domingo, 31 de maio de 2015

O desprezo pelo mérito

Alfonso Rodríguez Castelao - Cegos (1915)

Para além das clivagens motivadas pelos modelos de sociedade em que cada um acredita, há um problema que afecta os portugueses e os torna cegos - literalmente, cegos - para aquilo que tolhe o país e aniquila a iniciativa e a criatividade. Trata-se do problema do reconhecimento do mérito. Um estudo recente torna evidente aquilo que todos nós suspeitávamos: o mérito é praticamente irrelevante quando se trata de escolher pessoas para promoções ou cargos importante. E isto não se passa apenas no Estado. Também as empresas, ao contrário do que seria de esperar, têm um comportamento idêntico. As pessoas são escolhidas por amizade, influência política, relações de família, interesses extra-organizacionais.

A irrelevância do mérito em Portugal tem, claro, profundas raízes. É a marca de uma mentalidade pré-moderna assente em relações de serviço e de vassalagem, de protecção da família (seja esta a biológica, a política ou outra) e de arbítrio daqueles que estão no lugar do poder e que, evitando a ascensão da cultura do mérito, esperam perpetuar-se, a eles e aos seus herdeiros, nos melhores cargos. Não vale a pena dar exemplos. Basta olhar para as nomeações de qualquer governo ou ver o que se passa em qualquer local de trabalho. A situação é, de facto, tão ostensiva que tem uma dupla consequência. Toda a gente sabe que é assim e, ao mesmo tempo, esse saber torna as pessoas cegas para a injustiça e para a destruição organizacional que isso representa.

A isto liga-se um outro problema cujo efeito deletério não é menor. Ninguém - rigorosamente, ninguém - acredita na neutralidade e na imparcialidade de quem tem de escolher pessoas, julgar capacidades, avaliar desempenhos. Por trás da irrelevância do mérito está uma cultura do reconhecimento iníqua. Os que, pelas suas obrigações profissionais, públicas ou privadas, deveriam ser neutros e imparciais, não o são. E esta percepção do carácter tendencioso e parcial das chefias é uma poderosa ferramenta de deslegitimação de quem dirige, um factor de destruição da capacidade de iniciativa de quem a tem e de anulação dos que são criativos e têm potencial para criar novas situações e produtos. O desprezo pelo mérito é uma recusa do reconhecimento daqueles que deveriam ser reconhecidos. O desprezo pelo mérito faz de Portugal um país de cegos dirigidos por outros cegos. 

sábado, 30 de maio de 2015

Impressões (XLII) - o que te coube em herança

Federico Zandomeneghi - La Strada

xlii. o que te coube em herança

o que te coube em herança
a erva seca
a poeira da estrada
um jardim
suspenso ao luar

por lá passas
cantando
à espera de um grito
de uma nuvem
de um pássaro
que te possa ferir o olhar

(15/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O medo de correr riscos

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

As últimas sondagens mostram que continua a haver um amplo consenso nacional relativamente às políticas que têm sido seguidas pela União Europeia. Quase 3/4 dos inquiridos dizem ir votar no PS ou na coligação PSD/CDS. Para lá da retórica e de um ou outro ponto sem relevo, as políticas destes dois blocos são idênticas e inscrevem-se nos valores dominantes ao nível europeu. Isto é louvado por muitos como prova da adesão popular ao projecto da UE. Outros, mais avisados, chamam a atenção para o facto de os portugueses intuírem de onde lhes pode vir a ajuda. O que é interessante nestes resultados, contudo, é uma outra coisa.

Na Grécia ou em Espanha, talvez mesmo em França, os eleitorados parecem decididos a correr riscos e a pôr em causa o conjunto de políticas impostas pelo diktat germânico. Os portugueses, por seu lado, não se entusiasmam nem com os antigos partidos não governamentais nem parecem muito interessados nos novos que, imitando as modas de lá de fora, vão por aí surgindo. A corrupção endémica, a destruição das classes médias, o empobrecimento sistemático das camadas populares, o minguar acelerado do Estado social, a venda ao desbarato das empresas públicas, o desemprego e a emigração, nada disso comove os portugueses e os leva a correr riscos na hora da escolha política. Escolhem os mesmos para que tudo fique na mesma. Isto é, para que tudo piore.

Os partidos do arco da governação, os beneficiários do conservadorismo eleitoral português, rejubilam com a atitude e prometem que, depois das eleições, as coisas mudarão. A oposição socialista diz que mudará rapidamente. A coligação governamental promete que o céu virá um pouco mais devagar. Socialistas e governo mentem e mentem descaradamente. Sabem, ou deveriam saber, que o conservadorismo do eleitorado português que os protege é o sintoma da doença que corrói o país, doença da qual eles são os principais usufrutuários.


O que significa o conservadorismo eleitoral português? Significa o medo de correr riscos, significa o contentamento com a mediocridade, significa a falta de exigência geral que os portugueses têm relativamente à res publica. Ora este medo de correr riscos e este contentamento com a mediocridade dominante não diz respeito apenas à política. Diz respeito a tudo. Desde a educação ao emprego, os portugueses aceitam asceticamente e sem fazer ondas o que lhes dêem. Aceitam o que cai do céu, mas não estão dispostos a correr riscos e criar por si mesmos o seu destino. O destino dos portugueses é sempre uma dádiva dos pequenos poderes que, sem muito zelo, nos pastoreiam. E isto é o grande problema.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Um espectro ronda a Europa


Um espectro ronda a Europa. (Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista)

O espectro que ronda a Europa, nos dias de hoje, não é o do comunismo, como pensava Marx em 1848 (já repararam que não tarda e passaram 200 anos?). O espectro de hoje é ainda mais espectral. Trata-se do espectro da intolerância, como se pode ver por esta notícia do The Independent. Uma geração como a minha, que se tornou adulta depois do Maio de 68 e do 25 de Abril de 74, tem dificuldade em perceber estas figuras espectrais, sejam elas judias, como a relatada no artigo do The Independent, sejam muçulmanas, sejam cristãs ou ateias. O espectro da intolerância actual é o desejo crescente de querer dizer aos outros, gente adulta e autónoma, o que devem e não devem fazer na vida. 

A ideia destes fundamentalistas hassídicos de proibir as mulheres de conduzir porque isso atenta contra a modéstia é não apenas absurda e ridícula. É um atentado contra as liberdades individuais, contra o direito de cada um regular a sua vontade como entender, desde que respeito a liberdade dos outros. O dramático é que estes pequenos grupos são cada vez mais numerosos e com múltiplas cores. Aquilo que pode ser um episódio risível está a tornar-se, lentamente, um modo de estar com direito de cidade. A Europa não apenas está rodeada de sociedades espectrais como, dentro dela, não param de nascer fantasmas para a assediar, gente disposta a impor aos outros o comportamento que bem entende. O espectro do paternalismo deveria causar à consciência europeia um arrepio de medo. Um grande arrepio.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

A algazarra geral

Julia Hidalgo Quejo - Silêncio (1989)

Uma das características centrais dos nossos tempos é a ausência de silêncio. Por todo o lado há um ruído de fundo que nos cerca e que impõe o seu império. Este ruído é global e, como uma espécie de estado totalitário, cerca-nos, como se não fosse possível fugir de tão terrível potestade. Desde a televisão ao rumor dos carros por ruas e avenidas, passando pela omnipresença da música – a mais insidiosa forma de poluição sonora – a vida contemporânea eliminou, como se tratasse de uma terrível doença contagiosa, o silêncio. A algazarra geral a que a espécie se entrega é a outra face da moeda da mobilização própria aos tempos modernos. Acção desenfreada e ruído sem fim são o corolário da ideia de que os homens devem estar constantemente mobilizados, prontos a agir, a trabalhar, a militar, a fazer, a produzir, a reconstruir o mundo de alto abaixo. Os homens podem tornar-se até mais ricos, possuir mais bens materiais, ostentar o triunfo sobre as forças da natureza, mas, ao perder o silêncio, eles alienam a sua condição humana, aquela condição que necessita do equilíbrio entre o agir e o contemplar, entre o som e o silêncio.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Impressões XLI - no negro caminho onde passas

Diego Rivera - La Casteñeda o el Paseo del los Meláncolicos (1904)

xli. no negro caminho onde passas

no negro caminho onde passas
sem que na noite o luar brilhe
ou estrelas iluminem a terra
há um secreto pudor no ar
o rude suplício da escuridão

as uvas amadureceram
e bagos caem-te das mãos
onde tristes a vinha os depôs
para que fossem luz
na noite que ergues do chão

(14/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A simples mercadoria

John Singer Sargent - Venetian Glass Workers (1880-82)

A mais baixa e a única categoria necessária de salários é aquela que provê à subsistência do trabalhador durante o trabalho e a um suplemento adequado para criar a família a fim de que a raça dos trabalhadores não se extinga. Segundo Smith, o salário normal é o mais baixo que for compatível com a simples humanidade, isto é, com uma existência bestial.

A procura de homens regula necessariamente a produção de homens como de qualquer outra mercadoria. Se a oferta excede por muito a procura, então parte dos trabalhadores cai na penúria ou na fome. Assim, a existência do trabalhador encontra-se reduzida às mesmas condições que a existência de qualquer outra mercadoria. O trabalhador tornou-se uma mercadoria e terá muita sorte se puder encontrar um comprador. E a procura, de que depende a vida do trabalhador, é determinada pelo capricho dos ricos e dos capitalistas. (Karl Marx, Manuscritos Econímico-Filosóficos)

Este texto retirado dos Manuscritos Económico-Filosóficos, de Marx, revela o fundamento ético que estruturou todo o pensamento posterior do autor. Há aqui toda uma influência subterrânea da moral idealista de Kant que convém tornar clara. O que Marx compreende muito bem é que o ser humano, na figura do trabalhador, fica reduzido à categoria de mercadoria. Como se sabe, as mercadorias são coisas que se compram e se vendem, são coisas que se trocam. Uma mercadoria não tem um valor absoluto em si mesma, ela é apenas um meio para atingir outros fins. Ora Marx percebe então que a humanidade do trabalhador, em regime capitalista, significa apenas que ele não passa de uma mera coisa, um simples meio para que outros atinjam os seus fins.

Mas o que tem isto a ver com a moral kantiana? Em primeiro lugar, porque Kant considera os seres racionais como pessoas e as pessoas, por serem dotadas de razão, são fins em si mesmas e não meras coisas. Em segundo lugar, devido à fórmula do imperativo categórico que manda respeitar a humanidade tanto na minha pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim em si mesma e nunca apenas como um simples meio.

Quem deslegitimou moralmente a situação do trabalhador no mundo liberal não foi Marx, mas a moral kantiana. A lógica do mundo capitalista assenta, como Marx bem viu, na transformação do trabalhador em mera coisa, numa mera mercadoria. Para quem se tenha esquecido disto, basta observar o que se tem passado nas relações laborais durante estes últimos 20 anos.

Pode dizer-se que, no remédio marxista para o problema, foi pior a emenda do que o soneto. É verdade, mas isso não permite extrair a conclusão de que o problema não existe. O comunismo foi uma péssima solução para um problema real. Discute-se muito as relações laborais, a eficiência da economia, a liberdade de contratação. O problema moral, porém, continua: será legítimo tratar seres humanos como meras coisas, isto é, como simples mercadoria? Um dos problemas que a esquerda política, aquela que não se converteu à ideologia do homem como mera coisa ou mercadoria, é a necessidade de ultrapassar a sombra sob a qual ainda vive: um desejo claro ou recalcado da utopia, ou distopia, comunista. Há um problema moral no estatuto dos homens enquanto trabalhadores. Isto merece pensamento e merece novas formas de acção e representação políticas. Uma sociedade que vive dependente desse estatuto, o qual reduz a humanidade de parte substancial dos homens à situação de mercadoria, é uma sociedade imoral. (averomundo, 2009/05/23)

domingo, 24 de maio de 2015

Meditações Taoistas (24)

Emil Hansen - Dark Sea (Green Sky)

Primeiro era a perfeição indefinida,
antes de o céu e a terra nascerem,
imóvel e silenciosa,
só e imutável;
a tudo envolve e protege
Lao Tse, Tao Te King, XXV

Quando quis desenhar uma constelação, não soube a posição que deveria atribuir a cada uma das estrelas. Depois, descobriu que não sabia o nome de qualquer uma delas, e fechou os olhos. Que mensagem esta súbita ignorância lhe enviava? A que estranha aprendizagem o seu desejo o conduzia? Era um cartógrafo experimentado. Durante anos desenhara os mapas da terra. Fizera-o com amor e um desejo insuperável de tornar a carta mais bela do que o território, tal como um dia alguém descobrira ser possível. A solidez da terra porém cansara-o. Cartas físicas ou mapas políticos tornaram-se um exercício enfadonho, desprovido de inquietação, incapaz de o fazer mergulhar nos segredos mais fundos da ciência. Era tarde para se dedicar a outra arte. Depois de uma ligeira depressão, descobriu um novo caminho: cartografar os céus. Com uma condição: trabalhar como os antigos astrónomos, sem instrumentos, nem sequer um pequeno telescópio de criança. Vendera tudo e escolhera, para viver e trabalhar, uma região onde as estrelas, pela noite, ainda fossem visíveis.

Trabalhou arduamente. Passou noites olhando os céus, gizando esboços, fazendo planos. A imensidão do empíreo, contudo, distraia-o. Mergulhava os olhos no manto branco da Via Láctea e ficava silencioso horas e horas, até que a aurora o despertava e o devolvia à condição humana. Depois de muitas noites e dias de meditação, decidira começar a cartografar as constelações. Não as velhas constelações conhecidas da humanidade, mas aquelas que os seus olhos iam descobrindo a partir de um jogo de acasos. Estranhas combinações entre estrelas nunca antes associadas. Fez esboços, criou planos, observou o trabalho de muitos pintores geométricos. As ideias fervilham no seu cérebro. Uma nova geografia dos céus iria nascer. Até que, na hora em que ia fazer o mapa da primeira constelação, a ignorância invadiu-o e paralisou-o.

Não se deixou abater e entregou-se assim ao destino. O que lhe queria dizer aquele não saber? Não seria um sério aviso sobre a inutilidade da cartografia? Para além da terra e do céu não haveria outra coisa mais importante e decisiva? Esta pergunta atormentou-o durante meses. Que caminho deveria seguir para encontrar uma resposta? Não seriam terra e céu o todo para além do qual nada mais haveria? Quando o tormento atingiu o paroxismo, ele abandonou qualquer preocupação com o enigma. Deitou-se exausto e adormeceu. Sonhou. No sonho viu a terra e os céus a desfigurarem-se lentamente, muito lentamente, como se cada uma das suas partes perdesse os contornos, se transformasse numa emulsão de células que logo se desfaziam e tudo perdesse a rígida definição a que a vida o habituara. A princípio via-se no próprio sonho como um espectador perante o colapso do universo. Depois, sentiu fundir-se, e ele era o próprio universo que se fundia e assim se libertava da prisão das formas, da rigidez dos contornos, do império das fronteiras. A sua consciência sonhadora era aquela grande coisa solitária, imutável, imóvel e silenciosa que era anterior aos céus e terra e que, ao mesmo tempo, era os céus e a terra. Perdido nessa indefinição, descobriu a perfeição daquilo que é, descobriu que não havia limites, fronteiras, traços, mapa algum para desenhar.

sábado, 23 de maio de 2015

Emoção no parlamento

Guillermo Pérez Villalta - Azar metódico (1994)

Luís Felipe Miguel estuda, no ensaio Sorteios e representação democrática, algumas propostas teóricas para a reintrodução do sorteio na escolha de certo tipo de agentes políticos, nomeadamente de legisladores, isto é, de deputados parlamentares. Para além da eficácia dos parlamentares assim escolhidos ser problemática, também tenho dúvidas - mas nunca estudei o assunto - que o sorteio consiga resolver os problemas que afectam a democracia parlamentar, nomeadamente a captura dos deputados dos grande partidos pelos interesses económicos. Os parlamentares sorteados seriam objecto de forte e insidiosa pressão e poderiam encontrar nesta escolha dos legisladores, através de um jogo de azar, uma oportunidade para ganhar um jackpot.

Haveria, contudo, uma coisa que, julgo, mudaria, apesar de tudo. A importância das intervenções no parlamento. Hoje em dia, quando um deputado se dirige à câmara ele sabe que o seu discurso não serve para persuadir ninguém nem para evitar que alguém mude de posição. Salvo raríssimas excepções, o jogo está decidido antes de começar e a qualidade do orador e o conteúdo substancial do discurso, por melhor ou pior que seja, têm a vitória ou derrota asseguradas conforme a bancada a que se pertence. Com o sorteio, haveria a possibilidade de, numa assembleia legislativa, a qualidade retórica do orador e o conteúdo substancial das propostas serem tidas, por todo o parlamento, na sua importância. As votações - caso se conseguisse evitar a compra dos escolhidos - dependeriam do juízo de cada um dos legisladores escolhidos e seriam, em princípio, muito mais imprevisíveis. Com o sorteio dos deputados talvez a qualidade da democracia não melhorasse mas a vida parlamentar tornar-se-ia muito mais emocionante.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Impressões XL - quem saberá falar dos anjos

Theodore Robinson - El puente vieja (1890)

xl. quem saberá falar dos anjos

quem saberá falar dos anjos
ou daquelas pedras que são
palácio castelo ponte
a velha ponte onde passas
quando os dias de novembro
se tornam exíguos
para a luz com que chegas

quem saberá falar dos deuses
pedras hirtas na memória
que vinham pela aurora
e em silêncio te viam passar
para o frio da floresta
para o oceano do silêncio
para o fundo do meu amor

(13/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

quinta-feira, 21 de maio de 2015

A caixa de Pandora


Um grande sarilho. É extraordinária a capacidade militar do auto-proclamado Estado Islâmico da Iraque e do Levante. Seria uma injustiça histórica considerá-lo apenas do ponto de vista do conjunto de acções bárbaras que praticam nos territórios que conquistam. A grandeza da malvadez e a barbaridade com que actuam contra pessoas e bens históricos é directamente proporcional ao valor militar que têm demonstrado em combate. Depois das grandes campanhas de 2014, o ISIS (ou DAESH) parecia ter estagnado no seu avanço. Esta semana, contudo, puseram em fuga, em Ramadi e em Palmira, o exército iraquiano e o exército sírio, respectivamente. As aventuras ocidentais, lideradas pelos americanos, abriram a caixa de Pandora, da qual saem todos os males inimagináveis por ocidentais habituados à tranquilidade do consumo. Com horror, estamos a descobrir que parece não haver ninguém com força suficiente para tornar a fechar a maldita caixa. Os americanos, responsáveis primeiros pelo estado a que o médio-oriente chegou, assobiam para o lado e os europeus há muito que, se excluirmos a liberalização da pobreza, não servem para nada. Estamos metidos num lindo sarilho. Não acreditamos, mas estamos.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Para que serve a economia?

William Blake - Every man also gave him a piece of money

Esta notícia não é nova, mas levanta um problema que se está a agravar na Europa. Na Alemanha, 12,5 milhões de pessoas vivem no limiar de pobreza, enquanto o país, globalmente, enriquece. Isto indica que, contrariamente ao que defende o governo alemão, as desigualdades sociais crescem, como acontece em muitos países europeus. Este crescimento das desigualdades não se deve a causas naturais nem à recompensa e ao castigo dos méritos e das opções pessoais. Deve-se, fundamentalmente, a decisões políticas e à captura das elites governantes pelos grandes interesses. A riqueza de uns e a pobreza de outros é também o efeito da vontade dos governos.

A questão para que serve a economia? não se refere à ciência económica mas ao mundo da produção de bens e da distribuição da riqueza. Ora a produção de bens é o resultado da cooperação dos membros de uma sociedade e a sua distribuição deveria ter como fim intensificar essa cooperação, fazer com que todos queiram ser parte activa nesse empreendimento comum. Os mais talentosos e com mais iniciativa seriam mais recompensados, os outros, menos, mas ainda de forma a que se sentissem motivados a intensificar o seu contributo. O que se passa é que a economia, tal como está a ser usada, tem como fim defender os poderosos e lançar cada vez mais pessoas na pobreza. Isto não é uma proclamação ideológico, é um facto. O resultado é uma crescente fractura social, uma espécie de guerra civil silenciosa embora, na aparência, ordeira. E parece que é isto que querem as actuais elites que tomaram conta do poder no Ocidente, em geral, e na União Europeia, em particular.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Reflexões sobre a liberdade

Oscar Dominguez - Libertad (1957)

Enquanto quiserdes viver plenamente autónomos, como senhores absolutos, sem mesmo um deus para vos dar ordens, vivereis fatalmente como escravos ou como membro isolado de uma organização qualquer. Paradoxalmente, é ao aceitar Deus que vos tornareis livres e libertos da tirania humana, pois quando O servirdes, o vosso espírito não mais se transvia na servidão. Deus não convidou os filhos de Israel a abandonar a servidão no Egipto; Ele ordenou-lhes que o fizessem. (Thomas Merton, Semences de Contemplation)

Este texto de Merton tem o poder de mostrar duas coisas essenciais da nossa cultura ocidental. Em primeiro lugar, a filiação da liberdade na tradição religiosa judaico-cristã. E a liberdade não deve ser aqui entendida na visão dualista da liberdade negativa - liberdade positiva, herdada da reflexão de Isaiah Berlin e, de certa forma, da tradição liberal (cf artigo da Stanford Encyclopedia of Philosophy, onde é feita uma exposição aturada dos dois conceitos e a sua discussão), mas a liberdade como acto de libertação e de emancipação. O que surpreendemos no texto é o devir histórico do ser livre, mas um devir histórico que é, curiosamente e ao mesmo tempo, pré-político e político. É pré-político no sentido que tem um cunho religioso e a liberdade vem da relação com o absoluto que emancipa e liberta da servidão perante as coisas relativas. É político pois a imagem da libertação do povo de Israel do cativeiro está ligada à separação de uma comunidade política, a do Egipto, e à formação de outra comunidade política, neste caso de uma Teocracia.

Merton mostra ainda uma outra coisa, um estranho paradoxo: a liberdade nasce de uma injunção exterior. Não nasce da deliberação e do livre-arbítrio do indivíduo, mas da ordem que Deus dá ao povo de Israel: deixai de ser escravos! Esta injunção à liberdade, exterior à consciência, evidencia a complexidade da temática da liberdade consubstanciada na dialéctica da autonomia e da obediência. Ordenam-me que seja livre. Só chegarei à liberdade se obedecer à injunção divina. Este paradoxo fascinou os filósofos e está presente, por exemplo, na moral kantiana onde, em última instância, a única coisa que está em jogo é o tornar-me livre, o realizar a liberdade, facto que me é ordenado através de um imperativo formal e categórico. Ou então na filosofia moral de Sartre onde a liberdade é ressentida como uma condenação, estou condenado a ser livre.

Esta dialéctica da obediência e da autonomia que institui a liberdade só podia ser sentida pela consciência humana como algo divino. O mundo natural, o curso natural das coisas, está submetido à férrea necessidade (a cadeia causal dos acontecimentos que são regulados pelas leis naturais) ou o acaso. Em ambos, na necessidade e no acaso, não há liberdade. Esta é radicalmente estranha à ordem natural das coisas, mesmo das coisas humanas. É essa estranheza que o Antigo Testamento, no livro do Êxodo, capta em linguagem religiosa, como se a desmesura da liberdade só pudesse chegar aos homens por uma ordem de Deus.


Toda esta dimensão da reflexão sobre a liberdade é, lógica e ontologicamente, anterior à problemática da liberdade negativa e da liberdade positiva, sendo a primeira entendida como ausência de coacção, barreiras e obstáculos, e a segunda, a liberdade positiva, entendida como possibilidade de agir autonomamente e realizar os seus objectivos fundamentais. Tanto num caso como no outro, há que considerar um devir da liberdade, um tornar-se livre, mas um tornar-se livre obedecendo a uma injunção. Fica a questão seguinte: os perigos, apontados pela tradição liberal à liberdade positiva, não estarão ligados a este paradoxo originário da liberdade, à perversão da injunção originária, à transição da ordem de Deus para uma ordem colectiva, onde o colectivo é visto como totalidade orgânica onde se dissolvem, na obediência puramente humana, as liberdades individuais? (2009/06/19)

domingo, 17 de maio de 2015

Impressões XXXIX - sei das horas o mistério

Gustave Loiseau - The Eure River in Winter (1903)

xxxix. sei das horas o mistério

sei das horas o mistério
a viagem que desfaz
sonhos no mundo
casas de verão
o enigma da morte
na pálida flor do inverno

ergo a taça e brindo
ao rio que passa
e passa incendiado
no vinho sobre a mesa
no frio que desce
pelo calor das tuas mãos

(12/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sábado, 16 de maio de 2015

Os jovens e a política

Eric Fischl - Bad Boy (1981)

Um estudo encomendado pela Presidência da República torna claro que os jovens não se interessam nem pelos partidos políticos nem pela política. O grau de envolvimento é diminuto e parece não parar de cair. As causas serão múltiplas e merecedores de reflexão. Gostava, no entanto, de sublinhar um aspecto que, por certo, não será tido em consideração nas reflexões que se fazem sobre o fenómeno. Trata-se da percepção ambígua que as novas gerações possuem do fenómeno político. Para a perceber não será inútil estabelecer uma comparação com a jovem geração muito politizada de que fiz parte.

A minha geração, e refiro-me aos que começaram a interessar-se pelas questões políticas ainda antes da queda da ditadura, tinha uma grande pressão para se interessar pela política e estava envolvida por um manto romântico do fenómeno político. O problema da guerra colonial e a ausência de liberdades exerciam enorme pressão para que as novas gerações se interessassem pela coisa pública. Por outro lado, a política era considerada de um ponto de vista moral. Não era tanto a questão do poder que estava em jogo para nós. Era o problema da maldade ou da bondade morais com que o poder era ou poderia ser exercido. Este romantismo moral não passava, claro, de uma ingenuidade fundada na ignorância própria da idade e na falta de leituras e de reflexão.

As actuais gerações não possuem a drástica pressão da ausência de liberdade e da existência de uma guerra longínqua onde teriam de ir combater. Por outro lado, não sofrem da ingenuidade romântica que afectou a minha geração. Apesar de ignorantes e sem leituras, tal como a minha, estas gerações têm um saber prático, um saber não reflectido dado pela prática política que se desenrola aos seus olhos, sobre a separação entre a política e a moral. Fazer política para a minha geração era bater-se por um bem moral. Fazer política para as actuais gerações de jovens significa lutar pelo poder puro e simples e pelas vantagens pessoais que lhe estão associadas. 

Numa fase da vida onde os valores morais ainda incendeiam o coração, é natural que a percepção ingénua da separação entre moral e política conduza os jovens actuais a uma longa virgindade política. A perda dessa virgindade, o fim da longa abstinência política que a idade adulta acaba por impor, pode significar, contudo, o nascimento de uma consciência social cínica. O interesse pela política passa a ser uma questão de cálculo racional dos interesses pessoais. E este parece-me ser o principal problema do ponto de vista de uma cidadania reflexiva e não ingénua. Quando as novas gerações se interessam pela política já não são tão jovens assim e o que as leva a acção está muito longe de ser o bem moral da comunidade. Entram para a política pela porta da realpolitik.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Ciência e Política (Léo Strauss)

Charles Clifford - The Armor of Philip III (1866)

Para detalhar um pouco mais, é verdade que o ensinamento de Platão a propósito da tirania é indispensável à compreensão do “totalitarismo” de hoje, mas desconhecer-se-ia este fenómeno contemporâneo se se o identificasse pura e simplesmente à tirania do passado. Basta notar que o “totalitarismo” de hoje é essencialmente fundado sobre as “ideologias”, e em última análise sobre uma ciência vulgarizada ou desviada, enquanto que o fenómeno antigo não repousava sobre tal fundamento (Léo Strauss, Sur une nouvelle interprétation de la philosophie politique de Platon).

Strauss escreve este texto em 1946, um tempo onde o fenómeno totalitário está especialmente vivo. Nas décadas seguintes desenvolveu-se todo um pensamento de oposição entre democracia e totalitarismo. O apogeu prático-político dessa reflexão teórica é a derrota do campo comunista, simbolizada na queda do Muro de Berlim. Mas, a partir daí, a democracia política parece definhar por falta de substância. Com isto quero dizer: deixou de haver alternativas verdadeiras, e com possibilidade de ascender ao poder, em confronto. Mais, os fenómenos que estavam ligados ao totalitarismo aparecem também ligados às chamadas práticas democráticas. Apesar da proclamação da morte das ideologias, da morte das grandes narrativas, a verdade é que as governações não dispensam as narrativas ideológicas, apresentem-se estas na forma mínima ou na forma de grande narrativa. Por outro lado, o papel da ciência vulgarizada e desviada tem, como aconteceu nos regimes totalitários, um papel estruturante da acção política. Não são apenas as ciências empírico-analíticas, as ciências da natureza, que são mobilizadas enquanto tecnociência para prover a dominação sobre a natureza, mas também as chamadas ciências histórico-hermenêuticas, as ciências sociais e humanas, que são cada vez mais utilizadas para um exercício refinado de dominação sobre a comunidade e os cidadãos. Desde a ciência política à sociologia, passando pela psicologia, a antropologia, a economia, o poder tem tido a capacidade de produzir narrativas ideológicas, por vezes narrativas mínimas, outras grandes narrativas, a partir dos conhecimentos que estas ciências vão produzindo.

Se podemos pensar que nos encontramos numa fase de perversão do ideal democrático, que a democracia apresenta cada vez mais sintomas inerentes aos regimes totalitários, podemos dizer que será importante conhecer o que os clássicos, Platão e Aristóteles, pensaram dos regimes políticos, nomeadamente da democracia e da tirania. Mas isso não bastará. Será necessário confrontar o ideal regulador moderno da democracia representativa com o actual exercício do poder nas democracias ocidentais. Será preciso observar o papel que nelas continua a ter a ciência vulgarizada e transformada em ideologia. Uma atenção muito importante merece o papel desempenhado pela ideologização das ciências sociais e humanas. O que implicará também, para além da reflexão política propriamente dita, uma investigação dos fundamentos destas ciências, para compreender como elas permitem com tanta facilidade a transformação do seu discurso no discurso de uma seita em luta pela manutenção ou conquista do poder. (averomundo, 2009/06/29)

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Experiências metafísicas

Francis Wu - The Rosary (ca. 1950)

Uma longa tradição cristalizou a experiência metafísica numa rede de conceitos que se manipulam segundo regras logicamente determinadas. Esta cristalização transformou aquilo que era uma experiência num conjunto de teorias dogmáticas a que se deu o nome de Metafísica, que seria a rainha das ciências. Até que Kant, nos finais do século XVIII, tornou evidente o equívoco: enquanto ciência, a Metafísica não é possível. Este momento é libertador pois permite devolver a metafísica à dimensão da experiência e da realização existencial. Não se trata de especular sobre os princípios transcendentes mas de viver a transcendência, de tornar o indivíduo permeável àquilo que o ultrapassa. O que torna metafísica a fotografia de Francis Wu não é a presença de um objecto, o rosário, que tem, em diversas religiões, um papel na prática dos crentes. O que torna metafísica a fotografia de Wu, como acontece em muitas das suas fotografias, é que ela permite perceber que, na figura retratada, se manifesta aquilo que está para além dela. Uma presença não física manifesta-se no jogo de formas, luz e sombras. Esta fotografia de Francis Wu diz-nos mais sobre a metafísica de que os tratados que, sobre ela, foram escritos deste Aristóteles.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Impressões XXXVIII - que sol te iluminará a queda

John Singer Sargent - Yoho Falls (1916)

xxxviii. que sol te iluminará a queda

que sol te iluminará a queda
a lâmina que rasga o coração
e te deixa o corpo exangue
à porta desta casa

que astros te disseram o destino
ou quem leu no voo dos pássaros
os dias de esplendor e glória
o vaticínio do cansaço

que lua te trouxe  a maldição
os frutos que caem pela tarde
os olhos rasos de água
como se voltasses do exílio

(11/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo

terça-feira, 12 de maio de 2015

Um encontro tardio

Foto daqui.

Leio todos os discursos do Papa. Se continua assim, voltarei a rezar e voltarei à Igreja, e não o digo em tom de brincadeira. Ainda que seja membro do partido comunista, que não admitia crentes... (Raul Castro, no encontro com o Papa Francisco

Duas ilusões estiveram na base de um afastamento entre a Igreja Católica e os movimentos operários de orientação comunista. Por um lado, a ilusão marxista da cientificidade do materialismo dialéctico e uma concomitante concepção da religião como visão invertida do mundo (a célebre metáfora da ideologia). Da parte da Igreja Católica, a crença persistente - que ainda não se desfez em certos sectores - de que a sociedade reinante no Antigo Regime, com a sua divisão de castas, era a sociedade cristã por excelência. Esta dupla ilusão afastou - e tornou inimigos - aqueles que tinham todas as condições para terem boas e cordiais relações. 

Os comunistas aprenderam amargamente, com a derrota do Bloco de Leste na Europa, que a sua visão científica da sociedade - com o ateísmo militante - valia rigorosamente nada. Também a Igreja está aprender, de forma mais dolorosa do que transparece, que o seu território de eleição não são os ricos e poderosos, os senhores deste mundo. Os dois lados, apesar das ilusões que os atingiram, possuem, ainda que com diferenças, uma concepção moral do mundo onde o homem é valorizado e salvaguardado da visão utilitarista dominante nos regimes liberais. Há muito que havia condições objectivas para que este encontro se desse. Agora que ele está a dar-se, desconfiamos ser um encontro tardio.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Inclinar-se perante a ventania

Jorge Carreira Maia - Eolo, Pedras Salgadas (2014/08/19)

É preciso saber não só de onde sopra o vento mas também como sopra. E esta sabedoria serve para quê? Serve para que se saiba adaptar à força daquilo que é adverso, tirando da adversidade as vantagens que pareciam não estar nela inscritas. Estou a falar destes primeiros 100 dias de governação do Syriza, na Grécia. Perante a pressão monolítica da União Europeia (ver, por exemplo, aqui), a Grécia precisava de alguém no governo com uma outra sabedoria existencial para saber adaptar-se aos ventos dominantes. Adaptar-se aos ventos dominantes não significa fazer aquilo que o governo português fez: começar a soprar contra os portugueses, pensando que, ao soprar, também fazia parte do vento dominante. Significa que se é suficientemente flexível para se dobrar de forma a que o vento não o leve à frente e destrua (refiro-me ao programa sufragado pelos eleitores gregos) aquilo que está em jogo. Para isso era preciso uma maturidade existencial que os principais dirigentes gregos não deram provas de a possuir. Demasiado erráticos e pouco silenciosos. É pena, pois a razão está do lado deles. Correm o risco de uma grande humilhação.

domingo, 10 de maio de 2015

A cega e cruel necessidade

Ananké -  Ανάγκη

A necessidade, já os gregos o sabiam, é uma deusa não só cega mas também cruel. (Jonathan Littell, As Benevolentes)

Visitar os gregos e os romanos antigos é uma peregrinação a que nenhum ocidental, de instrução mediana, deveria ser poupado. Sei bem que a Querela dos Antigos e dos Modernos, apesar de acesa, acabou por ditar a vitória dos modernos sobre os modelos provenientes da antiguidade clássica. A vitória dos Modernos, ao nível das artes, é concomitante com a afirmação da modernidade ao nível geral da cultura e da vida social e política. Quando me pergunto por que razão não sou um liberal, eu que prezo a liberdade com um valor central da vida, a única resposta que encontro é a da frequência dos antigos. Foram elas que me explicaram que, para além da liberdade, existe aquela deusa cega e cruel que é a necessidade (a Ananké -  Ανάγκη - dos gregos). Esta necessidade é o outro lado da liberdade.

Quando os liberais sublinham que a sociedade se deve regular por contratos realizados entre pessoas livres e racionais estão a esquecer um elemento fundamental, estão a esquecer a terrível necessidade que leva a que muitos homens se apresentem nos actos contratuais com a liberdade  e a racionalidade diminuídas pela cruel e cega necessidade. Os liberais mentem-se a si e mentem à sociedade quando esquecem o papel da necessidade, quando apagam o modo como a história coagulou as relações humanas dando a uns homens mais liberdade e a outros mais necessidade. É por isso que a concepção de um homem livre e racional que interactua através de contratos legais é uma ficção, uma ficção reguladora e orientadora do desenvolvimento do homem, mas uma ficção, ainda assim. Tomar esta ficção por realidade actual (em acto, como diria Aristóteles) não é apenas um logro mas um exercício de profunda injustiça.

sábado, 9 de maio de 2015

Impressões XXXVII - regressamos sempre ao passado

Stanislas Lépine - Le Port de Caen (1859)


xxxvii. regressamos sempre ao passado

regressamos sempre ao passado
a rosa que nos atormentara
com a ferocidade dos espinhos
as buganvílias que cresceram
no porto da infância
os barcos de pavilhão arvorado
à espera do rei que não volta

todos os esforços afluem no vazio
o trabalho da flor sobre a água
os remos estendidos no barco
as velas o vento não as sopra

os portos onde depositámos a infância
são agora desertos de areia e betão
iluminados por um sol frio
que tumultua as ruas onde não passas

(10/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Socialistas, para quê?


Alevantou-se um grande alvoroço com a apresentação de um documento de economistas ligados ao Partido Socialista. Os socialistas de vários tons, a comunicação social e até o governo, por motivos diversos, exultaram. Em linha gerais o documento limita-se a confirmar as actuais políticas europeias. Por não ser dado a alevantamentos e a alvoroços, a única coisa que surgiu na minha mente foi uma pergunta: para que servem os socialistas? Não se trata apenas dos socialistas portugueses, mas de todos os partidos socialistas, social-democratas (não confundir com o PSD paroquial) e trabalhistas europeus.

Houve um tempo em que os socialistas tinham um importante papel no equilíbrio das sociedades. Rejeitavam a revolução, a ditadura do proletariado, o planeamento da economia. Eram favoráveis às liberdades básicas, aos mercados livres, mas regulados pelo Estado, e defendiam políticas de concertação social, onde a riqueza era distribuída de forma menos injusta. Tudo isto se consubstanciava num Estado social, cujos pilares eram a segurança social, a educação, como factor de mobilidade, e a saúde. Por isso, atribuíam a si próprios o epíteto de esquerda democrática.

Se há uma coisa que a União Europeia deseja tenazmente é a destruição do Estado social. Imbuída de um espírito liberal puro e duro, a direita europeia, que governa efectivamente a Europa, procura desfazer, tão depressa quanto puder, todo o edifício de protecção social que foi construído no pós-guerra. Tudo deve ser entregue aos interesses privados, mesmo funções que outrora pertenciam à área da soberania. O efeito da política europeia é a destruição da classe média e a desqualificação sistemática do trabalho. Veja-se, por exemplo, o preço a que hoje são contratados engenheiros ou os casos crescentes de pessoas que, apesar de trabalharem, são efectivamente pobres, pois o seu rendimento não lhes permite fazer frente às necessidades básicas.

Perante isto, esperava-se dos socialistas europeus um grito de revolta em nome das antigas tradições, em memória das sociedades equilibradas que ajudaram a erguer Europa fora. A verdade, contudo, é que, no essencial, pouco ou nada distingue as actuais gerações de políticos socialistas dos seus confrades de direita. Defendem as mesmas opções e perseguem os mesmos fins. Foi isso que o documento dos economistas socialistas veio confirmar. Se o leitor pretende uma sociedade mais equilibrada e justa, não sei onde a poderá ir buscar. Uma coisa, no entanto, sei: não é no lado do governo nem no dos socialistas. Socialistas, para quê?

quinta-feira, 7 de maio de 2015

O jogo da dominação e da submissão

Umberto Boccioni - Peasants at Work (1908)

Um artigo de um médico psiquiatra, no Público, argumentava que a jornada de trabalho de 40 horas, na função pública, era um erro político. E adiantava que a questão da produtividade não está directamente relacionada com o tempo passado nos empregos. Um tempo excessivo, aliás, é contraproducente, pois o cansaço que provoca diminui a produtividade, tornando mesmo as pessoas mais susceptíveis a cometer erros. Em Portugal, nos últimos anos, instalou-se um clima em que os horários de trabalho formais e informais (eufemismo que estou a usar para designar trabalho não pago) não deixam de crescer, transformando uma parte substancial dos portugueses em meros animais produtores. No entanto, o que é interessante nesta moda não é o aumento das mais-valias, para usar o jargão marxista, apropriadas pelos empregadores. Muito provavelmente com horários mais curtos e trabalho devidamente pensado e organizado obteriam mais rendimento e maiores lucros. 

O problema é outro. O que está em jogo, nas relações de trabalho num país como o nosso, não é a produção de riqueza ou o aumento de produtividade. O que está em jogo é a relação de poder, o jogo da dominação e da submissão. Aquilo que que cada um de nós tem de mais precioso é o tempo, a duração da sua vida. Ora não há forma de dominação mais clara do que aquela que é imposta sobre o nosso tempo. O governo decretou as 40 horas para a função pública não para a tornar mais competitiva. Não tornou. Decretou para humilhar as pessoas que lá trabalham e para legitimar as humilhações que os privados se entretêm, com honrosas excepções, a fazer sobre aqueles que precisam de trabalhar por conta de outrem. O que está em jogo não é a economia, nem a produtividade, nem a riqueza. O que está em jogo é a diferenciação social, a afirmação dos pequenos poderes privados, o exercício da humilhação, o facto de alguém poder impor ao outro, para lá do necessário, a sua dominação.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

O fervor nacionalista

Georges Braque - The Emigrant (1912)

A Europa está doente, mais do que se pensa. Não é apenas a questão financeira. É o espírito que se está a disseminar relativamente aos imigrantes, nos países que os acolhem. Se a França, com o peso da Frente Nacional, já nos tinha habituado a um discurso xenófobo, a Inglaterra, nos dias que correm, é uma novidade. Parece haver um limite indefinido para que uma comunidade tenha capacidade de aceitar o estrangeiro. Este espírito do tempo que cresce em múltiplos países da União é o sintoma de quão ilusório é o projecto europeu. Às primeiras dificuldades, a retórica chauvinista reaparece e a turba-multa esganiça-se contra o estrangeiro, mesmo que proveniente da União. Mesmo este nunca é visto como um europeu mas apenas como um estranho que invade o território. Não foi por acaso que os europeus, ufanos da sua civilização, no século passado, deram origem a duas guerras mundiais detonadas pelo fervor nacionalista.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Impressões XXXVI - um incêndio no mar

Pierre-Albert Marquet - Tempête en mer (1899)

xxxvi. um incêndio no mar

um incêndio no mar
no sopro do vento
pústulas de fogo
na mão do remador

e se tudo anoitece
na água que escorre
abre-se nas trevas
uma luz desmedida

(09/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

segunda-feira, 4 de maio de 2015

O argumento e a regra

Giorgio de Chirico - The Evil Genius of a King (1914-15)

Enquanto universitário, com efeito, quando apresento um argumento numa discussão, espero que o que está diante de mim apresente um contra-argumento. Ora o que nos opuseram foram regras. (Euclides Tsakalotos, coordenador da equipa de negociadores gregos com as instituições europeias)

O governo grego tem todas as hipóteses para falhar os seus objectivos. Há nele uma espécie de candura que não prenuncia nada de bom. Veja-se o que diz o coordenador da equipa de negociadores gregos, o universitário Euclides Tsakalotos. Lamenta que, nas discussões com as instituições europeias, quando apresenta um argumento a favor das suas posições o outro lado não contra-argumente e contraponha apenas com as regras. Tsakalotos, Varoufakis e Tsipras deveriam saber uma coisa. O que está em jogo nas negociações não é a verdade mas o poder.

Argumentar e contra-argumentar faz parte do jogo que procura chegar à verdade. A regra fala-nos do poder. Quem tem poder impõe regras não se preocupa com a verdade. A verdade não faz parte da política, a não ser de forma secundária e quando ela permite reforçar o poder. Os argumentos dos gregos são sensatos e razoáveis. Estão escorados em análises sólidas da situação e as perspectivas das instituições europeias já foram desmentidas pelos factos. Pode-se afirmar que os argumentos de Tsakalotos são mais verdadeiros – ou mais verosímeis – que os das instituições europeias. Mas a verdade é aqui irrelevante. O que conta é a vontade de quem tem o poder de impor o seu ponto de vista.

Se o governo do Syriza quer aplicar o seu programa terá de perceber que qualquer argumentação razoável é inútil. Só há uma linguagem que poderá demover as instituições europeias, a linguagem do poder. Se a Grécia tiver capacidade para pôr em causa, de alguma maneira, o poder europeu, então ela poderá abrir caminho para ver as suas pretensões reconhecidas. Caso contrário, a regra falará sempre mais alto que o argumento, pois a regra não é outra coisa senão o poder codificado. Fora disto é não saber qual é a natureza da política. Ninguém quer saber da verdade e não há maior ingenuidade do que não perceber isso.

domingo, 3 de maio de 2015

Apologia do jogo

Paul Klee - Spirit Drinking and Gambling (1927)

Tudo se reduz então a este grande problema, para aquele que quer empregar os seus semelhantes em proveito próprio: Encontrar homens que o orgulho os incita a servir-me e cujo interessa não os afasta de mim. Por consequência, tudo se reduz a conhecer um grande número de homens. Jogai então muito, para que vos vejam. Qualquer outro meio é fraco em comparação com o jogo. Para se ser da casa, nada há melhor, e a maioria das ligações vêm dele. Aliás, que coisas úteis nascem desta feliz instituição! [Joseph de Maistre, Six Paradoxes à Madame la Marquise de Nav...]

Eis uma belíssima apologia do senso comum e da sagacidade nas relações práticas. O que pode espantar à nossa moralidade é o método proposto, o jogo. Com Maistre estamos naquele limiar em que a aristocracia e a burguesia se cruzavam na rua do poder, uns para sair e outros para entrar. Ele, um aristocrata recente, apesar da sua posição contra-revolucionária, não deixava de ter sido já educado no espírito de cálculo introduzido pelo pensamento moderno. Nesta apologia do jogo, cruzam-se a sagacidade do nobre Ulisses e o cálculo daqueles que querem pôr os outros ao seu serviço. Eis um reaccionário moderno. O que Maistre não podia saber é que o jogo passaria de instrumento da vida social a essência da própria sociedade. Na verdade, a vida das sociedades actuais, com a importância que as bolsas e os mercados financeiros mundiais possuem, tornou-se um jogo, mas um jogo em que aqueles que jogam não sabem nem querem saber daqueles que são jogados. [averomundo, 2009/10/08]

sábado, 2 de maio de 2015

Escravatura e idolatria

Tintoretto - The Miracle of St Mark Freeing the Slave (1548)

Sosícrates conta, nas suas Sucessões, que Leão, tirano de Fliunte, perguntou [a Pitágoras] quem ele era: «Um filósofo», respondeu. [Pitágoras] comparava a vida aos grandes jogos. Na multidão que neles está presente há três grupos distintos: uns vêm para lutar, outros para fazer comércio, e os outros, que são os sábios, contentam-se em olhar. Também na vida, uns nasceram para ser escravos da glória, outros do engodo do lucro, e outros, que são os sábios, apenas visam a verdade. (Diógenes Laércio, “Vidas, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres”)

Há nestas palavras atribuídas a Pitágoras um destino que marcou a cultura ocidental: a busca da verdade como um modo de vida que vale a pena ser seguido. Este compromisso com a verdade, todavia, aparecia em contraponto à procura da glória e da riqueza. Isto marcaria uma incompatibilidade genética entre a sabedoria e o reconhecimento, dado na glória, e os bens materiais. Não é apenas esta contraposição que é decisiva. A sua adjectivação implícita não é menos importante. Perseguir a glória ou a riqueza é uma forma de escravatura. Só a verdade emancipa e liberta. Esta ideia que se vai propagar com o platonismo está preparada para, séculos depois, se fundir com o cristianismo e a sua ascese centrada em Cristo, como aquele é que é o caminho, a verdade e a vida. Duas tradições diferentes convergem aqui: a verdade é não apenas uma forma de libertação mas ainda de salvação. Estas tradições perderam, actualmente, qualquer força de atracção. A verdade tornou-se, no melhor dos casos, uma ideia reguladora que será perseguida indefinidamente mas nunca alcançada. Concomitantemente, a busca da glória e a corrida atrás do lucro tornaram-se os factores fundamentais da vida social e da construção das subjectividades. No dias que correm, a questão central não é a verdade e a libertação que ela pode trazer consigo. A questão central é mesmo tornarmo-nos escravos da glória e do dinheiro. Escravos e idólatras.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

O declínio do Ocidente

Pérez Villalta - Paisaje con ruinas industriales (1986)

As universidades ocidentais estão, em muitos casos, a perder terreno porque sofrem de falta de fundos públicos vitais.  (Phil Baty, editor de rankings do Times Higher Education)

A temática do declínio do Ocidente é antiga. Hoje parece incontestável que o mundo ocidental começa a abrir brechas e a perder, de forma moderada mas cada vez mais intensa, a sua primazia económica, cultural e civilizacional. Ainda há poucas décadas atrás a União Europeia era o exemplo que todos os povos gostariam de seguir. Hoje começa a parecer-se com um monte de ruínas. A doença atinge já as universidades, essa criação do Ocidente católico, que apresentam sintomas de cansaço e começam a perder lugares nos rankings mundiais. Perguntará o leitor: mas qual é a doença que atinge o Ocidente, que está a enfraquecê-lo e a fazê-lo definhar? Pergunta legítima, mas talvez enviesada. E se aquilo que está a destruir o Ocidente não for uma doença mas o tratamento que está a ser usado? E se o liberalismo - esse poderoso medicamento para as vontades débeis - estiver a matar a supremacia ocidental? A falta de fundos públicos que está a atrasar as universidades ocidentais nos rankings deve-se à ideologia liberal em voga. É essa ideologia que está a destruir as instituições públicas em nome dos interesses privados de um pequeno grupo de pessoas. Dito de outra maneira: o liberalismo é um veneno, mas se for aplicado na justa medida ele tem poderes curativos, como até Lenine descobriu em 1922 (com a Nova Política Económica), pois liberta as forças da sociedade e permite o desenvolvimento das autonomias individuais. Quando se perde a noção de justa medida - esse princípio que os antigos gregos deixaram em herança ao mundo ocidental - o veneno, que tinha poderes curativos e regeneradores, torna-se letal. As universidades assim como as sociedades ocidentais estão a ser vítimas do excesso de tratamento. O corpo começa a debilitar-se e os sinais de astenia são já demasiado visíveis. O declínio do Ocidente está todo ele concentrado no excesso de medicação.