segunda-feira, 29 de junho de 2015

Krisis e proairesis

William Blake - O Minotauro

Um texto publico no meu antigo blogue averomundo, em Janeiro de 2009. Parece escrito para hoje.

Tudo o que se está a passar revela uma coisa que, tendencialmente, esquecemos: existir, viver, estar no mundo é uma coisa problemática e a vida, por mais que criemos direitos para a proteger, está constantemente à beira da crise. Se os direitos, neles incluídos os direitos socais, fazem sentido dentro do jogo da linguagem social, já não fazem qualquer sentido dentro do jogo da linguagem da natureza. Na natureza, sobreviveremos se nos conseguirmos adaptar. O problema é que esquecemos muitas vezes que as sociedades humanas são construções fundadas na natureza e que, por mais eficiência que se consiga na vida social, a natureza, com os seus humores variáveis, acaba sempre por irromper, mostrando a fragilidade da nossa existência. Seria bom, assim, compreender que as situações críticas não são uma especificidade dos sistemas capitalistas, mas do mero facto do homem vir ao mundo. O Iluminismo, tanto o de cariz liberal como o de feição marxiana, espalhou a ilusão de ser possível construir sociedades imunes às crises. Não podemos, pelo simples facto da nossa constituição ontológica o não permitir: a crise é inerente à natureza do homem e de tudo o que ele constrói.

Isso não significa, porém, que uma conduta descuidada e desregulada seja a resposta ao existir crítico do homem. As sociedades humanas não são uma espécie de duplicação de uma natureza anterior ao estado social, mas formas dos homens regularem as suas relações com a natureza, com os outros homens e com o mundo sobrenatural (seja este real ou puramente imaginário). Se a crise se inscreve na estrutura ontológica do homem, a verdade é que o jogo cooperativo que é a sociedade visa diminuir ao máximo os perigos que representa uma natureza deixada sem vigilância. Quando se imagina o mercado, um produto social, como sendo regulado por leis "naturais", está-se a esquecer a essência social e reguladora de todas as instâncias sociais, entre elas o mercado. Uma das consequências pode ser, então, a seguinte: o mercado, em vez de produzir um papel regulador na distribuição dos bens que são necessários aos membros da espécie, pode arrastar muitos desses membros para situações críticas, porventura inultrapassáveis.

Inerente à essência do homem é, ao mesmo tempo, a assunção da importância do risco e da regulação. No pensamento grego, à krisis responde a proairesis, isto é, a escolha deliberada. É na dimensão da deliberação que se encontra a resposta para a prevenção e solução das situações críticas. Deliberar implicar o uso da razão na ponderação, na busca do equilíbrio e da justa medida. Quando a razão se afasta da justa medida e se torna um mero instrumento de cálculo da eficiência, os actos tornam-se desrazoáveis e a capacidade dos homens fazerem frente às situações críticas, inerentes à existência, torna-se cada vez mais frágil. A crise financeira e o triste espectáculo a que se assiste deve-se, em última análise, a decisões de carácter filosófico que desvalorizam, tanto nas decisões individuais como nas institucionais, o papel da razão enquanto faculdade de deliberar em conformidade com o equilíbrio e a justa medida. O que mostra uma característica nem sempre muito clara da própria razão: a sua vulnerabilidade. (averomundo, 2009/01/26)

domingo, 28 de junho de 2015

A estupidez cansa

Thomas Hart Benton - Impression, Camouflage (World War I)

A estupidez cansa, por grande que seja a tolerância com a idiotice, há um momento que o cansaço cai sobre nós e nos leva a encolher os ombros e a dizer a mais terrível das frases: que venha o que tiver de vir. Enquanto a estupidez domina na Europa, com a tragicomédia grega e a absurda posição do Eurogrupo (ver aqui), com a tentativa, muito provavelmente vitoriosa, de humilhar e liquidar o governo grego e os gregos, ali em baixo (através dessa coisa incompreensível, para nós ocidentais, que dá pelo inominável nome de Estado Islâmico - ver aqui), prepara-se, sem estados de alma, o nosso destino. Como acontece sempre nestas ocasiões, mesmo as vozes sensatas não merecem qualquer atenção (ver aqui). Entretenhamo-nos então a esmagar o terrível mosquito grego, enquanto o elefante anda a partir a loiça pela casa toda. Abramos o flanco grego, para que os Dijsselbloem, os Schäuble, os Passos Coelho, os Rajoy, as Merkel, possam rir e cantar vitória, enquanto, na sombra, os que odeiam tudo o que a Europa nascida na Grécia representa preparam o nosso destino e agradecem que lhe facilitem o flanco grego. Continuemos a tratar da mercearia, que um dia destes tratar-nos-ão do pêlo e sem contemplações. É notável como o dinheiro torna as pessoas estúpidas.

sábado, 27 de junho de 2015

Impressões (XLIX) a casa onde me abres a mão

Ignacio Díaz Olano - Pueblo de Urbina, Apunte (1915)

xlix. a casa onde me abres a mão

a casa onde me abres a mão
névoa de cal
promessa de rosa
a crescer para o verão

ressoa nela o sino da igreja
água a cantar
na sombra da árvore
na luz onde te veja

(22/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sexta-feira, 26 de junho de 2015

O devaneio da saudade


Todo este drama que envolve a Grécia não passa de uma aparência, de um véu que oculta o movimento que atinge as configurações das sociedades europeias. E não é apenas nas crónicas infinitas sobre as dívidas públicas que algo se esconde. Também nas subidas eleitorais dos partidos nacionalistas – sejam de esquerda, como o Syriza, ou de direita, como a Frente Nacional, em França – se sente que qualquer coisa está oculta e que procura um caminho para se manifestar. Este borbulhar da Europa é sintoma de algo que ainda não conseguimos compreender.

Por outro lado, as convulsões europeias não são o único dado a ter em conta. O mundo islâmico, apesar das múltiplas divisões que o atravessam, retornou à sua condição de protagonista histórico de primeira linha. Também a Rússia, depois do período de luto pelo império soviético, assume um papel fundamental na situação internacional. Para além disso, há que ter em conta os interesses da China, da Índia, da América Latina, com o Brasil à cabeça. Mas não é apenas a vertente geopolítica que está a dinamitar a configuração do mundo a que nos habituámos. Os problemas ambientais, as peripécias da demografia, os desenvolvimentos científicos e a intercomunicação global são factores tão ou mais poderosos do que os geopolíticos no actual estado de incerteza.

O futuro é, para nós, obscuro, velado por uma densa neblina. Uma neblina matinal, digamos assim. Mas há coisas que sabemos já. O mundo que começou a ser edificado com a expansão marítima dos portugueses e dos espanhóis está agonizante. Esse mundo, onde a Europa teve o papel central, encontra-se nos seus estertores finais. É uma lenta agonia que começou em 1914 e que se prolonga até aos dias de hoje. Esta agonia, contrariamente ao que aconteceu em 1945, é irreversível. O doente não tem cura. Não sabemos o que vem aí, mas conhecemos aquilo de que nos estamos a despedir. Nem tudo foi bom. Nem tudo foi mau. Tinha porém a nossa marca e isso era o suficiente para nos sentirmos em casa.

O drama grego, as peripécias eleitorais, as gripes nacionalistas, o nervosismo dos mercados, a arrogância do dinheiro, tudo isso é sintoma de um futuro que quer chegar, que talvez já tenha chegado, mas para cuja figura os nossos olhos, habituados à luz do passado, são impotentes. Mas não são apenas sintomas desse futuro. São também os sinais de uma morte anunciada, de uma agonia que parece não ter fim. São signos de uma consciência melancólica marcada pela nostalgia e para qual não resta mais nada senão a entrega ao devaneio da saudade.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Dentro do labirinto

Pablo Picasso - El despojo de Minotauro en traje de Arlequín (1936)

A história tem coisas cruéis. Olhemos para desolação que acomete a Grécia, a forma como o seu governo é tratado, a arrogância dos credores, a falta de decoro dos jornalistas a soldo da visão dominante do mundo. A crueldade maior, porém, reside na memória. Foram os gregos que inventaram a Cidade-Estado. Esta tinha duas características: a autonomia e a autarquia. Segundo a primeira, a cidade era independente. Devido à segunda, era auto-suficiente economicamente. Talvez, por instantes, estes conceitos perpassem no pensamento de Tsipras ou de Varoufakis e uma estranha nostalgia os anime no combate contra o Minotauro europeu. A verdade, porém, é que devido às anteriores governações gregas - isto é, aos agentes do Minotauro - a Grécia embarcou no canto da sereia da interdependência e, quando acordou do sonho, a auto-suficiência, o velho ideal de autarquia, tinha desaparecido. O pesadelo não ficou por aí. Agora, os gregos estão a aprender uma outra coisa. Estão a aprender que também perderam a autonomia. Escolham eles o que escolherem, o monstro exige o pesado tributo. O que se coloca a Tsipras e a Varoufakis é se eles têm a coragem de Teseu e o fio de Ariadne, pois dentro do labirinto já eles estão.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Uma biblioteca às costas

Jacob Lawrence - The Library (1980)

O meu artigo na revista Contraponto (edição online).

Livros. Quando falamos de livros associamo-los, de imediato, ao papel. Com eles enchemos estantes e ocupamos espaço físico. Quem gosta de ler tem sempre o devaneio de, ao longo da vida, ir construindo uma pequena biblioteca. Estantes e pilhas de livros. Tudo isto, contudo, é já um sinal do passado. Livro e livro de papel não são exactamente a mesma coisa. Antes dos livros impressos em papel já existiam livros. Hoje em dia os livros digitais começam, felizmente, a destronar os livros de papel. Por que motivo digo felizmente? Por dois motivos.

O livro digital poupa as árvores, e isso parece-me ser um bom motivo para preferir o digital ao papel. Em segundo lugar, porque o livro digital concentra o leitor no livro, no seu conteúdo, e não na relação sensual e fetichista com o objecto livro em papel, um belo objecto o mais das vezes.

Quantas vezes o livro não é mais do que um objecto de adorno? O livro digital põe o leitor perante a obra nua, sublinhando o valor intrínseco do conteúdo e não a sua utilidade decorativa ou sensual. A estes dois motivos posso acrescentar mais dois. Ler num eReader (não num computador ou num tablet) é uma experiência tão boa ou melhor do que em papel. Depois, posso transportar, num objecto que pesa pouco mais de duzentos gramas, uma biblioteca inteira. E que sonho maior pode haver para um amante de livros do que trazer a sua biblioteca às costas?

terça-feira, 23 de junho de 2015

Impressões (XLVIII) aonde subiste coração

Lilla Cabot Perry - Mountain Village, Japan (1898-1901)

xlviii. aonde subiste coração

aonde subiste coração
se és montanha
ramo de árvore
inclinado para o chão

que sombras habitaste
se perdeste a luz
e foste roubado
de tudo 
o que amaste

(21/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Livros cativantes

Albert Port - Sickness book (1989)

O que é uma sociedade de mercado? É aquela em que os livros devem ser cativantes. Nem bons nem maus, cativantes. Cativantes? O leitor julga que eu estou a brincar. Não estou. Há mais um incentivo para uma escrita cativante. A partir de 1 de Julho, a Amazon vai remunerar os autores de alguns livros electrónicos com base no número de páginas que os leitores leram. Eu não estou a lamentar, estou a constatar. O mercado - a procura consumada em páginas lidas - é a única verdade que, nos dias de hoje, existe sobre um livro. O valor de um livro, nas sociedades de mercado, não está na qualidade estética, se for uma obra literária, determinada por uma elite nebulosa de leitores, como os críticos ou os especialistas universitários. Está no número de páginas lidas. Dito de outra maneira, está na capacidade de cativar do escritor, na sua habilidade para fazer com que o leitor mude de página. Quanto mais páginas tiver um livro e mais rapidamente o leitor tocar no dispositivo de leitura (eReader) para mudar de página, melhor é a obra. Pessoas levadas por um hegelianismo tardio poderiam ainda pensar que a quantidade, pelo artifício dos deuses da dialéctica, se transformaria em qualidade. Puro engano. Nas sociedades de mercado, a dialéctica corre rio acima: é a qualidade que se deve transformar em quantidade. Portanto, autores de todo o mundo escrevam páginas e páginas cativantes.

domingo, 21 de junho de 2015

O medo da tempestade

Laszlo Moholy-Nagy - A tempestade, XII, n.º 8 (1921)

A actual tragédia grega, com as clivagens que ela traz devido às identidades ideológicas, tende a esconder aquilo que ela tem de mais evidente. O fim da democracia como alternativa entre modelos diferentes de sociedade. Não se trata de deixar de haver diferentes correntes políticas ou o fim das liberdades política e de expressão. Trata-se antes de uma situação muito mais insidiosa. Existem diversas correntes políticas, facções rivais que disputam o poder, a liberdade de expressão mantém-se, embora vigiada pelos  accionistas dos mass media. O que estamos a constatar é que toda essa panóplia de opções políticas visa não a proposta de diferentes bens políticos mas apenas de um único bem. Explico-me: só há, nos dias de hoje e segundo as leis da União Europeia, uma finalidade política, a de um governo que incentive o lucro privado. A rivalidade e as alternativas visam assegurar o melhor fornecimento possível desse bem. Na prática, tendo em conta a legislação existente, a esquerda foi ilegalizada e a própria social-democracia tornou-se um crime. É contra isto que o governo grego luta. Na verdade, porém, a democracia está morta, como o desespero helénico não desiste de mostrar. Aquilo a que chamamos, nos dias de hoje, democracia não passa do cadáver que, paulatinamente, se decompõe para gáudio de uns e a infelicidade dos outros. Alterar este estado de coisas implicaria uma grande tempestade. Ora é o medo da tempestade - esse medo atávico que corrói as consciências dos povos -  que assegura que nada mude. O que os actores não sabem - cegos pelos deuses - é que um dia, quer queiram quer não, a tempestade acabará por desabar.

sábado, 20 de junho de 2015

Uma doença

Gilles Aillaud - Deserto (1986)

Segundo um estudo publicado recentemente, a Terra aproxima-se a passos largos de uma nova extinção em massa. Perante notícias destas, a primeira tentação é de as enquadrar numa longa e persistente tradição apocalíptica, que insiste em anunciar o fim do mundo. O facto desta anunciação vir pela mão de cientistas, e não de profetas ou de filósofos, não altera em nada o carácter do fenómeno. Esta primeira tentação, todavia, é suplantada por uma outra que surge em forma de pergunta. Não será a humanidade uma doença da vida? Não será o Homem um tumor maligno cujas metástases infectam todo o planeta, corroendo a vida, fazendo-a degenerar e inclinando-a para a dissolução? Se a resposta a esta hipótese for afirmativa, o corolário que se segue só pode ser que todas as doenças que nos afectam não são outra senão a reacção dos sistemas imunitários do planeta para debelar tão poderosa degeneração.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Impressões (XLVII) caminhas sobre as águas

Alfred Sisleey - Nieve en Louveciennes (1887)

xlvii. caminhas sobre as águas

caminhas sobre as águas
um rasto de pedra
esconde-se
no manto do inverno

a luz inacessível
desenha-te o rosto
no alvoroço
trazido pela tarde

um fogo de pedra
arde na neve
que cobre a rua
de sombra e solidão

(20/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Inovação e emoção

Albert Rafols Casamada - La emoción y la razón (1965)

Kjell Nordstrom, professor universitário sueco, é considerado como um dos grandes gurus do mundo dos negócios, e mesmo aqueles que não gostam de gurus nem do mundo dos negócios devem prestar-lhe alguma atenção. Este tipo de pessoas tem uma especial capacidade de orientar o olhar para aquilo que pode estar a chegar. Quais os traços fundamentais que se destacam na sua retórica sobre a saída da actual crise? A inovação e a emoção. Curiosamente são já os conceitos fundamentais que conduziram à crise em que estamos mergulhados. A produção do inédito e a substituição da razão pelo sentimento são os elementos estruturantes do Zeitgeist das últimas décadas.

Quem pensar que a actual crise é uma janela aberta para um certo retorno de alguns valores ligados à racionalidade ocidental está redondamente enganado. A crise que se está a viver é um momento onde a aceleração dos processos iniciados com a modernidade se vai intensificar. Isto significa que a tensão do futuro sobre o presente vais ser ainda maior e que o pensamento dos actores sociais estará mais preso a imagens desse futuro do que à realidade efectiva do presente. Daí a importância da inovação e da emoção.

Mas se pensarmos na essência destes dois conceitos ficamos perplexos. Tanto um como o outro dissolvem aquilo que é essencial para o homem viver e para as comunidades se desenvolverem: a estabilidade. O que assegura a estabilidade é a solidez da tradição e a clareza da razão. Inovar significa destruir a tradição, substituir o testado pelo que é novo. Apelar à emoção quer dizer apenas que as decisões (individuais e colectivas) irão sendo cada vez mais tomadas sobre a obscuridade do sentimento, em detrimento da luz da razão.

Isto significa então uma coisa deveras interessante: a saída para a crise é a intensificação da própria crise: dissolver os laços racionais, substituí-los por "links" emotivos, destruir o existente através da inovação como processo de produção não apenas do novo, mas também da obsolescência do velho, tudo isto significa apenas o crescimento das situações críticas que atingem o mundo humano. Talvez o que possa estar a acontecer não seja uma crise episódica, como aquela de 1929, mas a entrada num período crítico contínuo e prolongado, do qual não haja saída dentro do quadro de valores em que nos movemos desde o século XVII.

Há em toda esta história uma obscuridade que não deixa de assediar o pensamento. Que estranha racionalidade foi aquela que emergiu no século XVII, com Descartes, e se desenvolveu com o Iluminismo, o idealismo alemão, o pragmatismo americano, que está a conduzir à aniquilação da própria razão no magma do sentimento? Que irracionalidade se escondia no projecto da modernidade para que agora ela venha, mais uma vez, à luz do dia? (averomundo, 2009/02/25)

quarta-feira, 17 de junho de 2015

O medo e a racionalidade política

Paul Klee - Danzas causadas por el miedo (1938)

O medo é um elemento estrutural na vida política. Por estranho e irrazoável que isso possa parecer, o medo tem, muitas vezes, um papel moderador e racionalizante dos agentes políticos. Peguemos, mais uma vez, no exemplo grego e nas opções maximalistas da União Europeia. Se nada atemorizar a União Europeia e o FMI, os gregos pura e simplesmente serão abandonados à sua sorte (a qual não foi apenas criação sua, antes pelo contrário). Veja-se, por exemplo, a posição dos países de cultura católica perante os gregos. São tão furiosas como as dos outros. O que é interessante é que muitos economistas que apoiam as posições da UE e do FMI são católicos e foram formados em universidades católicas. Ora não há, neste momento, política que esteja mais contra a doutrina social da Igreja e a prédica do Papa do que a que eles defendem. Na verdade, não têm medo do Papa nem sequer do inferno. Ao perderem o medo tornaram-se os agentes de políticas que, segundo o Papa, infringem o mandamento «Não matarás!».

Imaginemos, agora, um outro cenário político. Por um momento, fantasiemos que a União Soviética ainda existia e o Muro de Berlim não tinha caído. Nessas circunstâncias, o leitor acharia que a posição da União Europeia seria a mesma? Os gregos seriam, na mesma, continuamente humilhados e ofendidos e não se teria em conta as opções da democracia grega? Nessas circunstâncias nem teria havido problema. O Syriza não seria sequer eleito, pois a União Europeia seria benévola com os gregos e qualquer dos partidos do arco da governação resolveria a situação. A UE dilataria os prazos de pagamento, anexá-los-ia ao crescimento económico, defenderia as pensões que agora quer cortar e aprovaria os salários praticados sem falar em cortes. Nem exigiria reformas. O medo levaria a União Europeia a ter uma posição construtiva e solidária com os gregos (e com os portugueses, pois deixem passar as eleições e preparem-se para o que vem aí). Quando o medo de uma das partes desaparece, a racionalidade da vida política é destruída e os fortes, sejam eles quem forem, não hesitarão em esmagar os fracos. A vida é o que é.

terça-feira, 16 de junho de 2015

A ilusão dissipou-se

Peter Lanyon - Europa (1954)

Houve um tempo em que nós, europeus, tínhamos a presunção de pertencer a um espaço político civilizado, onde a lei, os direitos dos indivíduos e a solidariedade se misturavam para criar o lugar para viver mais decente ao cima da terra. Esta ideia extraordinária deveria ter sido a fabricação ilusória de algum deus grego ou romano, uma espécie de véu que ele deitou sobre os nossos olhos, para, por um momento, nos aliviar da dor da existência. O deus - grego ou romano - cansou-se e deixou-nos abrir os olhos. 

Veja-se a difícil situação de Itália, devido às ondas migrantes que a atingem, e a atitude dos outros países da UE. Veja-se a inominável patifaria a que a Grécia está sujeita pelos seu amigos (com amigos destes, mais vale fazer um pacto com os inimigos). Aquilo que em tempos foi um espaço de solidariedade tornou-se no palco onde os egoísmos nacionais se defrontam, um palco onde os fortes (e os criados de quarto dos fortes) não hesitam em subjugar e humilhar os fracos. 

Como foi doce a ilusão de que do medo da guerra nasceria uma Europa decente, uma Europa menos egoísta e menos subjugada à animalidade que está presente no homem. Quem pensa que a humanidade muda engana-se. Continuamos os mesmo europeus que se mataram entre si em duas inomináveis grandes guerras. Os rancores voltaram à superfície e não param de crescer. Enganou-se quem, na segunda metade do século XX, pensou que a Europa seria o lugar da paz perpétua. A ilusão criada pelo deus dissipou-se, não tardará que a rude realidade volte a falar mais alto.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Impressões (XLVI) eis a europa antes do desvario

Norbert Goeneutte - The Pont de l'Europe and Gare Saint Lazare (1888)

xlvi. eis a europa antes do desvario

eis a europa antes do desvario
cornucópias de fumo anunciavam
a felicidade pelas ruas maculadas
de anjos com motores por asas

não era o parnaso sobre delfos
não era apolo a tocar a lira
não era a água na fonte de castália
era a sombra do  futuro que chegava

(19/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

domingo, 14 de junho de 2015

Ainda a questão dos exames

Pablo Picasso - Head of the Medical Student (1907)

Amanhã começam os exames nacionais do ensino secundário, aqueles que determinam o lugar dos alunos no ensino superior, e continuam, agora com o 3.º ciclo, os do ensino básico. Vale a pena ler a extensa entrevista dada ao Público por Hélder de Sousa, Presidente do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), entidade responsável pelos exames nacionais. Quem quiser ler uma crítica das posições do Presidente do IAVE pode ler o artigo de Paulo Guinote, também no Público. Não estou, por agora, interessado na polémica sobre a possível manipulação política dos resultados (um problema que merece muita atenção), mas quero sublinhar duas perspectivas sobre o problema dos exames.

Em primeiro lugar, o perigo que eles trazem para a interpretação dos currículos e as práticas de ensino. A concorrência pela entrada nas grandes universidades, a disputa alimentada pela comunicação social entre ensino público e privado, têm induzido a práticas restritivas na interpretação do currículo e nas práticas de ensino. O grande equívoco, o qual foi disseminado pelas supostas práticas e pelos putativos grandes resultados dos colégios privados, está em pensar que a preparação dos alunos se centra na resolução mecânica de exercícios de tipo exame, na resolução infinita das provas dos anos anteriores ou similares. Estas práticas estão condenadas ao insucesso. Esse insucesso é já visível, pois elas estão espalhadas e os resultados continuam a ser o que são. 

As provas de exame colocam aos alunos um conjunto diferenciado de questões que exigem um trabalho muito mais largo - muitas vezes quase invisível - do que a mera preparação para exame. O que me parece problemático (para além dos problemas levantados por Paulo Guinote sobre as mudanças continuas de programas) é a interpretação tanto dos currículos como do papel dos exames que se está a espalhar a grande velocidade. Escolas e professores precisam de pensar, de forma tranquila mas profunda, este problema. Esta reflexão pode ser o fundamento para uma alteração qualitativa dos resultados.

Em segundo lugar, quero reafirmar a minha posição sobre a importância dos exames. Vivemos em tempo de eleições e o Partido Socialista, com a sua habitual ligeireza em matérias educativas (que tem o reflexo de ser altamente punitiva para os professores), já veio prometer abolir os exames nacionais de 4.º ano de escolaridade. Eu percebo que muitos países europeus, com a Finlândia em primeiro lugar, só tenham exames no final do ensino secundário. Mas esses países têm uma cultura diferente. Pais, alunos e professores são diferentes e encaram a escola e a exigência na aprendizagem de forma diferente dos portugueses. 

Os exames têm, em Portugal, uma função de regulação das práticas sociais que me parece muito útil. Compromete os actores educativos na obtenção de resultados. Sem exames esse compromisso torna-se mais frouxo, ficando ao critério de cada um. Não é só, contudo, por uma questão de regulação social que os exames são importantes. Eles implicam, se bem elaborados e bem interpretados nas escolas, um ensino e uma aprendizagem de elevada qualidade. Eles podem constituir um ideal regulador da vida escolar e, por isso, serem o motor de transformações muito úteis para os alunos e a sociedade portuguesa. Abolir exames, no lugar de os generalizar, é o pior que pode acontecer para o nosso sistema educativo.

sábado, 13 de junho de 2015

Democracia na era da suspeita

David Siqueiros - La Nueva Democracia (1945)

Historicamente, a democracia manifestou-se sempre tanto como uma promessa, tanto como um problema. Promessa de um regime harmonizado com as necessidades da sociedade, sendo esta última fundada sobre a realização de um duplo imperativo de igualdade e de autonomia. Problema de uma realidade, muitas vezes, bastante longe de satisfazer estes nobres ideais. O projecto democrático nunca deixou de ficar incompleto lá mesmo onde ele era proclamado, quer tenha sido grosseiramente pervertido, subtilmente contraído ou mecanicamente contrariado. No sentido mais forte do termo, nunca conhecemos regimes plenamente «democráticos». As democracias realmente existentes permaneceram inacabadas ou mesmo confiscadas, em proporções, segundo os casos, muito variáveis. Daí que os desencantamentos andem a par com as esperanças que fizeram nascer as rupturas com os mundos da dependência e do despotismo [Pierre Rosanvallon (2006). La contre-démocracie. La politique à l'âge de la défiance. Paris: Ed. du Seuil].

Não se encontrará a nossa democracia perto do quadro descrito por Rosanvallon? Não se estará ela a tornar numa «democracia» confiscada. É certo que as instituições vão funcionando, mas vive-se um momento em que a tensão entre a esperança na democracia e a descrença (o autor fala em défiance - desconfiança, suspeita) parece estar a pender para o lado da suspeita. Muita gente começa a suspeitar da capacidade da democracia realizar as suas promessas.

O interesse do texto de Rosanvallon reside em chamar a atenção sobre o óbvio: a democracia realiza-se num cumprimento de um duplo imperativo, o da igualdade e o da autonomia, isto é, da liberdade. Durante os últimos decénios a querela entre igualdade e liberdade tem animado as discussões sobre filosofia política, tendo a consideração da igualdade sofrido um abalo, até como desforra dos tempos em que o igualitarismo marxista tomou conta de uma parte do mundo e arrastou uma parte substancial do Ocidente a inventar o Estado-Providência, uma forma democrática de assegurar uma certa igualdade entre os membros de uma sociedade.

O que interessa, neste momento em que as desigualdades entre os homens se acentuam, é chamar a atenção para uma outra perspectiva. A querela entre liberdade e igualdade sublinhou apenas os aspectos aparentemente incompatíveis entre ambas. Mas o que ficou recalcado foi o facto de liberdade e igualdade se requererem mutuamente. O perigo das desigualdades sociais acentuadas não é apenas do aumento do fosso entre ricos e pobres, mas o de abrir o caminho para uma efectiva eliminação da autonomia de larga massa de indivíduos e a consequente supressão da liberdade.

A democracia é promessa e problema. Promessa de uma sociedade mais justa, problema de encontrar a justa medida onde igualdade e liberdade se maximizem mutuamente. A suspeita que nasce sobre a democracia funda-se nessa clivagem entre igualdade e liberdade, clivagem que faz parecer que a liberdade apenas serve para que os mais fortes oprimam os mais fracos. Se não quisermos ver a liberdade suprimida, então será melhor que cuidemos e inventemos novas formas de realizar os imperativos da democracia. (averomundo, 2009/03/05)

sexta-feira, 12 de junho de 2015

As nossas paixões

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

No passado fim-de-semana, Vasco Pulido Valente (VPV) escrevia no Público o seguinte: «O futebol, a obsessão com a cozinha e os concertos de música popular são três maneiras de resistir à realidade doméstica e ao desespero a que ela nos reduziu. É uma evasão, uma grande evasão». O tema da grande evasão não é outro senão o da alienação marxista. A religião para Marx era uma alienação pois representava uma consciência invertida da realidade social. Hoje em dia, em que a influência da religião nos comportamentos humanos é, em Portugal, tendencialmente nula, a alienação da realidade social vem através do futebol, da obsessão com a comida gourmet e a música popular, nas palavras de VPV.

Nesta retórica, encontramos a velha crítica – de que Platão e o cristianismo foram os expoentes – das paixões humanas. As paixões sempre foram vistas como as grandes inimigas da razão. Pressupõe-se que os homens esmagados pelas suas paixões – é escravo das suas paixões, dizia-se – são incapazes de condutas racionais e sofrem, por isso, de uma espécie de deficiência contumaz para conhecer a verdade e agir segundo os preceitos da sábia razão. Veja-se como VPV mostra as paixões da bola, da comida e da música (só faltou a do sexo) como formas de resistir à realidade, isto é, de não encarar a verdade de frente.

Este tipo de moralidade cansa-me. Há nela uma duplicidade insuportável. O moralista terá por certo as suas paixões, mas está sempre disposto a apontar ao próximo o dedo inflexível, o que é uma forma de evidenciar tanto a sua presumida superioridade como de mostrar a indigência moral dos outros. Estes não passam de alienados ou de evadidos da realidade. Ora está longe de estar demonstrado que ter paixões (seja a religião, o futebol, a música, a comida, o sexo ou a filatelia) nos impeça de perceber qual é o nosso lugar na sociedade e de compreender a realidade.

Por outro lado, o que todos nós procuramos nas paixões não é a alienação e a evasão da realidade. É o contrário. Na paixão, seja ela qual for, o homem procurar viver intensamente a realidade do objecto da paixão, experimentá-la nos seus limites, destruir as fronteiras que a vida quotidiana impõe e abrir-se para algo que o transcenda e tenha, por isso mesmo, um excesso de realidade. Contrariamente ao que escreve VPV, não é para resistirem à realidade que os portugueses se entregam às paixões que ele denuncia. É para a encontrarem, para experimentarem a intensidade que qualquer um de nós atribui àquilo que é real. Deixem as nossas paixões em paz.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Impressões (XLV) - a estrada de pó e lama

Paul Cezanne - Village Road, Auvers (1872-73)

xlv. a estrada de pó e lama

a estrada de pó e lama
o árduo caminho
que leva
à porta do paraíso

aguardo-te aí
e oiço
no eco da tua voz
a luz que me espera

(18/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Pensar e falar

Jesús de Perceval - Pensador (1934)

Com efeito, toda a degradação individual ou nacional é imediatamente anunciada por uma degradação rigorosamente proporcional na linguagem. Como poderia o homem perder uma ideia ou apenas a rectidão de uma ideia sem perder a palavra ou a justeza da palavra que a exprime? E, ao contrário, poderia ele pensar mais ou melhor sem o manifestar de imediato pela sua linguagem? [Joseph de Maistre, Les Soirées de Saint-Petersbourg. Deuxième entretien]

A precisão da linguagem é a outra face da precisão do pensamento e não há pensamento rigoroso sem linguagem rigorosa. Quando a linguagem das novas gerações, e das mais velhas também, atinge o grau de degradação em que hoje se encontra, não é apenas a faculdade de falar que se encontra diminuída. É a faculdade de pensar, o entendimento, que perde os seus instrumentos e se degrada. A permissividade com que se trata a língua é o outro lado do desprezo social que se tem pelo acto de pensar. Mas é este acto de pensar que permite ao homem compreender o mundo, os seus semelhantes e a si mesmo. Mais: é pelo acto de pensar que afirma a sua diferença específica com os animais não racionais. A degradação da linguagem não é apenas uma degradação da nossa capacidade de comunicar ou exprimir o que se passa em nós, é uma degradação da nossa natureza, uma diminuição da nossa humanidade. Estudar gramática, aumentar o léxico, apreender a sua plasticidade semântica, não são exercícios pueris, mas formas de nos tornarmos humanos. (averomundo, 2009/04/13)

terça-feira, 9 de junho de 2015

A poesia quântica e a prosa determinista

Gustavo Torner - Átomos: Los Cuatro Elementos. Fuego (1986)

Não sei nada de Física. Nem da que explica a realidade macroscópica nem da quântica, aquela que trabalha sobre a realidade microscópica, a do átomo e das partículas subatómicas. A primeira, por complexa que seja, parece não ter o poder poético da segunda. Esta é um estranho e assombrado mundo, que para mim, pobre mortal, é incompreensível. Não é da minha ignorância, porém, que quero falar, mas da assombração desse mundo incompreensível. Veja-se por exemplo o que descobriram uns cientistas australianos: aquilo que acontece às partículas no passado é apenas decidido quando elas são observadas e medidas no futuro. Até lá a realidade é apenas uma abstracção.

Diz-nos a nossa experiência que os acontecimentos passados condicionam e determinam os futuros. No mundo microscópico que compõe toda a realidade, as coisas parecem passar-se de outra maneira. O Professor Truscott afirma literalmente “um acontecimento futuro induz o fotão a decidir o seu passado”. E aqui descubro o meu fascínio – o espanto de um ignorante – pela física quântica. Não pense o leitor que se isso se deve à sua natureza especulativa que a torna irmã da filosofia e, em certos casos, da própria teologia. Não.

Releia-se a frase do professor Truscott. Percebe-se imediatamente que estamos no domínio da mais pura poesia. A poesia é lugar onde o discurso suspende a ordem normal do mundo e mostra este de pernas para o ar. Agora estou tentado a dizer: a poesia mostra o mundo na sua faceta quântica. Este súbito cruzamento entre mecânica quântica e poesia não pretende dizer que os cientistas que se dedicam a esse mundo são uns poetas, isto é, uns lunáticos, que é assim que o senso comum considera os poetas.

Pretende mostrar outra coisa: a realidade, na sua dimensão quântica, a mais fundamental, tem uma natureza poética, como se aquela realidade fosse composta por metáforas, metonímias e oximoros. É o futuro que determina o passado. É o fotão que é ao mesmo tempo onda e partícula. É, imagine-se, o pobre do gato de Schrödinger que está, ao mesmo tempo, morto e vivo. Com tudo isto há, para um ignorante quântico como eu, um outro mistério: quando e como aquele mundo proteico e poético se transforma em prosa?

A linguagem prosaica, para certos pensadores, é apenas a degradação da linguagem poética original. As metáforas vivas tornam-se catacreses, metáforas mortas, e a linguagem banaliza-se na prosa. O que eu gostava de saber mesmo é como a realidade quântica se banaliza na realidade em que vivemos, e, em vez de haver viagens de ida e volta entre passado e futuro, há apenas uma viagem que não tem retorno? Gostava mesmo de saber qual é o momento em que nós, pobres gatos de Schrödinger, abandonamos o paraíso onde estamos vivos apesar de estamos mortos e caímos naquele mundo em que, quando morrermos, estamos definitivamente mortos. Não podemos substituir a prosa determinista da mecânica newtoniana pela poesia quântica?

segunda-feira, 8 de junho de 2015

A banalidade da linguagem política

Jacinta Gil Roncalés - O político (1998)

Ao fim de 40 anos de eleições, todos sabemos como se passam as coisas nos períodos pré-eleitorais. Não me refiro apenas ao conteúdo substantivo dos discursos dos partidos que aspiram a exercer o poder. Refiro-me à linguagem usada. A mais pura indigência intelectual é o que ressalta aos ouvidos do cidadão. Não estou a dizer que os políticos deveriam ser uma espécie de intelectuais, cujos discursos seriam complexos e com arquitecturas teóricas pesadas. Não. Defendo, pelo contrário, que o discurso político deve ser claro, muito claro mesmo. O que se passa, porém, é que o discurso que ouvimos não é claro mas banal. A palavra na boca de certa gente fica imediatamente gasta, quase imprópria para ser usada por pessoas de bem. Esta banalidade da linguagem não é apenas o resultado de uma debilidade da eloquência dos candidatos à governação. Ela é o sinal da forma como eles vêem os cidadãos. Dirigem-se-nos como se não passássemos de um bando de idiotas ou de crianças ainda longe da idade adulta. À banalidade execrável das arengas e dos slogans corresponde o mais acintoso desprezo pelos cidadãos e pela comunidade. Consideram as nossas elites governativas que não merecemos mais do que o bolsar destas infindáveis trivialidades.

domingo, 7 de junho de 2015

Impressões (XLIV) - um pequeno clarão

Albert Gleizes - Paisaje de Courbevoie (1901)

xliv. um pequeno clarão

um pequeno clarão
rasga a noite
e abre o dia
para que magnífica
caia a luz
sobre a erva

sonâmbulas
as mãos vacilam
oferecem flores
e frutos
que ao nascer
iluminam a terra

(17/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sábado, 6 de junho de 2015

Hieróglifos, símbolos e metáforas

Porta Missé - Pensador (1981)

Retomo, adaptando a um novo contexto não polémico, um texto antigo, do meu blogue averomundo, sobre a acusação de vacuidade da linguagem simbólica, nomeadamente da que está presente na teologia e na religião. A linguagem teológica estaria cheia de misteriosos e venerandos hieróglifos, os quais ocultariam  a vacuidade da própria linguagem. Será assim?

A linguagem simbólica exprime o pensamento sobre o divino. Do divino não têm os homens conhecimento, não há ciência empírica dele, mas podem pensá-lo. Para o pensar precisam de o simbolizar e simbolizar as "experiências" que dele possuem. Como Kant ensina, não há conhecimento de Deus ou da imortalidade da alma, apenas pensamento. Mas Kant também ensina que o mesmo se passa com a liberdade. A liberdade não é um dado empírico, não é cognoscível, dela não há ciência possível. Mas isso não significa que, quando usamos a linguagem para simbolizar essa liberdade, estejamos a disfarçar o que quer que seja. Os homens têm agido no pressuposto da liberdade, na crença na liberdade, bem como no pressuposto da existência de Deus e da imortalidade da alma. Uma coisa é idêntica à outra.

Isto não significa  que seja impróprio falar de vacuidade da linguagem. Essa vacuidade não deriva, porém, de a linguagem ser utilizada para referir "experiências" não empíricas da humanidade, como aquelas que as religiões tratam, ou aquelas que pressupõem a liberdade. A vacuidade da linguagem nasce da sua impotência para dizer a realidade e da degradação contínua que toma conta dela, tornando-a menos própria para dizer o que quer que seja, cativa que fica da banalidade que a usura quotidiana impõe.

É no símbolo religioso e na metáfora poética que a linguagem tem maior pregnância. Ela é obscura, mas essa obscuridade não se confunde com a equivocidade lexical que o uso quotidiano impõe. A obscuridade da linguagem está enraizada na própria obscuridade da existência e da relação do homem com aquilo que o envolve. Quando o símbolo e a metáfora se degradam em catacreses, ou metáforas mortas, é o momento em que a linguagem já não serve para pensar e está radicalmente banalizada, correspondendo a uma experiência banal do quotidiano.

É aqui que se coloca uma coisa que cada vez me interessa mais. A riqueza do conceito filosófico não está na sua claridade, por muito que tenha sido esse o programa da modernidade encetado por Descarte. A riqueza do conceito filosófico radica na sua origem simbólico-tropológica. Não é o traço claro e distinto que dá que pensar, mas o fundo obscuro, essa contaminação da linguagem filosófica pela sua origem mitopoética que fornece a matéria para o pensar. Pensar é caminhar para dentro das metáforas e dos símbolos, é escavar nessa "ausência de pensamentos".

Essa ausência de pensamentos não significa que não haja nada para pensar, pelo contrário. A ausência de pensamentos surge como uma intimação a pensar. Por exemplo, pensar a liberdade. Eu sei que nunca poderei ter uma ciência da liberdade, mas isso não me exime do dever de a pensar. E o termo liberdade, apesar do seu uso banalizado, não deixa de ser símbolo e metáfora, não deixa de ser obscuro e é essa obscuridade que nos dá que pensar. O mesmo se passa com a linguagem simbólica das religiões, apesar do seu uso profundamente degradado e positivado. Nesses símbolos esconde-se uma experiência e um interesse obscuros da humanidade que nos dão que pensar. Só aí há que pensar. O espírito de veneração e mistério dos crentes é apenas o sintoma desse interesse obscuro que habita o homem desde que é homem.

O resto é conhecimento e mero raciocinar, e esses pertencem à ciência ou a certos jogos florais de carácter argumentativo a que a filosofia, cada vez mais, parece querer resumir-se. O grande problema da teologia não é o mistério, nem o símbolo, nem a metáfora. Não é que ela possua um conjunto de hieróglifos que tapam o vazio da existência de Deus. O problema da teologia é o seu uso da razão entendida como mero entendimento e faculdade puramente lógica fundada na não-contradição. O problema da teologia é a tentação de fazer ciência daquilo de que não há ciência, a tentação de não pensar o símbolo e as metáforas, os hieróglifos, que estão espalhados no seu corpo. (averomundo, 2009/06/12)

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Ai Jesus, uma lição sobre a contemporaneidade

Cândido Portinari - Futebol (1935)

A transferência do treinador Jorge Jesus do Benfica para o Sporting é um daqueles momentos privilegiados em que podemos perceber onde reside a força simbólica do futebol, força que permite agregar milhões de pessoas, dando vazão aos sentimentos e às emoções que a vida obriga a recalcar. Como todos os grandes símbolos, o futebol tira a sua força da ambiguidade que reside nele. 

Por um lado, é o emblema das sociedades de mercado, assentes na competição e na concorrência, onde, com excepção daquilo que é explicitamente ilegal (e mesmo aí...), tudo é possível, não havendo quaisquer limites ético-morais que travem a busca da vitória sobre o rival. E as multidões de adeptos, onde se incluem pessoas de elevada honradez, compreendem este tipo de práticas e, mais do que isso, exigem-nas.

Por outro, o futebol acorda, nessas mesmas multidões ávidas de vitórias custe o que custar, uma estranha nostalgia de uma comunidade ética perfeita. Valores como fidelidade, gratidão, respeito, reconhecimento são trazidos à luz do dia e esgrimidos contra aqueles que, movidos pelo seu interesse pessoal, fazem escolhas que contrariam o coração do adepto. A reacção dos benfiquistas à saída de Jorge Jesus é apenas mais um exemplo dessa nostalgia de uma comunidade ética sem a mácula da traição.

O futebol atrai multidões porque é o dispositivo simbólico que consegue soldar, em milhões e milhões de seres humanos, a necessidade de ser moderno e competitivo, adequado à sociedade concorrencial em que vivemos, com o apelo nostálgico de uma comunidade solidária, de valores morais irrepreensíveis. O futebol alimenta tanto a razão calculadora do homem como o foco imaginário de uma utopia social construída na nostalgia de uma ordem pré-moderna. A transferência de Jesus, para além do seu significado escatológico e sotereológico clubista, tem sido uma verdadeira lição sobre as sociedades contemporâneas.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Eu não sou finlandês

Mariano Fortuny - The Choice of a Model (1874)

No Expresso (texto parcial) da semana passada havia um interessante artigo sobre a Educação na Finlândia. Estes artigos são interessantes mas perversos. A perversidade reside no facto de facilmente se descontextualizar a realidade e fazer comparações com coisas incomparáveis. Uma comparação perversa não tardou a surgir num artigo de opinião do Observador. O autor aproveita o exemplo finlandês para derramar um conjunto de banalidades, a malvadez de se ser contra municipalização do ensino, contra o actual tipo de avaliação de professores, etc., não esqueceu mesmo de sublinhar a natureza tenebrosa dos sindicatos de professores e outros lugares comuns. O que me interessa, contudo, é o núcleo central do argumento do articulista. Diz, então, assim: na educação, o que nos separa da Finlândia é fruto das nossas escolhas, não de um qualquer fatalismo cultural.

O problema deste argumento é que ele, como qualquer aluno do 11.º ano sabe, é falacioso. Comete a chamada falácia do falso dilema. Não há, como também qualquer aluno do 11.º ano sabe, apenas a escolha livre e o fatalismo que nos impõe um destino. Se o articulista tivesse humildade suficiente, pediria a um aluno de 11.º ano que lhe explicasse que outras alternativas existem para além deste dilema entre a escolha livre e o fatalismo determinista. Talvez o aluno tivesse paciência e lhe ensinasse que pode haver escolhas livres mas que são determinadas, ao mesmo tempo, por factores culturais. E se o aluno fosse mesmo muito paciente diria que esse factores culturais, não anulando a nossa liberdade, condicionam aquilo que escolhemos.

O autor do artigo quer vender a ideologia da escolha livre e quer ver nas opções existentes em Portugal e na resistência que os professore portugueses fazem a propostas idênticas ao que existe na Finlândia uma forma de servidão. Para isso, não hesita em usar uma argumentação falaciosa. A ideologia é mais forte que o rigor lógico. Dou dois exemplos que mostram o sem sentido e a perversidade de nos quererem tomar por finlandeses. 

Os professores na Finlândia são contratados pelos directores das escolas. Não há concurso nacional. Imagine o leitor que tem um filho que fez a formação de professor, que foi um excelente aluno e tem uma excelente preparação. Há um concurso para uma escola. Ao concurso apresenta-se o seu filho e um outro candidato, de nota medíocre e com pouca propensão para o ensino. Tem contudo um pai amigo - nem falo do director - do Presidente da Câmara lá do sítio. Quem acha o leitor que ficaria com o lugar? Acha que seria o seu filho? Quer, o leitor, um concurso nacional sem intervenção humana ou um concurso de escola? 

Um outro exemplo. Na Finlândia, ao contrário de Portugal, não há inspecção nem exames, a não ser no 12.º ano. O leitor acha que isto seria bom para o ensino português? Acha que o esforço no ensino seria o mesmo caso não houvesse exames? Acha que o comportamento de todos os agentes educativos, em Portugal, seria irrepreensível caso não existisse inspecção? Eu, que sou professor, acho que seria uma catástrofe, para o sistema educativo português, o fim dos exames do ensino básico e o fim da inspecção. Deixemos os finlandeses serem finlandeses e olhemos para os nossos problemas e para aquilo que efectivamente somos e não o que, abstractamente, desejávamos ser.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Impressões (XLIII) - inútil nomear o âmbar

Joaquin Sorolla y Bastida - Alrededores de Segovía (1906)

xliii. inútil nomear o âmbar

inútil nomear o âmbar
a opala a safira
contar as pedras
ceifar o cereal

inútil abrir as mãos
para o vento
dar a face
receber o açoite

guarda a faca
e caminha
em silêncio
para o poente

não haverá barco
que te leve
ou uma silhueta
que anuncie o fim

(16/11/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

terça-feira, 2 de junho de 2015

O desaparecimento de Portugal

Domenico Beccafumi - L'Amor di Patria (1532-35)

O eurodeputado do PSD, Paulo Rangel, derrama por aí que os Estados-Nação estão acabados. Irá chegar o dia em que Portugal e os portugueses não existirão, proclama. É um facto que o ataque ao Estado-Nação tem sido uma das estratégias para privar os mais fracos da protecção que, apesar de tudo, o Estado-Nação representou para eles. A forma como Rangel apresenta a sua visão parece que ela decorre da natureza das coisas, numa espécie de determinismo metafísico que traz com ele um destino irrevogável. Com isto, Paulo Rangel esconde que a destruição do Estado-Nação é um projecto político voluntarista. Assenta na defesa de certos interesses e visa atingir outros interesses. Poderíamos dissertar sobre o facto de a direita ter, há muito, deixado de ser patriótica, tornando-se uma mera agência política dos interesses das multinacionais globais. Isto é um facto, mas não é isso que me interessa. O que me interessa é outra coisa. Paulo Rangel esquece que Portugal já existia muito antes da recente emergência do Estado-Nação. O que aconteceu é que, a dado momento, Portugal se adaptou às novas modas e às novas circunstâncias geopolíticas. Por que razão deveria soçobrar com o putativo naufrágio do Estado-Nação? Não estará Rangel, e a direita com ele, a ocultar um desejo profundo sob a forma de uma inevitabilidade histórica? Muitas foram as inevitabilidades históricas, proclamadas por Paulos Rangéis de múltiplas cores, que eu vi perderem a sua aura inevitável e desaparecerem no caixote do lixo da história, uma expressão ao gosto de outros advogados da inevitabilidade histórica. 

segunda-feira, 1 de junho de 2015

A lei e a instituição

Francisco Bayeu y Subías - La tiranía de Gerión (1757)

A tirania é um regime onde há muitas leis e poucas instituições, a democracia é um regime onde há muitas instituições e muito poucas leis (Gilles Deleuze).

O equacionamento entre lei e instituição, proposto por Deleuze, é muito interessante para compreender a ligação de um povo aos regimes políticos. Se olharmos para o caso português, apesar de mais de 30 anos de vida democrática, encontramos uma tendência clara. Por um lado, não apenas sentimos as nossas instituições como frágeis, como percebemos que a nossa vida é pouco enquadrada institucionalmente, isto é, possuímos poucas instituições. Por outro, a tentação dos governos é produzir legislação sem parar, tentando regular aquilo que não se consegue instituir. Posso dar um exemplo que conheço bem, mas é apenas um exemplo entre muitos outros. As escolas públicas portuguesas são instituições frágeis, pouco autónomas, profundamente dependentes do poder central (amanhã serão dependentes dos regedores instalados nos municípios), mas a legislação sobre a escola é praticamente infinita. A ideia é mesmo essa: regular através do poder coercitivo da lei em vez de instituir, o que exigiria liberdade e responsabilidade daqueles que participassem na vida da instituição. Mas a escola é apenas um exemplo, que eu conheço bem, da vida social portuguesa.

O que a meditação de Deleuze nos diz deixa-nos perplexos. Onde nasce essa perplexidade? No olhar que deitamos ao nosso regime político. Por que razão? Pelo facto de ele ser, formalmente, uma democracia, mas na sua essência corresponder aos traços da tirania. Existe liberdade de expressão (embora aqui e ali ameaçada por diversos poderes, não apenas o político), existem eleições livres, não há polícia política nem censura. Formalmente, somos um país bem democrático. Mas a fraqueza das nossas instituições, a pobreza daquilo a que agora se chama sociedade civil (quando o termo surge em John Locke tinha uma conotação oposta à actual: sociedade civil era a sociedade política oposta às sociedades religiosas) por oposição ao peso regulador do Estado na vida das pessoas, aliada à necessidade das elites políticas tentarem, através da lei, criar e regular um país que só existe nas suas cabeças, transformam a nossa democracia formal numa tirania adocicada, paternalista e imbecilizadora da comunidade.

A equação de Deleuze permite-nos assim perceber uma outra equação que nos diz respeito, a equação entre a capacidade instituidora de um povo e a vontade legisladora das elites políticas. O que cabe perguntar é se a pouca capacidade instituidora dos portugueses se deve à forte vontade legisladora dos políticos, ou se esta é o mero resultado da fragilidade do poder instituidor do povo. Quando se fala em crise do regime, fala-se de outra coisa. Fala-se, por exemplo, da menoridade das elites, da corrupção, etc. Mas o cerne da crise do regime político português é bem mais fundo e prende-se à equação entre capacidade instituidora (produtora de instituições) do povo e vontade legisladora das elites. O que nos permite perceber que a crise do regime é muito mais do que uma crise política. É uma crise de um povo enquanto povo, da difícil relação deste com os seus poderes e capacidades próprios, bem como com a lei e a vontade legisladora e reguladora das elites políticas. O problema não reside apenas nestas, embora também lá se encontre. Mas concentrar a atenção nos problemas conjunturais ou na culpabilidade única da classe política é tapar o sol com uma peneira.

Há um problema anterior, um problema que se manifestou já no apoio que D. Miguel teve na sua luta contra o liberalismo do seu irmão, D. Pedro, no regicídio, na instituição de uma república puramente jacobina e partidocrática, no 28 de Maio e no consequente triunfo do salazarismo. Esta longa tradição, à direita e à esquerda, não morreu no 25 de Abril de 74. Pelo contrário, metamorfoseou-se de diversas maneiras e assenhoreou-se completamente do poder político. Este problema que merece ser pensado, pois ele gangrena a vida nacional e as possibilidades de uma verdadeira vida democrática. (averomundo, 2009/05/08)