sábado, 19 de setembro de 2015

O futurismo italiano e o Estado Islâmico

Filippo Tommaso Marinetti - The Founding and Manifesto of Futurism

(9) Nós queremos glorificar a guerra, - a única higiene do mundo, - o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas Ideias que matam e o desprezo pela mulher.

(10) Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e todas as cobardias oportunistas e utilitárias. 

(Filippo Tommaso Marinetti, “Manifeste du Futurisme”. Le Figaro, 55e Année — 3e Série — No 51, Samedi 20 Février 1909)

E se o núcleo ideológico mais profundo do auto-designado Estado Islâmico (Daesh) fosse ocidental? Ou se ele resultasse de uma miscelânea de ideias provenientes daqui e dali, mas que os ocidentais com o seu poder de teorização, devido à longa tradição da filosofia e da ciência, tivessem cristalizado numa teoria marcada pelo desprezo pela vida, pela história, pelas mulheres, pela cultura e pela benevolência? O leitor poderá achar a ideia estapafúrdia, mas a verdade é que o futurismo italiano antecipou não só o fascismo mas todos os movimentos que têm no seu cerne o desprezo pelos seres humanos, e por tudo aquilo que foi produzido por eles e se tornou história.

Argumentar-se-á que os jovens futuristas italianos, com o exuberante Marinetti à cabeça, queriam romper um dado establishment cultural existente em Itália. Precisavam de provocar para poder afirmar-se. Isso é verdade, mas também não deixa de ser verdade a componente ideológica que os animava. Leiam-se os dois pontos citados, apenas exemplos do conteúdo do Manifesto do Futurismo, e descobrem-se os elementos centrais: a guerra, o militarismo, a destruição, o prazer pelas ideias que matam, o desprezo pelas mulheres, a demolição das instituições culturais (museus, bibliotecas). A única diferença que encontramos entre as ideias futuristas do início do século XX e as dos combatentes do Estado Islâmico é que os primeiros falam de patriotismo e estes de califado. Uma aculturação pura e simples a uma outra linguagem e a uma outra tradição.

Há mais pontos de contacto entre os jovens futuristas de há cem anos e os actuais guerrilheiros islâmicos. O fascínio pelo movimento, pela velocidade e pela tecnologia. Os jovens artistas italianos do futurismo estavam siderados pela velocidade do automóvel, os jovens guerrilheiros do Daesh estão seduzidos pela velocidade da luz, o ideal da comunicação através da internet. Diferentes os dispositivos, o fascínio é o mesmo. O que une futuristas italianos e fundamentalistas islâmicos é ainda o ideal de uma completa e total mobilização. Este conceito é central para perceber que a ideologia do Daesh é ainda, apesar das roupagens islâmicas, um produto do Ocidente, da modernidade ocidental. Esta só é compreensível pela ideia de mobilização. Mobilização de recursos, mobilização de ideias, mobilização de pessoas. A modernidade ocidental é o locus da mobilização contínua. E é isso que está presente no terror político, no terror que vai desde o terror de Robespierre, na Revolução Francesa, ao terror do Daesh, passando pelo terror de Hitler, Mussolini, Estaline ou, mais perto no tempo, no terror das ditaduras sul-americanas, cujo símbolo máximo foi o general Augusto Pinochet.

A questão que pode surgir é se a modernidade ocidental, com o seu ideal de mobilização contínua, é apenas o produto da cultura ocidental de origem cristã e greco-latina. Talvez seja, mas nela não deixa de haver, aqui e ali, um fascínio por outras culturas. O que é surpreendente nesta associação entre os futuristas das primeiras décadas do século XX italiano - e europeu - e os terroristas do Daesh não é apenas a identidade ideológica que os une. O texto do manifesto começa, antes do manifesto propriamente dito, com a descrição do cenário emocional exaltado que produziu a proclamação. Vale a pena traduzir o primeiro parágrafo: Velámos toda a noite – os meus amigos e eu – sob as lâmpadas da mesquita com cúpulas de cobre, ornadas como as nossas almas, porque como elas tinham corações eléctricos. Mergulhados na nossa preguiça nativa, sobre tapetes persas, discutimos até aos limites extremos da lógica, enchendo o papel de escritos dementes. Toda esta referência a elementos do mundo muçulmano - feita, por certo, por motivações estéticas - parece a semente que, ao germinar, vai permitir que dois universos, aparentemente tão diferentes e afastados no tempo e no espaço, possam partilhar uma visão comum do mundo. Uma visão demente do mundo, acrescento.

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