terça-feira, 10 de março de 2015

Da decifração romanesca

Pablo Picasso - Pareja de pobres (1903)

Há qualquer coisa malévola na desigualdade, e agora eu conheço-a. Actua na profundidade, cava mais fundo do que o dinheiro. O dinheiro de duas mercearias, e mesmo o da fábrica de sapatos e da sapataria, não é suficiente para esconder a nossa origem. A própria Lila, mesmo que tivesse tirado da caixa registadora mais dinheiro do que tirou, mesmo que tivesse tirado milhões, trinta, mesmo cinquenta, não podia esconder de onde provinha. Eu compreendi isto, e finalmente havia uma coisa que eu sabia melhor do que ela. Tinha-o aprendido não nestas ruas mas à saída da escola, ao olhar para a rapariga que se encontrou com Nino. Ela era superior a nós, apenas porque o era, involuntariamente. E isso é insuportável. (Elena Ferrante, The Story of a New Name)

Por que motivo um romance nos ajuda a compreender mais profundamente a realidade existencial dos homens do que a teoria? Veja-se a descoberta de Lenù, personagem e narradora do romance citado de Elena Ferrante. Ela descobre efectivamente o que torna a desigualdade social numa coisa insuportável. E aquilo que é humilhante na desigualdade, aquilo que é malévolo, não é a falta de dinheiro, os bens materiais e espirituais a que se tem acesso, os sítios onde se pode ir. 

O drama da desigualdade não é económico e social, mas estético. É um certo ar que sopra do sítio de onde se proveio, que nenhum dinheiro poderá comprar e que, por estranho que pareça, pode nem precisar de dinheiro. A forma como se inclina a cabeça, o tom de voz, o gesto que se desfaz no ar, as palavras que se usam, a confiança com que se pisa o mundo. Tudo isso que parece fazer de alguém um ser de outra espécie, de uma espécie mais elevada e quase imortal, é um exercício de diferenciação humilhante. E a humilhação atinge o paroxismo porque essa diferenciação não parece o efeito de uma educação mas o fruto de uma natureza radical e ontologicamente diferente. 

Ora eu posso especular sobre os malefícios da desigualdade, sobre a sua estrutura económica, social e cultural, mas nada disse me mostra aquilo que um romance é capaz. Enquanto a filosofia e a ciência vivem na desencarnação conceptual, o romance devolve-nos à vida, aos conflitos que atravessam as personagens, aos seus desejos e frustrações, o que nos permite perceber melhor quem somos e o sentido do nosso lugar do mundo. Por isso é inútil falar da morte do romance, pois este não é o resultado de uma deliberação racional fruto do livre-arbítrio humano, mas uma resposta à necessidade profunda de nos decifrarmos e de nos auto-confrontarmos através da mediação das personagens e das narrativas romanescas.

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