segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O papel social da narrativa

Wassily Kandinsky - Division - Unity (1943)

O papel social da arte, contaminado pela divisão política, perdeu, desde há muito, o prestígio que nos séculos XIX e XX chegou a ter. Se, no entanto, voltarmos à antiguidade clássica, encontramos em Aristóteles - que está muito para além das querelas sociais e políticas do mundo nascido com a Revolução industrial - uma clara leitura da tragédia a partir da sua função social, a de purificar os sentimentos de terror e de piedade. Este retorno a Aristóteles permite-nos, escudados numa autoridade estranha aos nossos interesses e conflitos, voltar a interrogar o papel social da arte. Interesso-me aqui pelo papel do romance a partir do início da modernidade. Por que razão o romance (e as formas dele derivadas como o cinema) alcançou uma importância que nunca antes tivera?

O romance surge como uma resposta à fragmentação crescente que se instala a partir do Renascimento. Uma paulatina pluralização de perspectivas filosóficas, a multiplicação de igrejas cristãs, a fragmentação da ciência em incontáveis campos de investigação, a diferenciação de ideologias e projectos políticos, a proliferação de perspectivas éticas ou, mesmo, o fraccionamento das propostas estéticas, tudo isso, obedecendo a princípios que se diferenciam, opõem e combatem, mergulha o homem numa incapacidade de constituir uma visão global que lhe permite compreender a realidade a partir de uma unidade principial, que estruturaria todo o campo da experiência possível.

O romance surge como uma nostalgia dessa unidade perdida. Ao constituir um mundo próprio da obra, cada romance introduz um princípio de unidade que articula tudo o que nele se passa. A narrativa romanesca parece ser, desse modo, a resposta dada à desarticulação da unidade presente na idealidade da pólis grega, na realidade efectiva do Império romano e, ainda, na vivência da cristandade medieval. Agora que não há um princípio que unifique a vida social, o romancista, através do expediente do narrador, reconstrói essa unidade de forma simbólica em cada romance que escreve. Aquilo que era fruto de uma principialidade metafísica e metapolítica é agora a obra de um indivíduo que, através da narração, articula e dá sentido a um heteróclito da experiência que, por si mesmo, deixou de fazer sentido. O papel social da narrativa romanesca é, num mundo em contínua fragmentação, o de manter viva na imaginação do leitor a possibilidade de um sentido unificado das experiências possíveis. A questão que se coloca, como corolário, é, porém, outra: quando o próprio romance se deixa contaminar pela fragmentação será ainda um romance?

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