sábado, 5 de setembro de 2015

Despoletemos, então!

André Masson - Confusão (1941)

Portugal, este pobre país que nos coube em sorte, vive uma autêntica explosão de despoletanços. Nunca ouviu, o improvável leitor, essa palavra? Não, certamente! Mas terá já ouvido amiúde o verbo despoletar. Não há jornal, nem televisão onde, a propósito seja do que for, não seja proferido esse novo achado linguístico. O ministro despoletou uma reforma, o avançado-centro, para não ficar atrás, despoletou, também ele, uma jogada perigosa que culminou em golo. No outro dia, ia a caminho da escola, naquele ritmo lento com que gosto de atravessar a cidade, e escutava a Antena 2. Não é que, até aí, apareceu um crítico de arte que não se calava com o despoletar produzido pela obra de certo artista? Enfim, não há cão nem gato que não despolete.

Ora todas estas bondosas pessoas, as que se fartam de despoletar, empregam a palavra como se ela significasse desencadear, dar início a qualquer coisa, promover ou produzir uma certa acção. Destino cruel, porém, aquele que a semântica traça a estes ousados utilizadores de tão requisitado vocábulo. Se se tiver a humildade de consultar um dicionário de língua portuguesa, descobre-se que o termo significa exactamente o contrário daquilo que os seus utilizadores querem que signifique. Despoletar quer dizer tirar a espoleta a… (por exemplo, a uma granada); tornar impossível o disparo ou a explosão; impossibilitar a acção; tornar inactivo; travar.

Quando a epidemia do despoletar começou a alastrar e o exército dos despoletadores engrossou, pensei que se tratava apenas de uma aliança, aliás muito portuguesa, entre a prosápia mais inchada e a néscia fatuidade da ignorância. Enganei-me, porém, e, como em muitas outras coisas, a vida levou-me a mudar de opinião. Depois de muito meditar neste mistério, descobri que, no fundo, os portugueses apenas cometem um acto falhado, isto é, a boca foge-lhes para a verdade.

Quando alguém profere «vou despoletar uma acção», como se quisesse dizer «vou dar início a uma acção», no fundo está a afirmar o que verdadeiramente sente: «vou travar esta treta toda antes que o pessoal se lixe». O despoletar é a palavra mágica que resume o sentimento dos portugueses: o que queremos é não fazer nada, estar ali na retranca, travar, mas convém dar a ideia de que somos todos modernaços, inovadores, empreendedores cheios de iniciativa e de criatividade e, pimba, toca de despoletar.

Tenho pena do pobre Engenheiro Sócrates, do rapaz da Economia e da infeliz senhora da Educação (hoje escreveria, do pobre doutor Coelho, do azougado Pires da Economia e do Crato, o infeliz inimigo do eduquês). Como podem eles modernizar um povo que, quando quer dizer acção, utiliza um vocábulo que significa parar, que, quando quer exprimir a necessidade de dar início a qualquer coisa, emprega uma palavra que significa travar? Não há plano tecnológico que resista (hoje, diria: não há empreendedorismo que empreenda). Mas entre um povo de despoletadores, não serão os governantes os melhores e mais competentes a despoletar? Despoletemos, então! (Jornal Torrejano, 2006)

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