sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A justa medida


Contrariamente ao prognóstico que aqui fiz há três semanas, o Syriza ganhou as eleições gregas. Contudo a minha leitura da realidade política, feita na semana passada a propósito do apoio da direita radical francesa ao Syriza, recebeu uma significativa confirmação. O Syriza coligou-se com um partido da direita radical. De facto, vivemos novos tempos e a velha divisão direita – esquerda já não é suficiente, embora ainda seja necessária, para explicar a vida política em que estamos mergulhados.

Exige-se dos políticos abertura de espírito e capacidade acrescida para evitar uma catástrofe. Há que evitar tentações extremas e abrir um caminho frutuoso para que a Grécia, e os países que foram atirados para resgate, possam encontrar uma senda de esperança. A principal tentação da União Europeia, dirigida pela direita liberal, poderá ser a de usar a Grécia como vacina. Torná-la um exemplo de como é catastrófico escolher lideranças radicais. Contudo, as consequências dessa estratégia estão longe de ser claras. Um falhanço do novo governo, devido às imposições extremadas da União Europeia e do FMI, pode conduzir não ao retorno a um governo centrista e subserviente à senhora Merkel mas a algo bem mais desagradável. Uma guerra civil é um cenário que pode estar longe de ser delirante. E a Grécia está situada numa zona demasiado sensível para se poder brincar às experiências, embora experiências idiotas, por parte da União Europeia, se tenham visto na Ucrânia e na Síria.

O sensato seria encontrar caminhos de compromisso sem que ambas as partes perdessem a face. Esta pode – sublinho pode – ser uma oportunidade para a Grécia cortar com um conjunto de vícios ligados à corrupção e à relação enviesada e muitas vezes oportunista dos cidadãos com o Estado. Pode também ser uma ocasião para a União Europeia corrigir os erros políticos colossais que cometeu, com a cumplicidade dos governos nacionais, na gestão do problema das dívidas soberanas dos países do sul da Europa. Este será o melhor cenário, mas não sei se a frivolidade, a ignorância, os interesses instalados não nos encaminharão para um buraco negro, do qual nada sabemos. Nos tempos complexos e obscuros em que vivemos, em sociedades marcadas pela imprevisibilidade e pela fluidez, no momento em que as categorias políticas tradicionais se encontram em farrapos, é aconselhável assumir a virtude socrática da douta ignorância. Há que reconhecer que do futuro nada sabemos e que o mais sensato é procurar o compromisso e a justa medida. Coisa que a antiga Grécia ensinou mas que a nova Europa ainda não aprendeu.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O romance e a expulsão do paraíso

Washington Barcala - Adán y Eva (1974)

Em tempos escrevi um texto sobre a ligação entre o romance, e a arte em geral, com a vida dentro da caverna platónica (ver aqui). Necessidade e ilusão, contrapostos à liberdade e à verdade, são os ingredientes da vida dentro da caverna. Por isso mesmo, são a substância da intriga romanesca. Esta intuição, contudo, foi sempre acompanhada por uma outra, sobre a qual fui adiando a escrita. O ano de 2015, no campo das minhas leituras, abriu com três romances de Michel Houellebecq e dois (enfim, estou a meio do segundo) de Karl Ove Knausgård. Estas leituras remeteram-me mais uma vez para essa outra intuição.

Há uns dias li uma entrevista de Houellebecq, na qual se afirmava que não se fazia literatura com bons sentimentos. Isto é, o que está em jogo não é a vida feliz – se é que a há – mas o sofrimento de se estar na existência. E é aqui que entra a tal intuição que complementa a da caverna platónica. Só há literatura devido à Queda, à expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden. O romance – e com ele a arte em geral – não fala de outra coisa se não desse homem sofredor que vive em errância fora do paraíso.

Sofrimento e errância enviam-nos de imediato, e para fugir ao universo judaico-cristão, para o destino de Ulisses. Da vida de Ulisses, depois de retornado à pátria, com Penélope não há literatura possível, mas da sua errância, do seu desejo frustrado, da sua dor e da sua vingança – o sofrimento dos pretendentes – há a Odisseia. Este caso exemplar mostra-nos a necessidade de complementar os ingredientes que compõem a intriga romanesca. Não bastam as dimensões da necessidade e da ilusão para que haja romance. É preciso que elas se entrelacem com a errância – na linguagem cristã, a errância é o pecado – e o sofrimento.

Não será excesso de imaginação dizer que o romance só é possível porque a humanidade foi expulsa do paraíso? Não se estará a contaminar a arte com crenças provenientes de uma esfera que lhe é exterior, a religião? Aparentemente, sim. Na realidade, não. O Génesis bíblico não é apenas o livro inaugural de várias crenças religiosas. É também um exercício literário que inaugura e determina o campo da literatura ocidental, dando-lhe dois temas – os do sofrimento e da errância – que não podem deixar de obsidiar aqueles que escrevem. Se toda a literatura pode ser vista com uma intriga dentro da caverna platónica ou fora do Jardim do Éden, então é natural que nem a verdade, nem a liberdade, nem a felicidade, nem a reconciliação possam ser os seus temas fundamentais. Fora do paraíso ou dentro da caverna a vida presta-se pouco aos eflúvios dos bons sentimentos. 

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Um pensamento feliz

Francisco Bores - Felicidad (1955-58)

Li há pouco a estranha expressão “era um homem de pensamento feliz” e fiquei tomado por uma perplexidade tal que suspendi a leitura. O que naquela frase poderia causar-me tão grande perplexidade? Nunca me tinha ocorrido fundir pensamento e felicidade. Talvez o autor estivesse a usar uma expressão figurada e quisesse apenas dizer que se estava perante alguém cujo pensamento é oportuno, que possui perspicácia ao analisar uma situação ou ao propor uma solução. Alguém que pensa bem, em suma. Isso, porém, seria substituir uma avaliação técnica por um estado de alma pouco adequado à retórica da avaliação. O que me causa perplexidade é, de facto, essa conjugação entre pensamento e felicidade, a substituição da verdade enquanto virtude do pensamento pela felicidade.

Talvez hoje em dia exista um mercado para esse tipo de coisas, para um pensamento feliz ou para uma filosofia que promete felicidade, que vende bem-estar pela deglutição de algumas teorias filosóficas, devidamente expurgadas da malevolência que existe em todo o pensar. Tudo isto, contudo, é uma falsificação. Pensar é já uma confissão, a confissão de que se abandonou a busca da felicidade, para enfrentar o terrível que se esconde e que deve vir até nós sob o nome da verdade. Por que motivo a verdade que o pensamento nos revela sobre o mundo nos deveria fazer felizes? Não encontro qualquer motivo. Talvez a razão maior da minha perplexidade nasça de uma antiga convicção que nunca consegui abandonar: se deixasse de pensar conseguiria abrir a porta da felicidade.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Impressões (XVIII) - nada se abre ao olhar

Paul Cezanne - View of Auvers-sur-Oise (1873)

xviii. nada se abre ao olhar

nada se abre ao olhar
nesse lugar tragado pela cor
perdido na luz
que arde ao amanhecer

o desejo mais frágil
seria ainda excesso e mágoa

resta-me o sopro do vento
que rasga o peito
e semeia os campos
onde pastoreio a solidão

(21/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Um lugar perigoso

Martial Raysse - Moïra (1977)

Há qualquer coisa de repugnante no alarido que envolve o resultado das eleições gregas. Considere-se, por exemplo, as reacções no nosso país. Seja o esgar de esperança da esquerda, seja o odioso paternalismo das declarações da direita, com especial destaque para as de Passos Coelho, a verdade é que essas reacções não passam de mais uma manifestação dos mecanismos do condicionamento pavloviano. Puro reflexo condicionado. Este alarido diz-nos muito sobre o passado e nada nos diz do que temos pela frente.

O problema é que hoje já não vivemos no tempo em que a esquerda e a direita dividiam simetricamente o universo político para conforto dos eleitores e segurança dos capitais e dos empregos. A vitória do Syriza e a aliança governamental entre a esquerda radical e a direita soberanista são já um indicador que estamos a pisar território desconhecido, e que por isso não há qualquer razão para hinos à alegria ou para espumar paternalismo e rancor. Estamos a pisar um terreno escorregadio, onde as velhas categorias do pensamento político estão a desfazer-se, onde os perigos e as possibilidades se confundem, onde as nossas luzes pouco ou nada penetram. 

O sensato seria, à esquerda e à direita, reconhecer a complexidade da situação, perceber que nada sabemos do futuro, nada sabemos sobre o que pode acontecer se as posições se extremarem, na expectativa que pode haver uma vitória global de um lado contra o outro. Sensato será trabalhar para que tanto a Grécia como a União Europeia encontrem o caminho da justa medida (sim, a velha virtude aristotélica da mesotês), para que a desmedida – a antiga húbris dos gregos – não traga sobre todos nós um pesado castigo, um castigo que, antevendo a falta de luz que cresce nos nossos dias, a moira (o cego destino) tece no silêncio onde se esconde. Sensato será perceber que o futuro é um lugar perigoso e que ainda é tempo de evitarmos uma tragédia.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Casas senhoriais e questões regionais


Agora que alguém se lembrou de chamar a regionalização para o debate político, reponho um post do meu antigo blogue averomundo sobre o problema.

Estes aspectos, a par de uma crescente dependência face à Coroa e do papel desta na estruturação e na hierarquização da nobreza, permitem compreender por que não surgiram, até ao início do século XV, verdadeiras Casas senhoriais, dotadas de um sólido e estável património fundiário e de uma enraizada e duradoura implantação local regional. Mesmo quando se constituíram, as grandes Casas senhoriais portuguesas foram directamente criadas pela Coroa e encabeçadas por membros da família real, como ocorreu com a que viria a ser a Casa de Bragança ou com os ducados de Viseu e de Coimbra. [Bernardo Vasconcelos e Sousa, (2009). "Idade Média", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 97]

Um pouco de história dos poderes regionais. É como se esses poderes não possuíssem uma tradição no país. Como todo o resto, as próprias casas senhoriais são uma criação do poder central, neste caso do poder régio. Quando o poder político achou necessário criou-as, mas pouco ou nada se coibiu de interferir na sua vida e, sempre que achou necessário, de ameaçar os seus detentores. Não apenas o reino e depois a nação com o seu Estado são uma criação da elite política, como os fracos poderes regionais não representam nenhuma especificidade própria.

Agora que, parece, vai tornar a debater-se a regionalização, convém perceber a longa e espessa tradição histórica do país. Um país que é a invenção de um pequeno grupo de agentes políticos, com uma dimensão diminuta e parcos recursos naturais, sempre sentiu os poderes regionais como uma ameaça desagregadora. Este sentimento velado de desagregação, a sua longa persistência, é o que merece ser pensado. Por que razão a história portuguesa é marcada pela contínua necessidade de afirmação do poder central?

Em Espanha, a regionalização visou tentar resolver um problema, o das nacionalidades. Foi uma resposta. Em Portugal, porém, isso não se coloca. O que pode acontecer, todavia, é que um processo de regionalização como o previsto na constituição, venha criar um problema que não existe. Teoricamente, democratizar as regiões administrativas parece ser uma boa medida. Mas no momento em que se criam entidades políticas, não se sabe o que pode acontecer. Forças centrífugas, agora incipientes, podem ganhar poder e acabar por desestruturar uma unidade política débil, apesar dos nove séculos de história. Há uma sabedoria na história e talvez fosse útil julgar as nossas ideias actuais e os nossos preconceitos à luz daquilo que tem sido a experiência de um povo e de uma nação, que foram criados ex nihilo. Antes de se entrar no desvario das decisões em nome da putativa modernização do país, tenha-se prudência, essa virtude suprema da acção política. (averomundo, 2010/01/11)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Esquerda e direita radicais


A política grega continua a trazer lições inusitadas. Na passada terça-feira o jornal francês Le Monde noticiava o apoio de Marine Le Pen, a líder da Front National (extrema-direita francesa), ao Syriza (esquerda radical grega, aparentado vagamente com o nosso equívoco e decadente Bloco de Esquerda). O Syriza continua à frente nas sondagens para as eleições de domingo, e Marine Le Pen afirmou que gostaria de ver o partido de Alexis Tsipras vencer as eleições.

Podemos simplificar o problema dizendo que os extremos se aproximam e, como seria este o caso, acabam por se tocar e confundir. Será isso que os partidos tradicionais gregos, ligados à governação dos últimos decénios, afirmarão, numa tentativa desesperada de conseguir a vitória nas eleições de domingo. Isso, porém, faz parte do jogo partidário, e não passa de uma ilusão, ilusão que acaba por esconder a natureza do que se está a passar na Europa.

Em primeiro lugar, a divisão tradicional entre direita e esquerda, com o fim da experiência comunista no leste da Europa, começou a abrir fissuras e ameaça desmoronar-se. Não no sentido pretendido pela direita autoritária tradicional ou mesmo liberal, as quais argumentavam que a divisão entre esquerda e direita abria um conflito no todo social, na unidade nacional. O desmoronar a que estamos a assistir não nos conduz à unidade, antes pelo contrário. O que acontece é que a velha, simples e muito conveniente divisão entre esquerda e direita explodiu em múltiplas divisões, as quais já não seguem, em muitos casos, a divisão tradicional. O mundo tornou-se muito mais complexo e a realidade política acompanhou-o, começando a dinamitar as velhas categorias e baralhando a forma de compreender o fenómeno político.

Em segundo lugar, a política europeia, pelo radicalismo liberal e pelo fanatismo austeritário, teve o condão de abrir espaços onde esquerdas e direitas fora do arco da governação encontraram um terreno fértil para encontrar eleitorado. A destruição, na Europa, do pacto social-democrata e do Estado social, aliada à corrupção crescente na esfera do poder, gerou a possibilidade de organizações políticas antagónicas reivindicarem medidas e políticas semelhantes. Na verdade, o crescimento da direita nacionalista francesa ou da esquerda radical grega são o sintoma de uma mesma nostalgia, a nostalgia das antigas políticas europeias, onde o desenvolvimento económico, ao contrário de hoje em dia, tornava todos mais ricos. Lentamente, iremos assistir à explosão das antigas divisões e descobrir, estupefactos, novas e inesperadas alianças. Já não estamos no século XIX nem no XX. Os tempos mudaram.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Liberdade e paternalismo

Marcel Duchamp - Father

lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. (Kant, Resposta à pergunta: "Que é o Iluminismo?")

Que valores ocidentais são tão estranhos e incómodos para o mundo muçulmano? Quem pensar que a animosidade islâmica para com o Ocidente se deve à questão palestiniana ou às intervenções no mundo árabe arrisca-se a não perceber o que está em jogo. Isso são pretextos com peso, mas apenas pretextos. O que está em jogo é uma contradição entre sociedades que advogam uma regulação completa da vida das pessoas e sociedades que entregam às pessoas a responsabilidade de dirigir a sua própria vida, propondo apenas um conjunto de regras mínimas indispensáveis que asseguram o respeito pela vida, pela liberdade, pela integridade da pessoa e pela propriedade. 

Esta regulação mínima - que mesmo assim muitos ocidentais acham excessiva - parece inaceitável para grande parte dos muçulmanos, cujas sociedades são geralmente patriarcais e paternalistas. Uma exaustiva regulação da vida, um paternalismo imposto com mão de ferro e um exercício duramente punitivo da infracção das inúmeras regras tornam as pessoas incapazes de se servir do seu entendimento sem a orientação de outrem, para utilizar a expressão de Kant. O conflito que estamos a assistir desenrola-se entre um modelo de sociedade que, apesar dos seus inúmeros defeitos, propõe aos indivíduos a responsabilidade de pensarem por si próprios e um modelo paternalista que pretende que os seres humanos em geral, e as mulheres em particular, sejam mantidos na menoridade. Mesmo para um crítico dos limites do Iluminismo, a questão não oferece qualquer dúvida. O pior que pode acontecer aos que amam a liberdade é viver sob um regime paternalista.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

O meu avô

Carl Larsson - Avô com Esbjörn (1902)

Hoje, porém, releio sempre as histórias do almanaque, provavelmente porque, como observou Benjamim, uma marca da sua perfeição é que facilmente as esquecemos. Mas não foi somente a etérea fugacidade da prosa de Hebel o que, ao cabo de um par de semanas, me levou a querer saber se o barbeiro de Segringen e o alfaiate de Pensa ainda existiam; o que me faz voltar constantemente a Hebel é também o facto, inteiramente fortuito, de o meu avô, cuja linguagem em muitos aspectos fazia lembrar a do amigo da casa, ter o hábito de comprar todos os anos um calendário Kempten no qual anotava, a lápis de tinta, os dias da festa onomástica de parentes e amigos, a primeira geada, o primeiro nevão, a irrupção do föhn, as trovoadas, granizos e similares, bem como, nas páginas para notas, uma qualquer receita para o fabrico de vermute ou de aguardente de genciana. [W. G. Sebald (2009). O Caminhante Solitário. Lisboa: Editorial Teorema, pp. 12]

Volto a um dos meus autores preferidos, W. G. Sebald. Esta minha preferência talvez se deva à partilha do seu culto pela memória. Educado filosoficamente numa tradição que vai da reminiscência platónica à rememoração de Ricoeur, passando pela memória como presente do passado, de Agostinho de Hipona, com o passar dos anos, e o crescimento inusitado das memórias, fui ficando cada vez mais sensível aos exercícios mnésicos na literatura, chegando a pensar, muitas vezes, que toda a literatura não é outra coisa senão um imenso exercício memorial.

O meu culto de Sebald, porém, não se deve apenas a essa atenção comum à memória. Deve-se à destreza como ele convoca e entrelaça as memórias para narrar uma história, uma história que, sendo-me absolutamente estranha, parece ser a minha história. Neste pequeno excerto, Sebald começa por falar nas histórias de almanaque de Johann Peter Hebel (1760-1826), um dos grandes escritores de língua alemã, famoso precisamente por essas histórias, mas logo deriva para a memória do seu avô, dos seus gestos e da forma como regulava o mundo. 

Eu, que nunca tive um avô, pois morreram ambos muitos anos antes de eu nascer, vejo-me a recordar esse avô que não tive, e recordo-me dele a anotar o seu calendário, talvez uma vulgar agenda, a anotar os dias de aniversário de filhos e netos, os acontecimentos climáticos significativos, o dia que nevou, ou aquele em que o fogo devastou o pinhal à saída da aldeia. Chego a vê-lo a consultar as suas anotações sobre receitas de aguardentes e licores. Sei bem que toda esta recordação é imaginada, mas só em parte. Conheci várias pessoas que faziam algumas daquelas coisas que regulavam a vida do avô de Sebald, mas a história que o escritor me conta permitiu sintetizá-las numa única figura, aquela que nunca conheci, o meu avô. E este meu avô comove-me, como se tivesse existido e me tivesse passeado e mostrado as estrelas e os campos. Um grande escritor é aquele que me faz ter o avô que nunca tive. (averomundo, 2009/12/10)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Impressões (XVII) - entardeceu de súbito

Camille Pissarro - Le Chemin de Louveciennes (1872)

xvii. entardeceu de súbito

entardeceu de súbito
talvez o sol se tenha cansado
ou os meus olhos
só vejam sombras
na vastidão da estrada

nada me anuncia o futuro
apenas erva rasa
a luz fria que desenha
no musgo da tarde
um vestígio de humidade

(20/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O crepúsculo antes da noite

George Inness - Twilight (1875)

A tomada das designações geográficas como símbolos introduz sempre uma matéria que, pelo seu fascínio, se dá à meditação. Tomemos o Ocidente como exemplo. Foi nele que emergiu a Iluminismo, foi nele que a luz da Razão se libertou dos constrangimentos do sentimento e da imaginação, até da memória. Raramente pensamos, contudo, que essa luz que tanto nos anima seja a luz do Sol que, no Ocidente, se põe, que seja uma luz crepuscular. Se olharmos para o mundo, para a pujança económica e política de uns ou para o sentimento religioso-político de outros, somos acometidos por essa sensação estranha de que a nossa luz perdeu o brilho, que se trata já e apenas de uma luz baça, crepuscular, de um crepúsculo que antecede a noite. A Razão vê a sua autonomia ameaçada por novos e antigos poderes, como se, com a noite que se aproxima, fossem trazidos de volta velhos feitiços e encantamentos ou surgissem novas quimeras. O terrível é que a luz crepuscular nunca tem o poder de retornar ao seu antigo esplendor. Entrega-se nos braços das trevas e, quando surge, como o crepúsculo da aurora e anuncia a força de um novo dia, não é do Ocidente que ela provém.

domingo, 18 de janeiro de 2015

A sobre-representação da morte

Edvard Munch - Golgotha (1900)

Há certas coincidências que, se meditadas longamente, acabam por revelar que a coincidência é mais do que isso, que nela se inscreve um sentido excessivo, o qual necessita dessa coincidência para suportar tudo o que quer sinalizar. É o caso da crucificação de Cristo no Golgotha, no lugar da caveira. A morte dá-se no lugar onde ela já está representada (na ideia de caveira), como se houvesse necessidade de intensificar essa experiência até ao paroxismo. Este transbordar de sentido da morte é o outro lado da experiência humana. Todos sabemos que haveremos de morrer, mas esse saber completo e inquestionável nunca conseguiu explicar-nos o sentido dessa morte. O que vemos no episódio do Golgotha é o desejo. O desejo de encontrar um sentido para a nossa finitude. É o desejo que conduz à sobre-representação do objecto temido, mas também é ele que abre a pista para a procura de sentido. A morte no Golgotha, isto é, a morte, só tem sentido como abertura para a vida, o que na narrativa evangélica é dado pela ressurreição. A sobre-representação da morte, na crucificação de Cristo no calvário, é o negativo do intenso desejo com que vida irrompe e impede que, por mais que a racionalizemos, a morte tenha sentido para a humanidade.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Um racismo subtil


Na sequência dos acontecimentos no Charlie Hebdo, surgiu um discurso desculpabilizante dos terroristas. Esse discurso tem vindo ou de alguns sectores ocidentais conotados com a esquerda ou de alguns sectores islâmicos. Utilizo o pronome indefinido alguns propositadamente, pois houve muitos sectores de esquerda e islâmicos que tiveram uma posição clara de repúdio. O que me interessa, porém, não é o debate esquerda-direita ou o conflito Ocidente-Islão. O que me interessa é mostrar que as narrativas desculpabilizadoras e contextualizadoras destes crimes políticos são, essencialmente, uma expressão de racismo.

Argumentar, como eu vi em muito lado, que estes actos só são compreensíveis pelo facto das comunidades islâmicas em França serem pobres e marginalizadas é negar aos seus autores não só a individualidade mas também o livre-arbítrio, a capacidade de serem responsáveis pelos seus actos. Milhões de muçulmanos, por pertencerem a comunidades migrantes com cultura diferente da francesa, vivem em situações que não se comparam com as dos franceses de origem europeia. No entanto, isso não faz deles terroristas nem os leva a adoptar uma forma de Islão radical e ameaçadora das liberdades.

Os argumentos desculpabilizantes escondem que aqueles homens faziam parte de organizações que possuem um projecto político claro, um projecto político com finalidades bem definidas e que possui uma racionalidade política e estratégica. Escondem que eles agiram de uma forma racional, perfeitamente deliberada. Escondem que eles escolheram a forma como mataram e a forma como morreram. Escondem que tanto ao matar como ao morrer eles procuraram tirar dividendos políticos para a ideologia que os animou.

Por que motivo considero, então, estes comentários e posições desculpabilizantes dos terroristas como produto de uma atitude racista? Esses comentários e posições, ao negar o livre-arbítrio, a responsabilidade individual e a escolha racional feita pelos autores dos crimes, acabam por transferir estes actos para toda uma comunidade, aquela a que os autores pertenciam, como se dissessem: eles cometeram estes crimes porque são árabes discriminados. Transferem desse modo aquilo que é da responsabilidade individual para a condição de todo um grupo social, o qual é visto como sendo constituído por pessoas sem livre-arbítrio, irresponsáveis e de uma racionalidade diminuída pela sua condição social. Isto, na verdade, é racismo, um racismo subtil, disfarçado de boas intenções e de revolta contra as injustiças perpetradas pelos ocidentais, mas racismo. 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O direito à blasfémia


A propósito das caricaturas sobre Maomé e do direito ou não à blasfémia, reproduzo um texto meu publicado há cinco anos. O motivo era outro e prendia-se com iniciativas de países europeus para limitar a liberdade de expressão através da criminalização da blasfémia.

Para quem o Benfica é uma religião, e há quem faça do seu clube de coração uma entidade verdadeiramente religiosa, esta montagem é uma blasfémia. Deveria ser proibida? Claro que não. Mas se se blasfemar contra uma religião, daquelas que fazem parte do património cultural da humanidade, deverá haver punição? Isso acontece, por exemplo, na Finlândia e vai passar a acontecer na Irlanda. Eu que não sou blasfemo, nem vejo um particular interesse na blasfémia, seja contra que religião for, fico perplexo pelos caminhos que se estão a seguir. O direito a blasfemar deve ser garantido como uma das formas mais genuínas da liberdade de expressão. Por que razões? Por quatro razões.

1. Porque a blasfémia atinge apenas o núcleo das crenças de um conjunto de pessoas, mas não atinge a integridade dessas pessoas. Desrespeitar crenças não é desrespeitar pessoas. O acto de blasfemar apenas pode prejudicar, do ponto de vista da salvação eterna, o blasfemador e nunca as supostas vítimas da blasfémia. Desde que o blasfemador não tente interferir na liberdade de crer e na liberdade de praticar o culto da religião em que os outros acreditam, nada justifica a intervenção do Estado para punir o acto de blasfémia.

2. Uma segunda razão prende-se com a intervenção estatal. Que autoridade e que critérios possui um Estado laico, ou outro qualquer, para determinar que um conjunto de crenças tem natureza religiosa e que merece, por isso, o respeito? Um Estado limita-se a aceitar a liberdade de praticar determinados cultos, mas não tem competência para determinar se eles merecem o respeito ou a derrisão de terceiros. Haverá maior blasfémia para um cristão do que negar a divindade de Jesus Cristo? Deverá, então, o Estado perseguir todos os judeus e muçulmanos que não a aceitam? Onde começa e onde acaba o acto blasfemo?

3. A blasfémia tem uma função terapêutica dentro da sociedade. As religiões são crenças no absoluto. O problema, contudo, é que essas crenças são tidas por seres relativos, os seres humanos. A fé pouco esclarecida e a ausência de um espírito crítico por parte do fiel, aliada a interesses pessoais mais ou menos obscuros, conduzem a que se dê uma valor absoluto àquilo que são apenas visões e perspectivas meramente subjectivas. A blasfémia choca o que há de humano nas religiões, mostra a irrisão das pretensões de um grupo de homens. Ao fazê-lo, relativiza as suas pretensões ao absoluto e torna uma dada Igreja (entenda-se por Igreja uma qualquer sociedade religiosa ou sentida como tal pelo crente) menos agressiva, mais humilde e mais afável com a espécie humana.

4. Por fim, blasfemar é um exercício, do ponto de vista do divino, absolutamente inútil. Se Deus não existir, não poderá ser insultado pelo blasfemador. Se Deus existir, como poderá a palavra de um homem atingir a divindade? Mais, a blasfémia muitas vezes não é mais do que o reconhecimento e a glorificação, ainda que por vias negativas, do divino (lembram-se de Paulo de Tarso?). Aqueles crentes que protestam contra os blasfemadores e exigem o seu castigo público estão mais preocupados consigo do que com Deus. Devem deixar a Deus a liberdade de castigar no além aquele que blasfema, se assim o entender, e preocuparem-se em respeitar a vida dos seres humanos e serem exemplares na sua relação com os outros.

Como já escrevi várias vezes, julgo ser útil e necessária a presença do Cristianismo no tecido social da Europa. Os valores por ele veiculados são estruturantes de uma civilização fundada na liberdade. A Europa necessita que as igrejas voltem a encher-se e a prática da moral cristã, transmitida pelos evangelhos e pela tradição, ganhe preponderância. Temo que a Europa, enquanto lugar de liberdade e de razão, sem esses valores desapareça. No entanto, o pior que pode acontecer é voltar a uma espécie de autos-de-fé fundados na lei civil. A punição da blasfémia é uma ingerência inaceitável do poder civil na liberdade religiosa. (averomundo, 2010/01/03)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Impressões (XVI) - a casa era um navio

Edouard Manet - La Maison de Rueil (1882)

xvi. a casa era um navio

a casa era um navio
ondulando no mar
a vida crepitava
nas ondas da tarde
no fogo da lareira

ouviam-se suspiros
passos furtivos
e sob a sombra
a melancolia
de uma voz a cantar

(19/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O grande jogo

Giorgio de Chirico - O grande jogo (1971)

O que se esconde por detrás dos acontecimentos que nos levam do ataque ao jornal satírico Charlie Hebdo às grandes manifestações de domingo passado? O que se esconde por detrás das afirmações à outrance do direito à liberdade de expressão, ou daquelas que relativizam a dimensão do ataque, e procuram explicações económicas e sociais para justificar as opções dos que enveredaram pelo terrorismo, ou daqueles que, pública ou privadamente, comemoraram os ataques de Paris como uma grande vitória? O que está, de facto, em jogo, para além de todas estas aparências que a comunicação social não cessa de despejar em cima de nós?

Será um vício trazido pela formação em filosofia, pelo menos daquela que se inscreve na tradição que tem em Platão uma das suas grandes referências, distinguir nas coisas e nos acontecimentos o domínio da aparência e o domínio da realidade. A hermenêutica da suspeita não é uma criação de Marx, Nietzsche e Freud. Remonta pelo menos à antiguidade clássica grega, à filosofia pré-socrática, à distinção parmenídia entre via da verdade e via da opinião. Esta formação, ou deformação, leva-nos sempre a perguntar, no espectáculo dos grandes acontecimentos, como os da semana passada, o que se esconde por detrás do jogo das aparências. 

O grande jogo, o jogo real e efectivo, trava-se entre os princípios do Iluminismo (o humanismo e os direitos do homem, o racionalismo, o individualismo) e os princípios de um contra-iluminismo (o teocentrismo, a sobreposição da fé à razão, o comunitarismo). Este jogo não começou agora nem teve sempre os mesmos protagonistas, mas desde o século XVIII, com a afirmação do projecto Iluminista em França, que o jogo se foi tornando cada vez mais intenso. A princípio, o jogo era uma actividade que opunha o Ocidente a si mesmo, mas com a globalização dos séculos XX e XXI, o jogo alargou-se ao mundo inteiro. O Ocidente é agora visto em massa como o lugar do Iluminismo, tendo o contra-iluminismo encontrado no mundo islâmico a sua base mais activa de apoio. Isto é uma simplificação, pois há no Ocidente correntes contra-iluministas e, por certo, haverá correntes iluministas fora do Ocidente.

Não estamos perante uma guerra de civilizações, se olharmos para esta a partir de uma perspectiva de conflito de raças ou de um conflito identitário. Estamos, porém, perante um conflito em torno do que é o homem, de qual o seu lugar no mundo, do que é uma vida boa e digna de ser vivida. As partes em confronto reivindicam uma perspectiva universal e propõem racionalidades diferentes na interpretação do mundo e na organização da vida. É isto que está em jogo e que as aparências tendem a esconder. Escondem também uma outra coisa. Escondem que iluministas e contra-iluministas apresentam os seus princípios como absolutos e exclusivos, afirmando que a vitória de uns princípios implicará o desaparecimento de outros. Numa linguagem hegeliana, poderíamos dizer que este conflito resulta da não dialectização dos princípios das partes em confronto. O que nós nunca queremos crer, porém, é que os princípios, essas abstracções em forma de ideias, levam homens a morrer e a matar por eles. Ideias e  princípios estão longe de ser coisas inócuas. Quem não perceber isto não perceberá nada do que se passou em França.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

A desvalorização do passado

Pseudo-Boltraffio -  Narciso (1500-1510)

Numa sociedade narcísica - uma sociedade que dá uma crescente proeminência e encorajamento aos traços narcísicos - a desvalorização cultural do passado reflecte não apenas a pobreza das ideologias prevalecentes, que perderam a sua ligação com a realidade e abandonaram a tentativa de a dominar, mas a pobreza da vida interior narcisista. Uma sociedade, que fez da "nostalgia" uma mercadoria comercializável no mercado cultural, rapidamente repudia a sugestão de que a vida no passado era, de uma forma notável, melhor que a vida de hoje. [Christopher Lasch (1991). The Culture of Narcissism - American Life in An Age of Dimishing Expectations. New York: Norton, pp. xvii]

A desvalorização cultural do passado, desvalorização que é um traço das sociedades contemporâneas, significa o silenciamento das vozes que nos falam a partir de uma experiência consumada. Problemático, não é apenas o facto de que, numa ou noutra ocasião, a vida pudesse ter sido melhor que a actual e nós não percebermos essa eventual bondade. Nem é apenas a negação daquilo que o passado tem de modelar e prototípico relativamente ao presente. Problemático é a incapacidade de escutar. O passado nunca pôde escutar o presente, mas o presente e os vivos nesse presente sempre encontraram forma de escutar os mortos. Ao evacuarmos, através de um narcisismo consumado, a capacidade de escutar os nossos mortos, abrimos o caminho para que aqueles que vêm depois de nós, e não me refiro apenas àqueles que hão-de vir amanhã, mas também aos que já cá estão há muito, sejam incapazes de nos escutar, ou de se escutar entre si. A morte dos mortos, isto é, o esquecimento cultural do passado, não mata apenas e de novo os mortos, mata também os vivos, por um acintoso transfert. Para a cultura narcísica em que vivemos, cada geração fecha-se sobre si e olha para as anteriores como mortos que ainda não sabem que o são. (averomundo, 2010/01/20)

domingo, 11 de janeiro de 2015

O vício e a virtude

Eugene Delacroix - A liberdade guiando o povo (1830)

Na manifestação de hoje, a França deu um sinal fundamental sobre a importância de um valor central e universal, a liberdade de expressão. Os franceses saíram à rua para mostrar que, acima da intolerância, está a liberdade de as pessoas dizerem o que entendem, mesmo que não se concorde com elas. Dirá o leitor, porém, que havia por ali personalidades que gostam tanto da liberdade de expressão como o diabo gosta da cruz, ou talvez mesmo menos. É verdade, mas essa é uma outra e grande vitória para aqueles que não admitem a censura. O vício sentiu-se obrigado a prestar tributo à virtude. As circunstância obrigaram gente pouco ou nada recomendável a ter de desfilar em favor daquilo que odeia. 

sábado, 10 de janeiro de 2015

Impressões (XV) - tão perfeito o passado

Francis Picabia - Saint-Tropez, vista de la Citadelle (1909)

xv. tão perfeito o passado

tão perfeito o passado
uma luz consumada
a figura em repouso
no lastro do tempo
na erva queimada

nem sombra nem água
nem noite desmedida
o passado é o sussurro
de um fantasma
que se perdeu da vida

(18/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Desafios gregos


A crise política grega desembocou na convocação de eleições para o próximo dia 25 de Janeiro. Aconteça o que acontecer, essas eleições vão ter repercussões na União Europeia e também em Portugal. Neste momento, há um jogo de aparências marcado pelo tom ameaçador exibido pela direita europeia e a esperança ansiosa da esquerda. Mas este é um jogo de aparências. Para além dele, coloca-se um conjunto de questões que convém sublinhar.

Em primeiro lugar, está em questão como os gregos irão reagir nas urnas. As sondagens têm indicado que o Syriza (um partido semelhante ao Bloco de Esquerda) poderá ganhar as eleições e formar governo. Na balança dos gregos há que verificar se a destruição (uma destruição absolutamente radical) da sua economia e da sua sociedade pelas políticas de austeridade da troika tem mais peso do que a chantagem e as ameaças da União Europeia e do Banco Central Europeu? Para os gregos, o que está em jogo é a coragem para encontrar uma outra política que não destrua ainda mais a sua vida.

Em segundo lugar, está em jogo a capacidade política do Syriza, não apenas a de ganhar as eleições mas a de conseguir governar sem produzir um desastre. Terá o Syriza (e com ele a esquerda radical) uma solução que consiga conciliar o seu programa e as políticas europeias? O Syriza é, como a generalidade da chamada esquerda radical, BE incluído, um partido social-democrata com um programa económico keynesiano. Não sonha com revoluções, nem ditaduras do proletariado, nem com outros devaneios. Não põe em causa nem a economia de mercado, nem a União Europeia, nem o Euro. Terá talento para encontrar uma nova via política?

Por fim, também a União Europeia, caso o Syriza ganhe, terá de provar alguma coisa. Terá de provar que sabe respeitar a vontade do eleitorado e que é uma verdadeira união de povos independentes e respeitadora plena da democracia. Terá de mostrar se tem flexibilidade suficiente para encontrar uma saída para a difícil relação entre a Grécia e as actuais políticas europeias, que o programa do Syriza possa trazer. O maior desafio que se coloca às instituições europeias, caso o Syriza ganhe, é a de perceber que têm ali uma oportunidade, e não uma ameaça, para saírem do atoleiro onde as suas políticas colocaram a Grécia, os outros países da Europa do Sul e a própria ideia de União Europeia.

Concluo com um prognóstico. O Syriza não ganhará as eleições, pois o medo falará mais alto. Sublinho, porém, que nunca acertei na chave do Euromilhões, nem do Totoloto ou, tão pouco, do Totobola.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A liberdade de expressão

Henri Rousseau - Liberty Inviting Artists (1906)

O massacre de ontem, na sede da revista Charlie Hebdo, levantou em alguns espíritos uma curiosa reacção. Apesar de repudiarem os crimes (fica sempre bem repudiar estas coisas), estes seriam compreensíveis, pois os caricaturistas do Charlie Hebdo não respeitavam as crenças dos muçulmanos. Isso significa que eles abusavam da liberdade de imprensa, sendo, por isso, irresponsáveis. Subjacente a este raciocínio está uma ideia muito espalhada no senso comum: há crenças que não devem ser atacadas, ninguém tem o direito de atacar as convicções religiosas de outro.

Esta ideia se levada a sério significaria o fim da liberdade de expressão. Para que serve a liberdade de expressão? Serve para duas coisas essenciais. Serve para exprimir as nossas convicções e para criticar/satirizar as convicções dos outros. Perguntará o leitor: mas não basta que a liberdade de expressão sirva apenas para exprimirmos as nossas convicções? Podíamos responder que sim, pois isso não alteraria em nada o direito à crítica. Na verdade, certas convicções são críticas de outras convicções. Ao exprimir a minha convicção de que certas convicções religiosas são inimigas do ser humano estou a fazer duas coisas ao mesmo tempo: a exprimir as minhas convicções e a criticar convicções doutros. Isto significa que se não for permitida a crítica e a sátira a quaisquer convicções e crenças então não existe liberdade de expressão. Por outro lado, se não tenho liberdade de criticar e satirizar as convicções religiosas, por que motivo hei-de ter liberdade para criticar as políticas, económicas, sociais, estéticas, desportivas, etc.? Não poderão ser estas convicções tão fortes quantas as religiosas?

Só duas coisas não devem ser permitidas: incitamento à violência e ataques à dignidade da pessoa. O respeito pela dignidade do outro não implica que eu respeite as suas ideias. Significa apenas que não lhe retiro a liberdade, a vida, a propriedade e que respeito a sua integridade física e psicossocial. Qualquer limitação à liberdade de crítica religiosa é uma diminuição da condição racional do ser humano. Mais, uma religião que não suporta a crítica e a sátira é uma religião frágil, que tem medo que a racionalidade humana a desmonte, sendo o fanatismo dos crentes apenas uma aparência para esconder a fragilidade daquilo em que crêem e do modo como crêem. O crime de ontem - um crime político de natureza terrorista - foi um ataque à liberdade e não apenas à liberdade de expressão. Foi um ataque à liberdade em si mesma por inimigos da liberdade e da humanidade. E fora disto não há qualquer explicação para o que aconteceu.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo e Houellebecq

José Luis Molleda Rodríguez - Caos

A ficção e a realidade cruzaram-se, no dia de hoje, em França. No centro deste encontro está um não inesperado hóspede, o Islão. Foi lançado hoje, em França, o novo romance de Michel Houellebecq, Soumission. Ficcionaliza uma França onde, em 2022, um candidato muçulmano ganhas as eleições e declara a sharia. Assiste-se a um cortejo de conversões e à diminuição da liberdade numa França islamizada. Há, entre aqueles que leram o livro antes de publicação, quem o acuse de provocação, de incitamento à islamofobia. Houellebecq responde: "Eu estou a acelerar a história. Não posso dizer que o livro é uma provocação, se isso significar dizer coisas que considero falsas só para chatear as pessoas. (…) Neste livro condensei uma evolução que, na minha opinião, é realista." Esta é a ficção, uma ficção que, para o autor, é apenas uma antecipação da realidade.

Mas a realidade não está no que há-de vir, mas no presente, no aqui e agora do acontecer. A realidade é o atentado que matou doze pessoas no Charlie Hebdo (ver aqui e aqui). Não, a realidade não foi a vitória de um Islão eleitoral, mas a de um Islão radical. Vitória porque os seus autores atingiram todos os seus objectivos: vingar-se dos cartoons sobre o profeta, dizimar a redacção do Charlie Hebdo, semear o medo em França, pôr em causa a liberdade (a de expressão e as outras) e lançar o caos sobre as representações que os franceses, mas também outros europeus, possuem sobre a realidade em que vivem. Além da sorte grande, saiu-lhes ainda a terminação: saíram com vida e liberdade (pelo menos até agora) da aventura.

O romance de Houellebecq e os acontecimentos de Paris põem, mais uma vez, um problema essencial à nossa forma de existência: será compatível uma sociedade fundada nos valores do individualismo, da liberdade, da universalidade, da racionalidade e dos direitos do homem com a existência dentro dela de sectores que não reconhecem estes valores e que, de forma violenta ou pacífica, não hesitarão a pôr-lhes fim. Não é a primeira vez que a Europa está confrontada com problemas semelhantes. O nazismo, por exemplo, colocou, de forma aguda, esta questão. Foi derrotado, mas todos sabemos qual o preço dessa derrota. O problema não está apenas nas acções do islamismo radical. O problema está na recusa dos valores ocidentais e no desrespeito pela lei. O problema está no projecto de criação de um excepcionalismo cultural que permita viver, na Europa, segundo normas contrárias à lei e aos valores fundamentais do Ocidente. 

O que está em jogo é um conflito entre duas formas de conceber a sociedade. Uma forma orgânica onde os direitos dos indivíduos são irrelevantes perante as tradições culturais e uma sociedade fundada na liberdade dos indivíduos, uma liberdade com valor universal. Em sociedades como a francesa ou a alemã (mas são apenas exemplos) esse conflito foi agora acelerado. No caos representacional em que vivemos, qual irá ser o resultado deste atentado? As comunidades islâmicas europeias abrir-se-ão, sem abandonar a sua crença religiosa, aos valores universalistas dos direitos do homem ou serão os europeus, arrastados pelo medo, que trocarão os valores universalistas pelo comunitarismo e pela defesa à outrance da sua cultura contra à dos outros (esta é a tese do romance de Houellebecq, embora centrada na derrota e submissão dos europeus ao Islão)? Podemos, por ser politicamente correcto, fingir que estamos apenas perante um acto criminoso, mas este atentado no coração de Paris, depois de passadas as horas de luto e das marchas de indignação, marcará um ponto de não retorno, um ponto onde já não é mais possível iludir aquilo que está em jogo.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A perversidade do sucesso

Paul Klee - Un genio sirve un pequeño desayuno (1920)

Há em certas notícias agradáveis uma perversidade atroz. Por exemplo, nesta. É agradável que neste pobre país três pessoas (Cristiano Ronaldo, Vihls e Maria Pereira) sejam reconhecidos pela revista Forbes como pertencendo ao restrito núcleo dos mais bem-sucedidos com menos de 30 anos. Também é agradável saber que Harold Bloom, no livro Génio recentemente traduzido, indicou três portugueses (Luís de Camões, Eça de Queirós e Fernando Pessoa) entre os 100 autores mais criativos da literatura universal. Não indicou um quarto, José Saramago, porque este ainda era vivo aquando da redacção e edição original do livro. 

O problema destas coisas é que os nossos génios e os nossos bem sucedidos não são o resultado de um nível médio elevado da nossa vida e da nossa cultura, mas casos excepcionais, mais excepcionais do que aquilo que deveriam ser. O brilho destas estrelas acaba por desfocar o olhar. Um viajante que não conhecesse a realidade, ao ouvir que Portugal possui três dos maiores génios da literatura universal, pensaria que os portugueses seriam um povo extraordinariamente culto, um povo cujos poderes, ao longo dos séculos, muito se preocuparam com a educação dos seus cidadãos. O que melhor poderia explicar esse facto inusitado de um povo tão pequeno produzir, em número apreciável, tão grandes escritores?

A perversidade de tudo isto reside no facto de que os nossos génios são-no graças a eles e apesar de de serem portugueses. Entre eles e o nível cultural, social e de realização pessoal dos outros portugueses há um profundo e negro abismo. Abismo por vezes cruzado, aqui e ali, por estrelas menores e tão ocasionais como os maiores astros. O problema destas nomeações está no facto delas serem usadas para ocultar a triste realidade que é a nossa. O último dos génios indicados por Bloom, Fernando Pessoa, morreu em 1935. Nessa data, uma percentagem substancial do povo português não sabia ler nem escrever. Não foi um povo de letrados que produziu três génios literários. Foram três génios que fugiram de um mundo de analfabetos, que não tinha sequer as competências básicas para poder apreciar o produtos dos génios. E está aqui toda a perversidade destas notícias sobre o sucesso dos portugueses. 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Impressões (XIV) - se o vento soprava

Joaquin Sorolla y Bastida - Paisaje de S. Sebastián

xiv. se o vento soprava

se o vento soprava
o mar trazia
a luz e a névoa
o mistério que velava
homens e animais

assim tecia-se um véu
de seda e solidão
onde nasciam
dores e cansaços
a noite que matava o dia

(16/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

domingo, 4 de janeiro de 2015

O ódio digital

Oswaldo Guayasamín - A idade da ira (1965-67)

A internet com as suas redes sociais, os blogues e os jornais online, com as respectivas caixas de comentário, veio revelar um fenómeno que poderíamos denominar como ódio digital. Sob anonimato ou a coberto da liberdade de expressão, as pessoas descarregam a sua ira contra os que pensam de forma diferente, desobrigando-se não só das regras da boa argumentação como das da boa educação. Raramente se discute uma posição, se analisam os factos, se tenta perceber aquilo que está em questão. Poucas vezes se usa um argumento diferente do ad hominem, que tem a particularidade de ser falacioso. As caixas de comentários e as redes sociais são um mostruário de insultos, de mentiras, de perseguições, de acusações gratuitas e nunca fundadas. Este ódio digital parece fazer parte do que se poderia chamar a idade da ira. Frustradas, recalcadas, mal amadas, as pessoas encontram nos que possuem pontos de vista e convicções diferentes um bode expiatório para a vida pequena (e só muito raramente a vida não é pequena perante o desejo que incendeia cada um) que lhes coube em sorte. Estas explosões de irracionalidade digital podem ser um escape das tensões e dores acumuladas, mas não deixam de revelar um carácter e de ser um sintoma da pulsão mal disfarçada que existe nos portugueses para a censura dos que pensam de forma diferente, um ataque à liberdade em nome da liberdade. Uma doença, portanto.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

A ciência, um exemplo


Gostaria de terminar o ano com uma crónica de esperança. Para além da crise que se eterniza, haverá sintomas de uma esperança no futuro? Infelizmente, não. As sociedades modernas possuem o seu núcleo central de desenvolvimento (e de esperança) no conhecimento científico. Portugal, durante muito tempo, foi nessa área um país periférico. Nos últimos vinte anos, porém, sob a direcção do ministro Mariano Gago, o país fez um esforço notável para se aproximar daquilo que se fazia na Europa. À qualidade da decisão política correspondeu um contínuo esforço das universidades e centros de investigação. O reconhecimento da qualidade do trabalho científico em Portugal foi sendo paulatino, mas consistente. Bolsas avultadas e prémios internacionais começaram a ser notícia. A visão de Mariano Gago parecia adequada e tudo indicava que ela deveria ser continuada e aprofundada, pois, nessa área, o país estava no bom caminho.

Pura ilusão. Aquilo que tinha sido a grande obra dos governos socialistas – governos medíocres noutros aspectos – parece incomodar os actuais detentores do poder. Olhando para estes anos de consulado de Nuno Crato, um observador imparcial será levado a concluir que, no campo da ciência, a principal estratégia do actual governo foi a de encontrar um caminho para destruir a obra edificada nos governos anteriores. E sempre que, nas sociedades actuais, se quer destruir alguma coisa que incomoda, a melhor forma é criar um sistema de avaliação abstruso e pouco claro. Nestes casos a avaliação não serve para melhorar, mas para destruir. Foi o que aconteceu na ciência. O processo liquidou metade dos centros de ciência existentes e destruiu uma parte significativa da base científica nacional, aquela que tinha permitido criar uma elite reconhecida internacionalmente.

O poder actual diz que apenas quer centros de excelência, como se isso fosse possível. Para haver um núcleo de excelência é precisa uma ampla base que, não sendo excelente no seu todo, gerará a elite através da sua dinâmica. Sem essa base, não há qualquer possibilidade de excelência. Esta é a natureza das coisas que o actual poder, no seu afã de destruição, quer ignorar. O que mais choca é o espírito sectário que preside à nossa vida política. Aquilo que foi bem feito por outros terá de ser destruído, como se Portugal tivesse começado com o actual governo ou a política científica apenas pudesse sair da cabeça de Nuno Crato. Com este tipo de mentalidade, valerá a pena falar de esperança? Um bom 2015, apesar de tudo.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Impressões (XIII) - a caligrafia dos barcos

Eugene Louis Boudin - El Puerto de La Havre (1888)

xiii. a caligrafia dos barcos

a caligrafia dos barcos
sobre as águas
anuncia o perfume
de certas mulheres
ao saírem de casa
nas tardes de inverno

um rumor ondulante
um espelho do céu
e a tarde incendeia-se
cobre-se de luz
para que um véu caia
sobre elas ao anoitecer

(15/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)