quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O novo despotismo

Manuel Ruiz Pipó - La ruina de un destino

Os homens não estando já ligados entre si pelos laços de casta, de classe, de corporação, de família, sentem-se excessivamente inclinados a preocupar-se apenas com os seus interesses particulares, arrastados sempre a só se encararem a si mesmos e a fechar-se num individualismo estreito onde toda a virtude pública é asfixiada. O despotismo, em vez de lutar contra esta tendência, torna-a irresistível, pois retira aos cidadãos toda a paixão comum, toda a necessidade mútua, toda a necessidade de se entender, toda a ocasião para agir em comum; enclausura-os, por assim dizer, na vida privada. Eles tendiam já a colocar-se à parte: ele isola-os; eles arrefecem-se uns aos outros: ele gela-os. (Alexis de Tocqueville, L’ancien régime et la révolution, 1856)

Em 1856, na sua célebre análise do Antigo Regime e da Revolução Francesa, Tocqueville chama a atenção para que o despotismo não tem poder para restabelecer os laços de sociabilidade humana que dependiam da antiga ordem social e da estrutura da vida comunitária. Pelo contrário, o despotismo acelera o individualismo e mata a virtude pública que visa o bem comum. Passados mais de 150 anos da publicação da obra de Tocqueville devemos interrogar o significado do nosso presente, um presente fundado no individualismo, onde os homens vivem separados uns dos outros, e as relações entre eles são, essencialmente, frias, pois nenhuma paixão comum é suscitada na vida social.

O que nos espanta, a nós que vivemos em regimes democráticos, é que o efeito da democracia representativa foi idêntico ao que Tocqueville considerou ser o do despotismo. Isto reflecte-se em tudo, inclusive nas relações entre Estados dentro de uma União Europeia, como se pode observar na atitude do governo português e de outros países do sul perante o problema grego. O que aconteceu, fundamentalmente nas últimas duas décadas e meia, foi a contínua destruição da noção de bem comum e de virtude pública. A única virtude permitida é a do egoísmo. Cada um deve prosseguir os seus interesses pessoais, independentemente daquilo que poderia ser considerado o interesse comum.

Quando se fala na crise do regime democrático tende-se a devanear sobre o problema. Fala-se sobre o afastamento entre os representantes e os eleitores, da separação entre o eleito e a comunidade que o elege. O problema, contudo, é muito mais radical e reside na destruição de bem comum e na ausência de espírito de comunidade. Num mundo de indivíduos, onde cada um persegue o seu próprio bem, não faz qualquer sentido falar em representantes. Há representantes quando estes representam uma comunidade, um destino comum, um grupo com interesses partilhados. Quando a sociedade não é mais do que um agregado de indivíduos que perseguem o seu interesse, os representantes apenas se representam a si mesmos.

Se meditarmos o texto de Tocqueville, somos levados a perguntar se, para além da perspectiva de que o despotismo reforça o individualismo, não será a contrária, o individualismo gerar o despotismo, também verdadeira. A resposta parece inequívoca. A democracia representativa tornou-se meramente formal. Ela é a forma como se legitima o novo despotismo. Este nasce da atomização da vida social e, ao mesmo tempo, reforça essa atomização, num processo que se vai intensificando e tornando, paradoxalmente, a generalidade dos indivíduos cada vez mais impotentes e com menos capacidade de defender os seus próprios interesses. Uma democracia efectiva, para além de indivíduos,  necessita do espírito de comunidade e da noção partilhada de bem comum. Quando estes desaparecem, quando apenas o interesse privado subsiste, os próprios indivíduos – ou parte substancial deles – tornam-se impotentes e aquilo que eles têm pela frente já não é um destino escolhido por eles mas a dura necessidade de um fado que se lhe impõe, sem que eles percebam bem por quem.

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