sábado, 2 de maio de 2015

Escravatura e idolatria

Tintoretto - The Miracle of St Mark Freeing the Slave (1548)

Sosícrates conta, nas suas Sucessões, que Leão, tirano de Fliunte, perguntou [a Pitágoras] quem ele era: «Um filósofo», respondeu. [Pitágoras] comparava a vida aos grandes jogos. Na multidão que neles está presente há três grupos distintos: uns vêm para lutar, outros para fazer comércio, e os outros, que são os sábios, contentam-se em olhar. Também na vida, uns nasceram para ser escravos da glória, outros do engodo do lucro, e outros, que são os sábios, apenas visam a verdade. (Diógenes Laércio, “Vidas, doutrinas e sentenças de filósofos ilustres”)

Há nestas palavras atribuídas a Pitágoras um destino que marcou a cultura ocidental: a busca da verdade como um modo de vida que vale a pena ser seguido. Este compromisso com a verdade, todavia, aparecia em contraponto à procura da glória e da riqueza. Isto marcaria uma incompatibilidade genética entre a sabedoria e o reconhecimento, dado na glória, e os bens materiais. Não é apenas esta contraposição que é decisiva. A sua adjectivação implícita não é menos importante. Perseguir a glória ou a riqueza é uma forma de escravatura. Só a verdade emancipa e liberta. Esta ideia que se vai propagar com o platonismo está preparada para, séculos depois, se fundir com o cristianismo e a sua ascese centrada em Cristo, como aquele é que é o caminho, a verdade e a vida. Duas tradições diferentes convergem aqui: a verdade é não apenas uma forma de libertação mas ainda de salvação. Estas tradições perderam, actualmente, qualquer força de atracção. A verdade tornou-se, no melhor dos casos, uma ideia reguladora que será perseguida indefinidamente mas nunca alcançada. Concomitantemente, a busca da glória e a corrida atrás do lucro tornaram-se os factores fundamentais da vida social e da construção das subjectividades. No dias que correm, a questão central não é a verdade e a libertação que ela pode trazer consigo. A questão central é mesmo tornarmo-nos escravos da glória e do dinheiro. Escravos e idólatras.

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