visível? Quantos impossíveis se inscrevem naquela patologia? Uma fogueira de vaidades, pensa, alimenta o fogo passional, aviva-o e, mesmo perante o dissabor, ilumina-o e dá-lhe brilho. Mas a luz da manhã, essa fria luz fotográfica, a tudo dissipa, a tudo mostra na crueza com que a verdade desce sobre os homens. Vai ser diferente, agora, promete. E como num sistema hidráulico, a visão da razão comunica-se à vontade e esta prepara-se já para ser a justiceira que matará o dragão e curará a alma. A manhã, porém, passa rápido e a luz toma outra temperatura. Os olhos da razão começam a tremer, a vontade vacila, e todas as certezas que o novo dia trouxera desfocam-se. É uma lenta desfocagem, considerou de si para si. Uma pequena incerteza paira sobre o mundo, sombreia a pureza matinal da luz. A dúvida macula agora o coração. E as inúteis e perversas paixões agarram-se à alma, sussurram-lhe a pertença, insinuam a inelutável necessidade. Ao meio-dia tudo se incendeia sob a inclemência do sol e a razão retira-se, abandonando a alma à luz da tarde, a uma luz quente, destituída, no seu esplendor, de todo a sobriedade. As paixões uivam dentro da alma e a vontade, a que nenhuma graça auxilia, cede ao peso do dia. Quando a noite chega, o corpo febril arde sob a severidade do desejo e um estranho sentimento entrega-o à desolação da falta.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Tempos interessantes


Um provérbio chinês, talvez uma maldição, diz que, se não gostarmos de alguém, devemos desejar-lhe que viva tempos interessantes. Para o povo chinês, que possui o taoismo como cultura de fundo, tem todo o sentido este desejo. A vida boa e digna é aquela que repousa na estabilidade das instituições, na tranquilidade da vida social, na serenidade com que os indivíduos guiam a sua existência. Ora, tendo em  conta estes padrões, podemos dizer que alguém não gosta mesmo nada de nós. Temos a infelicidade de viver tempos interessantes, demasiado interessantes.

O referendo na Catalunha, a atenção com que foi seguido, por exemplo, em Itália, a desagregação da Ucrânia e a guerra civil que por lá vai lavrando, a afirmação da Rússia e da China como potências fundamentais, os acontecimentos no Iraque e na Síria, a ebulição do mundo islâmico e a ameaça que isso representa, a actual situação na Igreja Católica, a qual parece estar a acordar forças – para o bem e para o mal – que ninguém suspeitava vivas, as transformações económicas do mundo, os graves problemas ambientais provocados pelo homem, os desenvolvimentos científicos e tecnológicos, todo este conjunto de coisas é um sinal, terrível sinal, de que estamos a viver tempos interessantes.

Contudo, no que se está a passar, há uma novidade relativamente ao que é suposto no provérbio chinês. Neste, os tempos interessantes são sentidos como uma excepção dos tempos estáveis e tranquilos onde a vida vale a pena ser vivida. O que se sente, nos dias de hoje, é que, daqui para o futuro, todos os tempos serão tempos interessantes, cada vez mais interessantes. Isto é, serão cada vez mais propícios à generalizada infelicidade dos homens, como se estes tivessem perdido definitivamente o rumo e o bom senso tivesse desaparecido.

Talvez esta sensação já tivesse sido vivida noutras épocas, as quais serviram de charneira entre um mundo que morria e outro que começava. Se olharmos, porém, com atenção para aquilo que poderia ser a emergência de um mundo novo, de um mundo que viesse trazer uma nova estabilidade e que pusesse fim à crescente intranquilidade do presente, se olharmos com atenção, repito, descobrimos qualquer coisa de monstruoso. Tudo o que emerge como novo torna-se, quase imediatamente, obsoleto e substituível por outra novidade que se vai esgotar ainda mais rapidamente. E isto não se passa apenas ao nível dos dispositivos tecnológicos. Passa-se em tudo, como se o mundo dos homens trouxesse agora dentro de si um irreprimível desejo de fim. Sim, são tempos interessantes os nossos. Demasiado interessantes.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O rio e a história

Kazimir Malevich - River in the Forest (1908 ou 1928)

Na torrente de montanha que corre para o vale, o jovem Goethe via uma juventude fresca e impetuosa, que se precipitava na planície tornando a terra fecunda. Na época do Sturm und Drang, das esperanças pré-revolucionárias, o rio era o símbolo do génio, da energia vital e criadora de progresso; no tomo quinto da Encyclopédie, o «enthousiasme» é comparado com um regato ténue que cresce, flui, serpeia, se torna cada vez maior e mais potente e por fim se lança no oceano, «depois de ter feito ricas e fecundas as terras felizes que banhou». Mas algumas décadas mais tarde, Grillparzer, o poeta da Áustria oitocentista, em versos de tom completamente diverso sonhava deter o fluir de um regato, via-o crescer mas também perder-se na história, deixar a pequena mas harmoniosa paz da sua infância límpida e tranquila, agitar-se e confundir-se até se diluir no mar, no nada. [Cláudio Magris, Danúbio, p.32]

De Goethe a Grillparzer há um sentimento comum. O rio é a metáfora fundamental para falar da História, desse enigma do passar do tempo e da passagem, com ele, das coisas e instituições. Se em Goethe a História é fecunda, se no Romantismo se incensa a impetuosidade do rio que corre, se se admira o progresso, se se olha benevolentemente, com a Enciclopédia, o «entusiasmo», com Grillparzer é uma outra e antagónica realidade que emerge. A História é a mãe do niilismo, o rio que flui apenas corre para o nada. Por isso, Grillparzer está longe de afectar entusiasmo, aquele entusiasmo que certamente vem do Iluminismo, com o devir histórico. Sonhava antes um sonho impossível, sonhava deter o fluir do regato. Curiosamente, a crítica ao entusiasmo nasce dentro da própria Filosofia iluminista, dentro do pensamento do progresso, nasce em Kant. Talvez Kant tenha pressentido, na libertação do Homem da menoridade de que ele próprio é culpado, o programa do Iluminismo, uma sombra ameaçadora. Ele viu-a no entusiasmo que se apossou dos actores da Revolução Francesa. Aquilo que ele não viu, ofuscado ainda pela ideia do progresso moral da humanidade, foi mais tarde entrevisto por Nietzsche, no conceito de niilismo. Podemos, assim, formular mais claramente aquilo que dá que pensar. Todo o progresso é um progresso em direcção ao nada. O rio nasce e progride até deixar de ser rio. O progresso tornou-se a ilusão mais persistente da modernidade, uma espécie de justificação do devir da História, como se ela precisasse de uma justificação do seu acontecer, como se o devir nunca fosse inocente. O progresso é a expressão de uma razão culpada. (averomundo, 26/10/2009)

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Em Santa Maria

Sobre autor não identificado - Antiga Igreja de Santa Maria do Castelo

Há um momento em que se descobre que é demasiado tarde. Onde está a maldita fronteira que separa o remediável do irremediável? Durante anos, meditei sobre esse momento em que a qualidade das coisas muda e tudo segue um outro e irremediável caminho. O que aprendi, pergunto-me, dessa estranha meditação? Quando naquele dia entrei pelo portão de ferro, ouvi o ranger das folhas secas sob o peso do meu corpo. Restos de caixotes pelo chão, pilhas de tijolos ao abandono, ervas que cresciam sob o reino da incúria. A porta, a velha porta de madeira, rangeu. Ao abrir-se, deixou ver uma sombra, um leve vulto, as paredes salitradas, o chão carcomido. Um vulto, pensei, não sem inquietação. Quem será? Um anjo, um homem, um animal perdido? Avancei com cuidado na sombria nave. Sentia um olhar frio sobre mim, quase o podia tocar. A penumbra mal era rasgada pela luz que entrava pelas frestas. Se parava, ouvia o voo dos pássaros sob o tecto em ruínas. Quando olho para o lugar onde estivera, durante séculos, o altar, um requiem desaba sobre mim. O Dies irae ressoava na minha impenitência e um arfar confundia-se com a respiração que saía de mim em torvelinho. Olho em frente. O vulto lá está, volta-se, lentamente, e eu oiço Dies iræ, dies illa, e vejo-o a mover-se como se tivesse um corpo – solvet sæclum in favilla –, um corpo feito de névoa e vazio – teste David cum Sibylla –, um corpo de cinza e sangue – quantus tremor est futurus. E eu tremo no silêncio da Igreja que agora se desfaz – quando judex est venturus –, na sentença abominável que se abre diante de mim - cuncta stricte discussurus! – e me mostra a minha face no vulto que se dissolve entre os escombros que me arrastam para o abismo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Alienação e autenticidade

Paula Rego - Mulher Cão (1994)

A proclamação da autenticidade individual transforma-se numa pose de parvenu quando falamos contra a massa, esquecendo que dela fazemos parte. A retórica do enraizamento e do autêntico exprime por outro lado, embora de forma distorcida, uma exigência real, ou seja, a exigência de uma vida política e social não alienada, e denuncia a insuficiência do simples direito positivo, da mera legalidade formal que pode sancionar a injustiça, e à qual se contrapõe a legitimidade, quer dizer, um valor no qual possa assentar uma autoridade autêntica (Cláudio Magris, Danúbio). 

Percebo a crítica a Heidegger, compreendo a denúncia da pose de parvenu na proclamação da autenticidade do indivíduo. Compreendo inclusive a subjacente apologia de regimes não tirânicos. O que não compreendo, porém, é a ideia de uma vida política e social não alienada e o conceito de autoridade autêntica. Poderia afirmar, em contraponto a Magris, embora sem alinhar pelo diapasão heideggariano, que toda a vida política e social é alienada e toda a autoridade é não apenas inautêntica como ilegítima. Mas isso ainda seria ver a questão de uma forma superficial. A questão que se deve colocar é a seguinte: serão os conceitos de alienação e de autenticidade os mais indicados para falar da vida política e social e da autoridade? Não teremos que desfazer toda a malha conceptual que de Platão ao nossos dias, passando por Marx, Nietzsche, Foucault, construiu a rede onde tentámos apanhar o grande peixe da política? A rede de conceitos que o tempo teceu acabou por amenizar, ao racionalizar, o monstro e as monstruosidades que nele se ocultam. A verdade é que a política e a autoridade, a sua infatigável e nunca desmentida necessidade, é a confissão da nossa mais funda monstruosidade. Seremos algum dia capazes de olhar o monstro no fundo dos olhos? Ou tememos já que no fundo daqueles olhos seja o nosso rosto que iremos ver? (averomundo, 01/11/2009, revisto)

domingo, 9 de novembro de 2014

A queda do Muro de Berlim

Rafael Canogar - O Muro (1992)

Faz hoje 25 anos que o Muro de Berlim foi derrubado. Mas o dia 9 de Novembro de 1989 será, do ponto de vista da hermenêutica histórica, muito menos interessante que o dia 13 de Agosto de 1961. Nesse dia, a denominada República Democrática Alemã cortou as suas ligações com a Alemanha Federal e o Ocidente, começando então a construção do Muro de Berlim. Há 25 anos acabou um equívoco, mas os actos de 13 de Agosto de 1961 foram uma terrível confissão de fraqueza. Na verdade, o projecto comunista morreu nesse dia, morreu no momento em que reconheceu que não podia competir com o Ocidente e que, para evitar a deserção massiva dos seus cidadãos, tinha de se muralhar. 

Este acontecimento é, na verdade, muito mais importante do que o de 1989. Há 25 anos apenas se confirmou a derrocada completa de um projecto que, depois de prometer um homem novo, se deixara pura e simplesmente simbolizar por um Muro que dividia uma nação, uma cidade e muitas famílias. A queda do Muro de Berlim pouco nos diz sobre a bondade moral dos regimes ocidentais. Diz-nos apenas que eles eram mais fortes e atraentes do que os regimes comunistas do bloco de leste, diz-nos que, na época, eram preferíveis e que a generalidade dos cidadãos de leste ansiava por eles. A queda de há 25 anos nada nos diz sobre o mundo que veio depois daquela data. Na verdade, não foi mais do que o início das exéquias de um cadáver que estava por enterrar desde 1961. Não é pouco, mas não é tanto quanto se julga.

sábado, 8 de novembro de 2014

Impressões (vii) - há coisas que preferimos

Clara Southern - An Old Bee Farm (1900)

vii. há coisas que preferimos

há coisas que preferimos
não recordar

certas palavras
um amor recusado
o mundo que sonhámos
ser já passado

na clareira da memória
ergue-se um muro
e o vento bate
e bate
até que a pedra cai
e te abres

para tudo o que perdeste

(9/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Francisco e os fantasmas


O pontificado de Francisco tem conseguido acordar todos os fantasmas que, muito bem instalados, tinham tomado conta da Igreja Católica, e, cientes de um poder venerável, tinham adormecido, confiados numa imutabilidade que os justificava e elevava já à glória dos altares. Com o tempo, está-se a descobrir que esses fantasmas, devido ao sono pesado, têm um mau acordar. E eles estão a acordar muito irritados. O que tanto os irritará?

Certamente que a frugalidade e a ausência de fausto do estilo do Papa os apoquenta. Se o Sumo Pontífice não se entrega ao luxo e ao fausto religioso, o amor de alguns fantasmas por certo tipo de ostentação tem dificuldade em encontrar legitimação. Paramentos caríssimos, palácios episcopais, grandes carros, tudo isso começa a irritar a generalidade dos fiéis. Os fantasmas sentem-se desconfortáveis. Francisco tem tendência para viver de uma forma muito despojada, como se fosse pobre e não tivesse direito a ser no mundo mais do que um pobre pescador. Os fantasmas, porém, não sonham com as sandálias do pescador mas com o ceptro do imperador. Isto irrita os fantasmas, mas ainda suportariam isso se…

Se, por exemplo, o Papa não viesse com aqueles ideias estranhas de que a Igreja deve ser misericordiosa e tentar acolher, isto é, compreender com compaixão (o que significa partilhar a paixão, o sofrimento, o caminho) aqueles que pela sua orientação sexual ou pelas peripécias da vida ou do desejo viram as suas vidas desfeitas ou atormentadas. Os fantasmas têm uma certa costela farisaica e amam, acima de tudo, o formalismo da lei. Amam a divisão entre os puros (eles e os seus) e os impuros, os quais podem até contribuir para a festa litúrgica, desde que não participem dela. O maniqueísmo e o catarismo têm mil véus e os fantasmas, tão preocupados com o rigor da lei, não hesitam em prestar-lhes tributo. A misericórdia irrita e muito os fantasmas, mas ainda a suportariam se…

Se o Papa se limitasse a amar os pobres, e gostasse tanto deles que pretendesse multiplicá-los. Mas o pobre Bergoglio tem ideias estranhas. Acha que a doutrina social da Igreja é uma coisa para ser levada a sério e não apenas para enganar as pessoas. Julga que a Igreja deve ser pobre e servir os pobres, contribuindo para que estes o deixem de ser. Os fantasmas acham deplorável que a Igreja siga o exemplo de Cristo e que confronte os poderes do mundo, em vez de estar mancomunada com eles. E nada há de mais irritante para um fantasma que a separação do poder do mundo. Francisco bem precisa de se cuidar, pois não faltam assombrações à sua volta.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Os caminhos que se bifurcam

Milo Winter - A raposa e as uvas (1919)

Segundo a teoria de Everett, a cada instante que uma escolha é feita, seja pelo acaso, seja pela mente humana, o universo divide-se em dois: um para cada escolha possível. Em um universo, decidi casar. Em outro, comprar uma bicicleta. Ambos os universos existem simultaneamente. Everett desenvolveu uma robusta estrutura matemática para demonstrar que, ao menos em teoria, seria possível que a realidade fosse composta de inúmeros universos, todos existindo paralelamente, e cada um diferindo dos demais pelo somatório das escolhas realizadas por todos nós (e, na verdade, pelas escolhas também feitas pelo “acaso”). Em cada um desses universos, haveria versões de nós próprios, e cada versão seguiria um destino diferente (Victor Lisboa).

Cheguei a este texto a partir do título de uma ficção de Jorge Luís Borges, O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, o qual, como me acontece muitas vezes com múltiplas coisas e sem qualquer razão, penetrou na minha consciência e começou, de forma obsessiva, a martelar-me o pensamento. Estava a fazer alguma coisa ou pensar em certo assunto e lá me vinha à mente o jardim dos caminhos que se bifurcam. Li esse conto pela primeira vez há muitos anos. Tornei a lê-lo, mas mesmo esta releitura foi já há bastante tempo, de tal modo que a intriga entrou no reino do esquecimento, permanecendo apenas, agora de forma obsessiva, o título. Mais do que o título é a ideia de caminho que se bifurca que me parece atormentadora. Se sigo por um caminho no jardim e ele, a dado momento, se divide em dois caminhos desejáveis fico com um problema. Contrariamente ao que se pode pensar, o problema não está na dúvida ou hesitação em escolher um caminho e não outro. O problema reside no facto de não poder seguir nos dois caminhos ao mesmo tempo. Ter de escolher um caminho é optar por uma felicidade em detrimento de outra. A cisão dos caminhos é o princípio da infelicidade.

A teoria física de Everett acaba por representar não uma consolação mas uma duplicação do fardo da infelicidade. Se é matematicamente possível que eu esteja nos dois caminhos ao mesmo tempo, mas em universos paralelos, que se ignoram mutuamente, então isso significa que eu, devido à ignorância de mim no outro universo, sou duplamente infeliz. Sou-o neste, onde tomei a decisão de seguir pelo caminho da esquerda, perdendo o da direita, e sou-o no outro onde tomei a decisão de seguir pelo caminho da direita, perdendo o da esquerda. Quanto mais alternativas existirem, mais universos existirão onde eu estou presente, mas em todos eles a minha consciência será infeliz, motivada pela perda que sofre ao escolher em cada um deles. Imaginemos, porém, que eu acredito absolutamente na teoria de Everett e sei que, ao escolher o caminho da esquerda neste universo, terei escolhido o da direita no outro. Esta convicção servirá de consolo? Far-me-á menos infeliz? E é aqui que se torna patente os limites da razão para tornar os homens felizes. Eu creio racionalmente que estou ao mesmo tempo no caminho da esquerda e no caminho da direita, mas a verdade é que esse saber ainda torna mais lúgubre a minha situação. Agora não sofro apenas porque ao escolher eliminei uma experiência. Sofro também porque não tenho acesso à experiência que eu tenho no outro universo. Não perco apenas um caminho, perco-me também a mim próprio num universo que me é estranho.

Dito de outra maneira, a felicidade só seria possível se, apresentando-se duas ou mais alternativas desejáveis, eu pudesse realizá-las todas ao mesmo tempo, se eu conseguisse unificar todos os caminhos que se bifurcam diante de mim. É verdade que, em vez de devanear com universos paralelos ou de querer tudo ao mesmo tempo, posso sempre pensar que a verdadeira felicidade está na humildade de aceitar a condição humana e, concomitantemente, aceitar que uns desejos têm de ser frustrados para que outros se realizem. Na verdade, apenas estou a comportar-me como a raposa da fábula atribuída a Esopo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Impressões (vi) - a incúria a que tudo chegou

Ignacio Zuloaga y Zabaleta - Calle de una vieja ciudad castellana

vi. a incúria a que tudo chegou

a incúria a que tudo chegou

para quê recordar
folhas de seda
ou promessas de âmbar
que um dia fizeste

primeiro um deslizar de terras
depois o vento soprou
e no coração abriu-se
uma cratera
onde se apagaram
os lírios que plantaste

(8/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A levitação da senhora Merkel

Manuel Quejido - 24 Levitaciones (1972-3)

Interrogo-me como pode a senhora Merkel ter tanta capacidade para levitar sobre a realidade. Falo da realidade do Sul, não da sua. Descobriu agora que países como Portugal ou a Espanha têm licenciados a mais (ver aqui e aqui). Quando proferiu isto, a senhora que nos governa por interpostas pessoas, deveria estar em levitação. E levitava de tal maneira e ia já tão alto que confundiu os números. Na população entre os 15 e os 64 anos, a percentagem de licenciados na União Europeia é de 25,3% e na Alemanha - aquele país que se entregou nos braços da senhora Merkel - é de 25,1%. Ao ler a opinião da grande timoneira, imaginei logo que Portugal deveria ir a caminho dos 50% de licenciados, tudo gente a estudar à conta dos contribuintes alemães. Eis senão quando sou confrontado com a realidade. 

O excesso dos nossos licenciados significa que para a mesma população (entre 15 e 64 anos) nós, pobres portugueses, temos 17,6% de licenciados. É o que dá a senhora Merkel dedicar-se a disciplinas místicas e esotéricas. Troca os números. Mas, dir-me-á compungido o leitor, a senhora Merkel não é dada a aventuras paranormais e nunca terá lido Santa Teresa de Ávila. E eu, perplexo, caio em mim e começo a pensar que a senhora Merkel acha que a gentes do Sul não têm direito a fazer cursos superiores. E se digo isto não é só porque os diligentes alemães têm uma percentagem de licenciados bastante superior aos preguiçosos dos portugueses. Digo-o porque a política europeia, inspirada pela senhora Merkel tal como a acção do Papa o é pelo Espírito Santo, está a conduzir muitos jovens portugueses para fora das universidades por falta de dinheiro (isso mesmo, pobreza das famílias e custos exorbitantes do ensino superior), enquanto a Alemanha achou por bem abolir as propinas nas suas universidades. Se isto não é levitação sobre a realidade daqueles povos feios, porcos e maus que habitam a península ibérica, é o quê?

domingo, 2 de novembro de 2014

As garras do niilismo

Julio Gómez Biedma - Poder

Vale a pena consultar no Público o conjunto de casos que resultam de um aparentemente estranho mecanismo de resolução de conflitos entre Estados e investidores. Esse mecanismo é conhecido pela sigla ISDS e visa a resolução privada (sic) de conflitos entre investidores e Estados. Nem vou comentar a triste - e parece que de vanguarda (sic) - posição portuguesa, a cargo dessa nova luminária que dá pelo nome de Bruno Maçães. Quero só chamar a atenção que este mecanismo é mais um passo na destruição da tradição política que herdámos dos gregos. Na verdade, desde o século XVII, com a denominada Gloriosa Revolução, em Inglaterra, que se assiste, por vezes com recuos, a uma destruição contínua dos mecanismos políticos que representam e defendem as comunidades humanas. A Gloriosa Revolução redefiniu o papel do Estado. Este papel já não é defender e representar a comunidade mas promover o lucro dos privados. O lucro dos privados é defendido, e a História inglesa é uma testemunha central, contra os interesses da própria comunidade. A ISDS é mais um passo na estratégia global de destituição das populações de qualquer poder perante a força das multinacionais e dos interesses privados de um número muito reduzido de seres humanos. Nem vale a pena verberar a acção das elites políticas governamentais. Há muito que não querem representar as suas comunidades. São apenas agentes de interesses privados. Coisa já sobejamente conhecida no século XIX. A ISDS é mais um passo na dominação que as garras do niilismo estendem sobre o mundo ocidental. Quando tudo estiver reduzido à mera multiplicação do dinheiro talvez surja a esperança de que o mal se torne insuportável e de que, dos escombros deste mundo, nasça um mundo normal e razoável, habitável pelos seres humanos.

sábado, 1 de novembro de 2014

Do fundamento do amor

Roberto Matta - Le Vertige d'Eros (1944)

On croit qu’au fond de l’amour, il y a un désir physique. C’est faux. Il y a un roman que nous connaissons déjà et dont nous aspirons vainement à modifier le dénouement.
(Roland Jaccard, Sugar Babies)

A frase de Roland Jaccard não deixa de ser surpreendente. Ela substitui, como fundamento do amor, a busca homeostática de equilíbrio inerente ao desejo físico pela ideia de que o amor assenta num romance que todos já conhecemos e do qual aspiramos, em vão, modificar o desenlace. De facto, toda a narrativa é uma forma de ordenação do heteróclito da experiência sob as categorias gramaticais, semânticas e estilísticas que dela fazem parte. O que acho surpreendente não é tanto a afirmação feita, mas o facto dela ser uma confissão implícita da deserotização que atinge as sociedades ocidentais, deserotização essa concomitante com a presença cada vez mais ostensiva da sexualidade crua na esfera pública.

A esfera pública, pela sua natureza comunicativa, exige a narrativa, e o amor, agora tomado de assalto pela publicidade (no sentido kantiano do termo), só encontra a sua razão de ser numa narrativa de carácter iterativo e romanesco. É sempre a mesma história, uma história que todos conhecemos, cujo desenlace nos desagrada, mas que, devido à nossa impotência (e aqui não será descabido falar de impotência sexual), é impossível de modificar. A confissão da deserotização do mundo feita por Jaccard não reside, porém, apenas na consideração do fundamento do amor como narrativa. A alternativa, para fundamento do amor, entre desejo físico e narrativa é já ela indiciadora dessa deserotização, indiciadora de que uma experiência mais profunda do amor se desvaneceu, mesmo enquanto mera ideia reguladora.

Tanto ao nível do desejo físico como da narrativa, encontramo-nos na esfera apolínea da ordem. A alternativa proposta por Jaccard inscreve-se num conflito, talvez aparente, entre a ordem biológica, dada na busca do equilíbrio homeostático, e a ordem cultural, dada na linguagem e na submissão às suas categorias. Para além da esfera apolínea do equilíbrio, a qual faz todo o sentido na esfera pública e política, podemos ainda pensar numa esfera dionisíaca, a qual emergirá da tensão que percorre Eros, esse filho da abundância e da carência. O fundamento do amor não será tanto o equilíbrio – aquele que se busca pela satisfação do desejo físico ou pela vivência iterativa de uma narrativa – mas o desequilíbrio dado pelo excesso presente tanto na abundância como na falta presentes em Eros. E é este fundamento que a frase de Roland Jaccard já não reconhece, e neste não reconhecimento está toda história de uma sexualidade cada vez mais crua e menos erótica.