quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A flauta mágica

Max Pechstein - Flute Playing in the Country (1908)

Para Schopenhaeur, o velho filósofo pessimista que via com horror as desgraças da vida humana, a moral teria o seu fundamento na simpatia viva e ardente pelo outro, a qual se deveria traduzir em compaixão. Ora Schopenhauer gostava de tocar flauta após as refeições. Nietzsche, o mais intempestivo dos pensadores alemães, não lhe perdoou tão estranha combinação e questionou aquele pessimismo que permitia não só que se tocasse flauta após o jantar, como se afirmasse o respeito pela dor dos outros. Para Nietzsche aquela era uma moral decadente, pois as épocas fortes e as civilizações avançadas não conheciam nem a piedade nem o amor ao próximo, tudo prova de uma fraqueza desprezível.

Vivemos uma época em que o horror se banalizou de tal forma que já não gera nem pessimismo nem despeito, apenas indiferença. Os meios de comunicação social de massas, de tanto repetir e explorar a dor, a miséria e a impotência dos homens perante a morte e a injustiça, conseguiram adormecer aqueles sentimentos de simpatia e piedade pelo sofrer dos outros, pelo desconsolo com que a vida sobre eles se abate. Esta indiferença é um primeiro passo para o inevitável desprezo com que os fortes olharão os fracos, com que os vitoriosos despojarão os derrotados. Nietzsche parece triunfar.

Contudo não é uma moral criadora de novos valores, não é um super-homem que se desenha no horizonte. O que vemos são as velhas formas de opressão e humilhação, o que vemos é o desdém pela sorte do próximo, o que vemos são manobras de criação de vítimas e bodes expiatórios. Da moral dos vitoriosos da vida não é o super-homem que nasce, mas sim o infra-homem, aquele velho macaco do qual descendemos. Por isso, prefiro imaginar o velho Schopenhauer sentado no quarto, após um belo jantar, a tocar flauta. Talvez seja a flauta mágica que abre os nossos corações aos frágeis sentimentos de piedade e compaixão pelos homens, por esses nossos irmãos e companheiros de aventura no deserto desconsolado em que a rapina dos fortes está a transformar a Terra. (Jornal Torrejano, Outubro de 2007)

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