quinta-feira, 31 de março de 2016

Uma estranha assimetria

Joan Abelló i Prat - Praia de Copacabana, Brasil (1986)

A minha crónica em A Barca.

A actual crise brasileira veio tornar manifesta uma assimetria existente nas democracias. Essa assimetria não tem a ver com ricos e pobres. Está relacionada com o impacto da conduta moral sobre a vida política. A atitude pública perante condutas imorais (a corrupção) é muito mais permissiva com a direita do que com a esquerda. Exige-se à esquerda um comportamento absolutamente imaculado, como se os políticos de esquerda fossem candidatos à santidade e à glória dos altares e não homens comuns, marcados pela venalidade que atinge a generalidade dos seres humanos. Por outro lado, essa mesma opinião é muito condescendente com a corrupção praticada à direita, como se esta estivesse dispensada, no exercício do poder, de ser moralmente virtuosa.

Pode-se argumentar, sem faltar à verdade, que essa pressão, sobre a esquerda, para a santidade e a irrepreensibilidade moral – e o concomitante alívio da direita perante condutas iguais ou mesmo muito mais graves – se deve à dominação que, hoje em dia, a direita exerce na opinião pública através do controlo dos órgãos de comunicação social, da blogosfera, das redes sociais. Na verdade, um dos grandes triunfos da direita nas últimas décadas foi o completo controlo da comunicação social e a imposição de uma interpretação da realidade que favorece essa mesma direita. A partir daqui, exerce uma pressão inaudita sobre a moralidade da esquerda, enquanto descura ou absolve comportamentos muito mais graves provenientes da própria direita.

Tudo isto é verdade, mas a esquerda também está a ser vítima de si e da ilusão que durante décadas propagou. Sempre gostou de se apresentar como possuindo uma superioridade moral, como se a corrupção e as condutas eticamente reprováveis fossem monopólio dos políticos de direita, subjugados aos interesses privados. Sempre gostou de fazer crer que, com ela no poder, a corrupção, a parcialidade e o nepotismo desapareceriam da face da terra. Sempre gostou de representar os seus militantes como heróis na luta contra a opressão e santos laicos na relação com a res publica. Esta representação hiperbólica da virtude das pessoas de esquerda é agora utilizada pela direita para cobrar, com juros astronómicos, os comportamentos venais dos políticos de esquerda. É injusta esta assimetria de tratamento? É, mas a esquerda, ao julgar-se uma excepção e o depósito da virtude moral, pôs-se a jeito.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Meditações Taoistas (25)

Salvador Dali - Las Tres Edades: la vejez, la adolescencia, la infancia (1940)

Ao nascer, o homem é doce e frágil;
Ao morrer, é duro e rígido.

Lao Tse, Tao Te King, LXXVI

Chego agora ao silêncio, aos dias resplandecentes que não pedem palavras, ao tempo em que dispenso todos os alfabetos que aprendi. Um longo caminho foi, por mim, inscrito no mapa, um trabalho minucioso de cartografia. Rios e montanhas, os lagos e as planícies, um labor sobre o mármore da vida, sobre os vidros estilhaçados das casas onde vivi, batidas por uma luz de silício, uma luz deslumbrante e mortal. Escrevo no limbo de todas as minhas ambições, no desejo de extinguir o fogo inextinguível das palavras, o terror precoce com que se apoderaram do meu corpo e, lentamente, o roubaram ao império da inocência, ao grande paraíso do desconhecimento, à noite onde todas as ciências dormiam no velamento da consciência.

Para trás, os dias em que o coração endureceu nas encruzilhadas, nas grandes travessias do deserto, o sol abrasador, a poeira arenosa da tarde, a flora acanhada e sem préstimo. Para trás, as grandes ilusões que alumiam as noites indormidas, o trabalho sóbrio sobre a dança branca da insónia, o rancor do coração perante a máquina estrídula, que retira o  mundo da imobilidade eterna e lhe alimenta, mecânica e frívola, a ânsia do movimento. Para trás, as tardes de ócio à beira-mar, o restolho das ondas sobre as areias, o rebotalho da vida numa ânsia de água e sol e corpos desnudados para a congeminação do desejo. Para trás, a vida calcinada nas labaredas do outono, nos grandes fogos do inverno, nas gárgulas de onde escorre fel e vinagre. Para trás, o meu corpo endurecido nos teus braços macios, na fertilidade ociosa do teu ventre, no algodão dos teus dedos em desvario.

Chego à terra sonâmbula da infância, à rasura da memória, para caminhar livre nas campinas do esquecimento. O sangue pulsa livremente no centro inominável da língua e rega um jardim de onde as palavras, ervas daninhas na seara do silêncio, se apagaram lentamente. Ecoam, agora, no fundo do poço, daquele poço onde, um dia, vi a minha imagem presa na fragilidade da água, na subtil fluidez do tempo que corre para desaguar no oceano trémulo de onde parti, numa caravela presa à inclemência dos céus, para desenhar um mapa celeste, a cartografia de um geógrafo preso ao sonho breve das constelações, ao desenho furtivo de uma ordem com a qual regi, vara de ferro na mão, o império a que, curvado e cândido, submeti os passos, os meus passos na terra virgem dos amores fervorosos e desordenados de cada dia.

terça-feira, 29 de março de 2016

A vertigem pelo absoluto

Tal-Coat - Dans le jaune (1970)

O que leva um jovem com uma vida normal, segundo os padrões hedonistas em vigor no mundo ocidental, a radicalizar-se e semear o terror e a morte? Esta pergunta voltou ao meu espírito ao ler isto sobre os irmãos Abdeslam, envolvidos nos ataques terroristas de Paris. Eram pessoas que gostavam de se divertir, de dançar, de futebol, de estar com amigos, de mulheres. Como é que daqui se dá um passo para o terror? A liturgia comum diz-nos, influenciada por uma sociologice sempre disponível, que isso se deve a causas sociais e económicas, ao desespero de estar desintegrado (o que não parece ser o caso). Estas causas podem explicar um certo espírito de revolta, mas não explicam o passo para o terror.

Olhemos para os anos sessenta e setenta do século passado. Uma onde de terrorismo atingiu uma parte da Europa. Os grupos terroristas não eram compostos nem por imigrantes nem por gente das classes mais pobres. Esses grupos (Brigadas Vermelhas, Fracção do Exército Vermelho - Grupo Baader-Meinhof) nasceram na universidade, numa universidade ainda claramente elitista. Como os actuais têm uma motivação religiosa, os antigos terroristas tinham uma motivação ideológica. O que há de comum entres estes dois fenómenos? Pelo menos uma coisa, a causa que leva alguém a radicalizar-se e a destruir em si o respeito pelos outros. Essa causa pode ser denominada como a vertigem pelo absoluto.

Esta vertigem pelo absoluto manifesta-se, geralmente, de forma benigna. Leva as pessoas a uma entrega total a uma causa, a abraçar uma vida alternativa, a buscar, na solidão e no abandono da vida mundana, esse absoluto. Pode também levar ao inferno das substâncias psicotrópicas, um sucedâneo do absoluto que se encontra em cada esquina. Nem sempre, porém, este desejo de absoluto - este cansaço com a relatividade da vida, com os seus pequenos prazeres e os seus deveres mais ou menos absurdos - encontra uma via socialmente útil para se manifestar ou se contenta com a destruição pessoal no mundo das drogas. 

O desejo do absoluto encontra então no radicalismo político e/ou religioso o lugar para se realizar e realizar-se de forma absoluta e sem mediações. Que entrega mais absoluta pode haver do que o exercício do terror? O terrorismo tal como está a acontecer actualmente ou aconteceu nos anos sessenta e setenta é a manifestação de uma atracção vertiginosa pelo absoluto. Dito de outra maneira, quando o desejo de absoluto é recalcado por não encontrar, seja qual for o motivo, as condições para se manifestar pacificamente, acaba por explodir literalmente em ondas de terror. O terror não é outra coisa senão a expressão de um desejo de absoluto numa consciência relativa, que não encontrou nem a sabedoria nem o caminho para se abrir a esse absoluto. Em linguagem religiosa podemos dizer que o terrorismo é sempre o encontro falhado com Deus.

segunda-feira, 28 de março de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 18. Cavalo

Júlio Pomar - Cavalos

18. Cavalo

Trémulo e trágico,
o cavalo ergue-se
sobre a escuridão:
um desejo de vento,
uma onda exaltada,
o fogo lapidado
no vidro do mundo.


[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

domingo, 27 de março de 2016

The Astounding Eyes of Rita

Se dissesse que tinha comprado este CD devido ao título, mentiria. A música de Anouar Brahem é uma das que gosto há bastante tempo. A verdade, porém, é que aquela capa e aquele título, mesmo que não conhecesse o músico e o seu percurso, levar-me-iam a ouvir o disco, movido talvez pelo adjectivo astounding, por aquilo que se pensa nele, e pela conexão estabelecida entre o cenário da capa e esse adjectivo.

Olho para a fotografia e vejo a melancolia íntima de uma mulher. Ela olha para fora de si mas é um olhar que fica preso ao interior do compartimento onde se encontra. O mundo da vida, o mundo público onde se desenrola a existência prática, sofreu uma epochê, isto é, foi posto entre parêntesis, foi suspenso. Aquela mulher, só com muita relutância lhe chamaria Rita, está fechada no segredo do seu espírito e é de lá que ela olha.

Como do olhar desta mulher se chega aos olhos astounding de Rita? O que pensamos nós no adjectivo astounding? Pensamos múltiplas coisas. Por exemplo, o estar aturdida, o estar abismada, o estar aterrada, o estar espantada, mas ainda a natureza fantástica, no sentido de excepcional, desse olhar. Os olhos fantásticos de Rita revelam o seu estado de excepção, mas este provém do aturdimento, do terror, do abismo, de tudo isso que provoca espanto.

É aqui que se cruzam os olhos de Rita e aquela mulher que povoa o cenário que encapa o CD. Os olhos fantásticos de Rita são-no, de forma adjectiva, porque o seu olhar provém do espírito, e este é abismo e fonte de aturdimento e de terror. Mais poderoso que o mundo exterior, o espírito é causa de espanto. Os olhos de Rita são astounding, mas o espírito que os move é, verdadeiramente e simultaneamente, substantivo e verbo, é efectivamente astound, se o verbo, to astound, pudesse ser substantivado. A melancolia que vemos no olhar da mulher da foto é o indício da distância que vai do adjectivo ao verbo/substantivo, que vai do olhar ao espírito. A melancolia é sempre o sintoma de uma cisão, de uma separação. Entre os fantásticos olhos de Rita e o abismo que é o espírito há uma distância irreparável.

Será que a música, o universal sem conceito, no dizer de Nietzsche, dirá melhor tudo isto que a palavra fundada em conceitos universais? O melhor será mesmo ouvir um excerto e depois comprar o CD. Bom domingo de Páscoa. (averomundo, 2010)


sábado, 26 de março de 2016

Em defesa dos exames

Juan Botas - School (1989)

O texto abaixo é a minha participação, a convite do meu caro colega José Tomé, na controvérsia sobre as primeiras medidas, do actual governo, no âmbito da educação. Argumento a favor dos exames agora abolidos. O texto foi publicado na última edição do jornal O Riachense.

Deixo de lado o facto reprovável de introduzir alterações às regras de avaliação com o ano lectivo a decorrer e concentro-me no fim dos exames dos 4.º e 6.º anos do ensino básico. Argumento em defesa da necessidade desses exames. Por que razão considero esses exames um bem para os nossos alunos?

Em primeiro lugar, porque os exames têm o condão de formar uma comunidade de destino entre alunos, professores e pais. Essa comunidade visa melhorar as aprendizagens dos alunos para obtenção de melhores resultados.

Em segundo lugar, porque implicam que alunos e professores aprofundem as aprendizagens, as consolidem e as tornem mais consistentes.

Em terceiro lugar, se as provas forem bem concebidas, implicam alterações das práticas lectivas tornando-as mais eficientes, inovadoras e adaptadas ao que a sociedade espera dos alunos.

Em quarto lugar, porque os exames são uma forma de prestação social de contas por parte de escolas, professores e famílias, permitindo avaliar se o investimento em educação está a ser bem aproveitado.

Em quinto lugar, porque preparam os alunos, desde cedo, para enfrentar obstáculos e a tirar prazer de os superar.

Em sexto lugar, porque os exames têm virtualidades que permitem fazer deles um importante meio de promoção de igualdade entre alunos provenientes de meios culturais diferenciados.

Estas seis razões são demasiado importantes para que em nome de hipotéticas más práticas docentes (reduzir o ensino à preparação para exame) ou imaginários traumas psicológicos (a tensão a que os alunos se submetem) sejam erradicados do sistema. Uma péssima opção a do governo e da actual maioria.

sexta-feira, 25 de março de 2016

A deslegitimação da violência

Matthias Grünewald - Christ on the Cross, detail from the 
Central Crucifixion Panel of the Isenheim Altarpiece (daqui)

Sexta-feira de Paixão. Retorno a Grünewald, neste dia, para rememorar um símbolo decisivo do nosso modo de compreender o mundo e da nossa civilização. Dos múltiplos significados da morte de Cristo retenho apenas um. Com a crucificação, a violência do homem sobre o homem tornou-se ilegítima. Na economia do cristianismo, a morte do seu fundador é a morte que concentrou em si todas as mortas e todas as violências. Foi a última morte legítima. A partir dela, todas as mortes e todos os actos de violência se tornaram ilegítimos. Mas os cristãos não têm sido, também eles, violentos? As Igrejas que o tomam como princípio originário não praticaram e não praticam, também elas, a violência? Sim, praticaram, praticam e, como são organizações humanas, praticarão. Só que essa violência, essa inclinação homicida, é contrária à lei que o Cristo trouxe e que se consubstancia no amor ao próximo. A morte de Cristo representa a abolição de todo e qualquer sacrifício humano. Não da sua abolição efectiva, mas da sua deslegitimação. Os homens são seres violentos. É essa a sua natureza. Essa violência, porém, já não pode manifestar-se como um bem, seja qual for o princípio racional ou não que a pretenda justificar. Ela é apenas uma faceta do mal. A morte de Cristo na cruz é o preço pago pela imoralização da violência, de qualquer violência, do homem sobre o seu irmão. Nada justifica Caim.

quinta-feira, 24 de março de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 17. Animal

Rufino Tamayo - Animales (1941)

17. Animal

Animal sem nome,
o grito que de ti sai
cintila na sombra,
no pálido segredo
que o oceano cobre.

Animal sem voz,
escreve na água,
com letra de fogo,
o extasiado desejo.
Em ti resplandece.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

quarta-feira, 23 de março de 2016

Hora crepuscular

George Grosz - Crepúsculo (1922)

Talvez estejamos em pleno crepúsculo. Estamos metidos em problemas que não sabemos resolver, como o das pessoas que acham sensato fazer-se explodir para matar inocentes e ter propaganda para a sua causa, além das virgens regulamentares no paraíso. Temos pouca vontade de trazer gente nova ao mundo. Deixamos que as nossas sociedades, enquanto os políticos discutem décimas do PIB, se vão tornando cada vez mais desiguais e com menos motivos para as pessoas se sentirem como fazendo parte de uma comunidade de destino. Desprezamos os fundamentos da cultura que nos trouxe até aqui. O diagnóstico não parece muito animador. Perante nós, nesta hora crepuscular, perfilam-se duas possibilidades. Continuar o processo em que estamos a ser arrastados há décadas, fingir que nada se passa e que tudo acabará por se resolver. Outra possibilidade é reagir. Também aqui se abrem duas possibilidades. Reagir em pânico e escolher o pior do remédios ou reagir a partir de uma reinterpretação dos fundamentos da nossa cultura e dos valores centrais dela, dos valores que preservam a liberdade dos indivíduos e a solidariedade entre eles, isto é, dos valores que permitem o dinamismo e a coesão das sociedades civilizadas e nas quais vale a pena viver. Esta hora crepuscular vai obrigar-nos a escolher, mesmo que finjamos não ter nada para escolher.

terça-feira, 22 de março de 2016

Sobre os acontecimentos de Bruxelas

Tintoretto - Caim e Abel (1550 - 53)

Sobre os acontecimentos de hoje em Bruxelas. Há uma coisa que, para muitos ocidentais, é difícil de compreender. A História – isto é, a História política da humanidade – não é um passeio no Jardim do Éden. Se a imagem da paraíso serve, neste caso, para alguma coisa é para lembrar que os homens foram expulsos do paraíso e que a porta deste foi fechada para que lá não voltássemos. Nós vivemos, para continuar com a imagética bíblica, na terra onde Caim matou Abel. E a História não é outra coisa senão a repetição infinita do assassinato de Abel. Esta é a realidade do mundo em que vivemos. Não é de hoje nem de ontem. Aquilo que se passou em Bruxelas não foi outra coisa.

É inaceitável torcer a realidade e ver na pulsão assassina que matou em Bruxelas uma espécie de mão vingadora das malevolências que os ocidentais perpetram pelo mundo fora. Não foi um acto de quem busca a justiça. Foi um crime. Os ocidentais são inocentes? Não, não são. Nisso, porém, são iguais a todos os outros, coisa que muitos ocidentais, vá lá saber-se porquê, acham que não, que o mal está sempre e apenas do nosso lado. Por vontade de poder, interesse económico, ideologia ou crença religiosa, os ocidentais têm matado, tal como todos os outros. Os crimes praticados por ocidentais, porém, não são um álibi, nem uma justificação ou uma legitimação dos crimes de hoje. Isso seria supor que haveria uma parte da humanidade pura e imaculada e outra, a nossa, absolutamente viciosa. Também os crimes praticados anteriormente por outros não são nem álibi, nem justificação ou uma legitimação para os nossos. A verdade é que pertencemos todos à mesma espécie, partilhamos o mesmo ADN, e cada um de nós é, potencialmente, um Abel e um Caim.

Portanto, um crime é um crime. Não há crimes bons e outros maus. São todos uma expressão do mal. E a História – a História política da humanidade – não é outra coisa senão a manifestação desse mal, a manifestação da pulsão homicida que nos habita e que, a mais das vezes, se sobrepõe e aniquila a inclinação para o amor, para a amizade e para o entendimento. Uma das coisas que a nossa época ainda iluminista, na sua recusa de entendimento dos textos fundadores da nossa cultura, não entende é que, no grande palco da História Universal, não há inocentes. O livro do Génesis diz-nos isso através do mito da expulsão do paraíso. Mas o preconceito racionalista não é capaz de escutar os antigos mitos. Ésquilo e Sófocles também ensinam isso. Mas quem quer escutar os velhos trágicos gregos? E, agora, o que vai acontecer? Não se sabe já? Vai acontecer o que sempre tem acontecido, o crime desencadeia novos crimes. A História, essa deusa vindicativa, não acabou, como alguns pensaram. Está bem viva e, como sempre, sedenta de sangue, o seu alimento preferido. 

segunda-feira, 21 de março de 2016

O Calvário e a Cruz

James Ensor - Calvary

Entrámos na semana que conduz ao Domingo de Páscoa. Com a crescente secularização das nossas sociedades, os acontecimentos que levam ao drama do Calvário tornaram-se um assunto privado. Foram reduzidos à pura crença religiosa. No entanto, deveríamos sempre perguntar por que razão, na nossa civilização e durante tanto tempo, tiveram um impacto geral na vida dos homens. Encontrar-se-ão explicações para todo o gosto. Há uma, todavia, que pode ajudar-nos a perceber esse impacto. Quem é aquele que faz o caminho do Calvário e é pendurado na cruz? Na verdade, de uma maneira ou de outra, James Ensor, o autor do quadro acima, explica-nos uma razão fundamental ao colocar sobre a cabeça do crucificado do meio o seu próprio nome. O Calvário e a Cruz são a imagem da nossa própria existência e dizem respeito a cada um. É por isso que tiveram o impacto que se conhece na nossa civilização.

domingo, 20 de março de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 16

Francesco Hayez - Bagnante (1832)

16. Cantavas na parda

Cantavas na parda
claridade da aurora.
E tudo ardia
na luz
da madrugada,
no cristal ateado
pelo fogo da manhã.

sábado, 19 de março de 2016

Realidade deformada

Matthias Grunewald - The Entombment from Isenheim Altarpiece (1512-16)

Foi devido a W. G. Sebald que olhei com atenção para a obra de Matthias Grunewald. Na sua primeira obra publicada, Do Natural- um poema elementar, Sebald propõe uma deambulação poética (ou talvez uma investigação policial) em forma de tríptico, na qual Grunewald constitui a primeira parte. O meu interesse por este pintor da transição dos séculos XV para o XVI deve-se ao facto de ele, juntamente com Brüghel, o Velho, El Greco, Goya e até Van Gogh, ser apontado como um dos precursores do Expressionismo.

Como se sabe, o Expressionismo é uma reacção ao Naturalismo e ao Impressionismo, à pretensa natureza descrita - ou positiva - destes. O Expressionismo propõe uma visão marcadamente subjectiva da realidade, uma glorificação da vida interior que se expressa na arte. O fascínio que fui adquirindo pela pintura expressionista não é menor do que aquele que sempre senti pela pintura impressionista, aquela que o Expressionismo pretendia superar, se é que esta palavra tão ao gosto da dialéctica hegeliana, faz sentido em arte.

A expressão dos sentimentos do artista faz-se através de processos de deformação da realidade. E é isto que me interessa. A deformação da realidade era uma forma de expressão da subjectividade, que se diferenciava das objectividades da descrição naturalista ou da impressão dos impressionistas, propondo uma visão quase incomensurável com o real. A questão, porém, é que hoje em dia a realidade apresenta-se objectivamente deformada. A deformação deixou de ser uma expressão de uma subjectividade dilacerada em busca de uma expressão. A deformação já não pode ser lida como a intromissão da subjectividade na descrição do mundo. Ela tornou-se na descrição objectiva da realidade, de uma realidade cuja natureza é a deformação, como se Impressionismo e Expressionismo se tivessem casado no espírito do mundo.

sexta-feira, 18 de março de 2016

A doença das democracias

Giorgio de Chirico - O Grande Jogo (1971)

Segundo The Guardian, a imprensa afecta ao regime chinês, embalada pela caminhada triunfante de Donald Trump para a nomeação, pelos republicanos, como candidato à presidência dos EUA, acha que a democracia é uma anedota. Não vale a pena contrapor que a tirania nunca nos livrou de anedotas. Veja-se, a título de exemplo de terceira ordem, a Coreia do Norte. Também não vale a pena argumentar que uma democracia pode ver surgir no poder um idiota, mas que, ao contrário das tiranias, tem mecanismos para que o idiota seja arredado do poder pela vontade popular. 

Mais importante, porém, do que cantar a superioridade moral das democracias sobre as ditaduras é olhar a para a saúde das nossas democracias. A possível nomeação de Trump não é um bom sintoma, pelo contrário. O que se está a passar no Brasil (onde não há inocentes, do governo à oposição, passando pelo poder judicial e as inomináveis elites sociais) é outro sintoma da doença que corrói o regime democrático. Por fim, na Europa, com a forma como o poder efectivo é exercido dentro da União Europeia, a doença apresenta-se em estado avançado. A democracia representativa não é uma anedota, mas está doente - mais doente do que se pensa - e, em muitos lugares onde vigora, pode morrer. Uma anedota faz-nos rir. Uma doença, a nós que amamos a coisa doente, deve-nos preocupar e dar que pensar. 

quinta-feira, 17 de março de 2016

No princípio

Miriam Schapiro - Time (1989-90)

No princípio foi o tempo. Depois, deixar vestígios no tempo, marcas cadenciadas pelos dias e as horas, mesmo se o jogo é o da dissimulação, é um compromisso com o mal. Com o mal? Sim, o estranho matrimónio da escrita com o tempo é uma forma de aceitação deste. E este, o tempo, é apenas, no dizer de Cioran, o pseudónimo que o mal tomou para si. Não há inocência quando as palavras se seguem umas às outras, pontuando as horas, os minutos e os segundos. Nesse momento, já Adão foi seduzido por Eva, e o labirinto que nos arrasta para morte começou a ser trilhado. No princípio foi o tempo, e será assim até que este se acabe. (2007/02/18)

quarta-feira, 16 de março de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 15. Ave esquiva

Totoya Hokkei - Bird

15. Ave esquiva

Morre pássaro indolente,
ave esquiva de asas tecidas
pela mão que escreve.

Morre, morre, aí mesmo
onde a noiva perdida
abriu o segredo sobre o altar.

Morre no teu voo nupcial,
ao som das folhas do plátano
entregues à sombra do Inverno.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

terça-feira, 15 de março de 2016

Natalidades baixas e adolescências dependentes


Falemos em sintomas da nossa actual - e, aparentemente, cada vez mais inevitável - decadência. Não, não vou falar sobre economia ou sobre as instituições políticas. Estas são um reflexo de um mal bem mais profundo. Dois textos do Público ajudam a balizar a questão. Em primeiro lugar, a nossa demografia. Em 2014, Portugal teve a mais baixa taxa de fertilidade da União Europeia. Registou também a maior queda de fertilidade entre 2011 e 2014 (ver aqui). Não vale a pena derramar muito sobre o assunto. Sem novas gerações, não há renovação, nem iniciativa, nem espírito criativo. Somos uma sociedade envelhecida e, como tal, completamente na defensiva. O velho do Restelo tornou-se o nosso arquétipo. 

Este dado é fundamental, mas há ainda um outro sintoma tão ou mais preocupante. Margarida Gaspar de Matos, em entrevista ao Público, diz o essencial. E o essencial é a falta de autonomia dos adolescentes portugueses. Há um excesso de ligação à família. Esta ligação tem, geralmente, a marca da dependência. Num tempo em que a iniciativa e a criatividade são essenciais para as sociedades poderem subsistir no mundo globalizado, as nossas novas gerações são educadas para a dependência, para a protecção, para a incapacidade de assumir riscos e tomar o seu destino nas próprias mãos. Margarida Gaspar de Matos diz que esta falta de autonomia é assustadora. É. 

O que nos dizem estes dois sintomas conjugados? Dizem-nos que, pura e simplesmente, estamos a desistir, que não queremos enfrentar a realidade. Não nos reproduzimos e não queremos assumir completamente a responsabilidade de gerir autonomamente a nossa existência. Podemos falar da cultura da inveja, podemos falar do novo-riquismo saloio de certos grupos sociais, podemos perorar sobre uma cultura paupérrima, mas isso ainda é secundário. O essencial, o buraco escuro onde nos estamos a afundar, está na natalidade e na educação super-protectora das novas gerações. A continuar assim, quanto tempo ainda nos resta com um arremedo de independência?

segunda-feira, 14 de março de 2016

Raiva acumulada

Oswaldo Guayasamín - El Rostro del Hombre. La Edad de la Ira (1963-65)

Ao ler a entrevista a J. Rentes de Carvalho lembrei-me do espírito que percorre as caixas de comentário on-line. Ao referir, a personagem central do seu novo romance, O Meças, o escritor sublinha: Não conheço ninguém assim, mas sim muitas pessoas que têm uma boa parte dessa violência dentro de si. Tenho-as visto explodir por questões minúsculas e pergunto-me como é que um sujeito estoura daquela maneira se o motivo é tão diminuto. A resposta é: tem muita raiva acumulada desde que nasceu (ler aqui a entrevista). É esta raiva cumulada que encontro nas caixas de comentário sobre artigos de opinião ou notícias de incidência política.

Não se trata daquela sarcasmo barato que os agentes das diversas confrarias políticas produzem sobre tudo o que contraria a visão do mundo dos que lhe pagam para fazer aquele tipo de trabalho sujo. Falo de outra coisa. Falo da ira genuína das pessoas, de um desejo quase homicida de lançar um castigo divino sobre tudo aquilo com que não concordam, que contraria a sua opinião. Não é que eu ache que as caixas de comentários possam ser um lugar de troca de ideias civilizado. O anonimato dá coragem ao mesmo tempo que diminui a capacidade de reflexão, caso ela exista. O que não me deixa de surpreender é a violência da manifestação dessa muita raiva acumulada desde que se nasceu.

A raiva é a expressão de uma impotência, de uma incapacidade para lidar com e resolver as situações causadoras de perturbação. É uma raiva feita de frustração e de incapacidade de lidar com ela. Essa raiva que se manifesta nas caixas de comentário é uma forma de dar vazão a uma energia. Em muitos portugueses, talvez por falta de oportunidade social ou de conhecimento, a energia que deveria alimentar a iniciativa e a criação é transformada em raiva, que se vai acumulando ao longo do tempo. Depois explode, nos casos mais agudos, no homicídio, na violência doméstica. Genericamente, satisfaz-se, com mais mansidão, no comentário anónimo e violento a um artigo ou uma notícia. As caixas de comentários, com toda a raiva acumulada, são o retrato da falta de iniciativa e de capacidade para correr riscos.

domingo, 13 de março de 2016

Assunção Cristas

Clara Azevedo (Público) - Assunção Cristas (2010)

A eleição de Assunção Cristas para a liderança do CDS-PP veio consagrar aquilo que há muito me parecia óbvio. Com a saída de Paulo Portas, qualquer outra liderança estaria condenada a fazer minguar o partido. O talento histriónico do agora ex-líder, devido à inteligência com que representava o seu papel (e Portas foi sempre um actor nato), dificilmente encontraria substituto à altura nos baronetes do partido, os quais iriam ser confrontados com o original. Cristas, porém, não vai ter necessidade de emular o seu antecessor. É uma solução que pertence já a outra história. Não terá o talento nem a cultura política de Portas, mas possui uma imagem pessoal mais consistente e mais confiável para o eleitor comum. Parece transbordar de energia e aparenta ser resiliente. Tem ainda uma outra vantagem. É mulher. A experiência do Bloco de Esquerda veio mostrar que uma liderança política feminina pode ter sucesso.  Mais, que pode ser mesmo uma vantagem. O CDS-PP percebeu muito bem a revolução de costumes iniciada à esquerda e Assunção Cristas entra por esse portal aberto pelo o outro lado do espectro político. Pode ser que me engane, mas a nova líder do CDS-PP, se souber refrear alguns tiques de casta (real ou ideológica), tem capacidade - num tempo em que, com a excepção do eleitorado do PCP, os eleitorados são cada vez mais fluidos - de penetrar no universo eleitoral não apenas do PSD, como do PS e do BE. A esquerda cometerá um erro colossal se a menosprezar,

sábado, 12 de março de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 14. Lugar indeciso

Ortega Muñoz - Lanzarote. Tierras (1969)

14. Lugar indeciso

Vens luminosa
e tudo se apaga
no lugar indeciso
onde a terra
se abre
para que nela
em silêncio
possa descansar.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

sexta-feira, 11 de março de 2016

Haréns e Cavalos de Tróia

Pablo Picasso - El harén (1906)

A senhora Hermine Erdogan, mulher do actual Presidente da Turquia, achou por bem louvar a instituição do harém. Afirma que era um centro educativo que preparava as mulheres para a vida. E não contente acha mesmo que poderia ser uma inspiração para a actualidade. Uma inspiração, note-se. A cada um as suas opiniões e eu prezo a liberdade de expressão. Não estou sequer interessado em saber que tipo de pedagogia era usada nem, apesar de poder ser estimulante, quero saber o currículo que suportava tal projecto educativo, para falar ao modo do eduquês nacional, que promovia a preparação para a vida das afortunadas senhoras e meninas que faziam parte da instituição. Mesmo sobre esta não vou derramar moralidades. 

O meu problema situa-se num outro plano. Estas declarações surgem no âmbito mais alargado de um louvor insistente, por parte de Erdogan e agora da mulher, das instituições do Império Otamano e das tradições otomanas. Como conjugar esta revivescência da glória e das velhas tradições com o pedido insistente da entrada da Turquia na União Europeia? 

A questão não está apenas na diferença de hábitos, cultura e religião. Está no simples facto de que o Império Otamano foi, durante a sua existência, uma das ameaças principais para a Europa e o modo de vida europeu fundado no cristianismo e na cultura greco-latina. Só uma cegueira irremediável nos pode fazer pensar que os projectos de conquista e de dominação deixaram de ter sentido e que todo o planeta se converteu à liturgia dos mercados, substituiu o desejo de conquista e de dominação pela troca de caramelos e pacotes de arroz num mercado livre e concorrencial. 

Enfraquecidos pelas derrotas e pelo atraso tecnológico, muitos projectos de dominação e de conquista continuam a subsistir mais ou menos subterraneamente, estando apenas à espera do momento e da força para se manifestarem. Veja-se o exemplo alemão. O seu projecto de dominação falhou duas vezes, devido a derrotas militares. Parecia desaparecido. Dada a unificação, é o que se tem visto. Hoje domina a Europa através do Cavalo de Tróia do tratado orçamental. Não foi preciso disparar um tiro. Uma Turquia saudosa da grandeza otomana, em ruptura contínua com os valores de Kemal Atatürk, dentro da Europa não seria outra coisa senão um Cavalo de Tróia.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Os sinais de Marcelo


Destes primeiros momentos do mandato presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), vale a pena sublinhar, pelo seu significado político, três sinais. Em primeiro lugar, aquele que mostra uma atenção precisa aos problemas colocados pelo mundo actual. A participação numa cerimónia inter-religiosa, na mesquita de Lisboa, onde estiveram presentes dezoito confissões, ultrapassa em muito a preocupação religiosa, de cariz ecuménico, e baliza aquela que deve ser a posição de Portugal num mundo de grande complexidade cultural. A presença do novo PR, nesse encontro, significa a rejeição tanto de um modelo monocultural (onde uma cultura se impõe a todas as outras) como de um modelo multicultural (onde a tolerância entre culturas diversas assenta na sua ignorância e indiferença mútuas). O gesto de MRS indica um caminho de diálogo intercultural, de negociação republicana de formas de estar e de viver, sob a mesma lei e a mesma bandeira. Uma opção clara por uma dimensão política interculturalista.

Em segundo lugar, a crítica clara, no seu discurso de tomada de posse, a uma visão liberal da sociedade. Essa crítica assenta na relação que estabeleceu entre a mão invisível (uma metáfora, de cariz liberal, que designa a ideia de que o bem comum resultaria, sem qualquer planeamento, do facto de cada um seguir o seu interesse egoísta) e a situação precária em que vive parte significativa dos portugueses. Nesta crítica há não apenas o afastamento em relação a Cavaco Silva como uma clara demarcação daquilo que foi o guião ideológico do governo de Passos Coelho e Paulo Portas. Não, não nos precipitemos. MRS não se tornou um homem de esquerda. Foi apenas fiel às suas raízes políticas: a social-democracia tal como entendida pelo núcleo original do PPD e a doutrina social da Igreja. Tanto uma como outra nunca se reconheceram na retórica liberal nascida com Adam Smith.

Em terceiro lugar, a escolha do Vaticano como o lugar da primeira visita enquanto PR. Este é o mais forte, politicamente, dos três sinais. MRS não vai em peregrinação a Roma. Também não vai, como PR de um país de maioria católica, prestar vassalagem ao sucessor de Pedro. Vai como político. Certamente que essa visita serve para reafirmar o fundamento último da cultura dos portugueses. Contudo o significado político desta opção vai muito para além disso. A escolha desta visita sendo o Papa quem é está longe de ser inocente. É preciso não esquecer que Francisco é o Papa que arrasou a política económica liberal em vigor no mundo. Que ousou, em nome da doutrina social da Igreja, dizer que essa política mata e que fere o mandamento divino não matarás! Um Papa que incomoda a direita que – mesmo quando bate com a mão no peito – não se reconhece, a não ser por hipocrisia, no estilo, nas palavras e nas opções de Francisco. Mais uma vez, uma demarcação clara das opções governativas da anterior maioria. Estes sinais indicam uma nova orientação na Presidência. Com MRS Portugal parece estar à procura de um novo equilíbrio e de uma renovação do pacto social, para que nele todos se sintam incluídos. Para uns será pouco. Para outros será excessivo. Mas se MRS conseguir o que pretende não será nada mau.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Fronteiras da linguagem

Francisco de Goya y Lucientes - Murió la verdade

Uma versão em língua portuguesa, da autoria de Herberto Helder, de um poema Zen tem o curioso efeito de nos arrastar não apenas para fora do espírito do Zen - um espírito tão avesso ao discurso e à estruturação proposicional da referência à realidade - como para fora da poesia, saltando perigosamente para o campo da argumentação filosófica. O poema na versão de HH diz assim: A verdade é como um tigre de muitos cornos, / ou então como uma vaca a que faltasse o rabo. Este texto estabelece uma relação analógica, através do expediente da comparação, entre a verdade e um tigre de muitos cornos ou uma vaca a que faltasse o rabo.

Cornos, ainda por cima dados em multiplicidade, num tigre é manifestamente a marca de um excesso. Por outro lado, a ausência de rabo numa vaca é o sinal de um defeito, de uma falta como no-lo ensina o vocábulo latino defectu. Portanto, o que se pensa a partir desta versão é a inadequação da verdade à realidade, pois ela revela-se ora como excesso, ora como defeito, mas nunca no ajustamento devido. Torna-se manifesto assim o carácter monstruoso da verdade. Como se constata, rapidamente o poema perde a sua natureza ficcional e é arrastado para o campo argumentativo, como se ele contivesse uma tese acerca da verdade, que as parte irão argumentar pró e contra.

Se em vez das comparações a versão tivesse optado pela metaforização, estaríamos mais protegidos da queda no abismo da argumentação filosófica? Vejamos uma possibilidade: verdade, tigre de muitos cornos, / vaca a que falta o rabo. O efeito poético talvez fosse mais intenso (uma presunção minha de lesa majestade), mas o problema não se deixaria de colocar, pois a hermenêutica das metáforas, a sua explicação, acabaria por conduzir a uma frase declarativa do género a verdade é um monstro, uma disformidade, o que poderia ser argumentado pelo excesso, pelo defeito, pela ausência de justa medida.

Não conheço a versão japonesa do poema, e mesmo que a conhecesse seria incapaz de a perceber. O que se revela aqui, porém, é a linguagem como um lugar de fronteira entre dois países cuja tendência natural é afastarem-se. Por um lado, a linguagem declarativa com a sua referência à realidade (onde há múltiplos registos dessa referenciação, desde a fala quotidiana até à ciência e a filosofia); por outro, o território anti-apofântico do Zen e da generalidade das tradições espirituais, onde se inscreve também a mística cristã. No primeiro caso, a linguagem inclina-se para a intensificação do seu uso que acaba por manifestar uma bavardage (tagarelice) infinita (um exemplo dessa tagarelice é o crescimento exponencial de teses académicas). No segundo, a linguagem declina para morrer - ou reviver - enquanto silêncio. A versão de Herberto Helder coloca-se no lado da fronteira voltado para a pátria do discurso. E se quisermos uma versão que, apesar da linguagem, se volte para o mundo silêncio, como poderá ser? Talvez assim: tigre de muitos cornos / vaca a que falta o rabo.

terça-feira, 8 de março de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 13. Erva

Francis Bacon - Two Figures in the Grass (1950-53)

13. Erva

Se a erva desliza
em teus olhos,
uma ave
de papel
ergue-se
para a  luz
salgada
onde estremece
a voz do mar.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

segunda-feira, 7 de março de 2016

O lugar da aventura

Giorgio de Chirico - O retorno de Ulisses (1968)

Este quadro de Giorgio Chirico lembrou-me um romance de Xavier de Maistre, escrito em 1794, Voyage autour de ma chambre (Viagem à volta do meu quarto). O romance possui um fundo autobiográfico. De Maistre, enquanto jovem oficial, esteve em prisão domiciliária durante seis semanas. A obra, no entanto, constitui uma paródia à narrativa das grandes viagens. É também esta ironia relativa aos trabalhos de retorno de Ulisses à pátria que encontramos no quadro de Chirico, onde essa viagem pelo mar alteroso aparece representada dentro de casa. Para além da ironia, há contudo uma meditação, uma meditação melancólica, em ambas as obras, sobre a natureza da viagem. Por norma, vê-se a viagem como uma aventura. Isso, porém, oculta aquilo que a viagem faz: torna doméstico aquilo que é estranho. Viajar não é mais do que um exercício de domesticação, de oclusão no lar, do espaço desconhecido. Não há aventura que não se passe em casa.

domingo, 6 de março de 2016

Olhares excêntricos

Max Ernst - The Eye of Silence (1933-34)

O falhanço total do marxismo [...] e o dramático desmembramento da União Soviética são apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental, a principal corrente da modernidade. Longe de ser alternativa ao marxismo e a ideologia reinante do fim da história, o liberalismo será a peça seguinte do dominó que cairá. [Takeshi Umehara]

Nós, ocidentais, deixamo-nos envolver demasiado nas nossas querelas particulares como se fossem a única coisa existente à face da terra. Ainda hoje somos vítimas dessa cisão que constitui a modernidade: liberalismo e socialismo. O que compreendemos quando lemos as palavras de Umehara, ou quando o mundo islâmico rejeita os nossos valores? O que compreendemos neste momento em que a crise do euro conjugada com a crise dos refugiados parece estar a iniciar aquilo que poderá ser a derrocada entrevista pelo pensador japonês? Continuamos, cada vez mais perplexos, agarrados à necessidade de fazer triunfar ou o nosso pequeno liberalismo ou o nosso irrequieto socialismo. A divisão entre liberalismo e marxismo ocultou uma outra, muito mais funda e estrutural: tradição e modernidade. A nós, ocidentais, a palavra tradição repugna-nos, mas aos outros? Aos outros, parece que não. Enquanto tudo parece desagregar-se, continuamos como aqueles jogadores de xadrez que, enquanto a guerra os envolvia, nem davam por ela, de tão concentrados no jogo. A cada um as suas pedras, brancas para uns, pretas para outros. Mesmo que, de fora, gritem que tudo cai, nem damos por isso. É preciso que sobre as nossas antigas tradições se erga o estandarte da modernidade, seja o do liberalismo, seja o do socialismo. Mesmo que isso signifique o fim do que somos. 

sábado, 5 de março de 2016

Aprendizagens

William Turner - Norham Castle, amanecer (1835-40)

Qual a coisa mais importante que aprendi durante mais de quarenta anos de atenta observação da vida política? O mais importante foi a inexistência de alvoradas políticas. Em tempos, uma intensa metafórica ligada à aurora, à alvorada ou ao amanhecer de um novo dia seduziu muitas consciências. Também a minha. A verdade, porém, é que essas metáforas são construídas sobre uma ilusão relativa à natureza humana. São projectadas como uma promessa de um homem novo. Sempre que se fizeram experiências para produzir o homem novo o que resultou foi, invariavelmente, o mesmo velho macaco. A aprendizagem de que nenhuma manhã, por pletórica que seja, produzirá um homem novo - aprendizagem que fiz há décadas, mas que reputo como a mais importante - é um regresso ao velho cepticismo judaico-cristão. Neste, o homem é um ser decaído, expulso do paraíso, para o qual não pode voltar a não ser noutra vida. Ter levado este cepticismo a sério - ter sabido interpretar o mito e não o ter desconstruído como se ele fosse uma narrativa histórica - ter-nos-ia poupado muitas desilusões e outras tantas desgraças. Em resumo, o que de mais importante aprendi ao observar a vida política foi que não devemos menosprezar os nossos mitos fundadores. São mais eficazes que as teorias que a nossa razão cria.

sexta-feira, 4 de março de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 12. Pastoral

Andrés Cortés Aguilar - Pastores

12. Pastoral

Pássaros brancos
de asas fluviais,
vergados ao peso
da tarde
inclinados para
a sombra
onde dormem
os rebanhos
nascidos do silêncio.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

quinta-feira, 3 de março de 2016

Um acto de compensação

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Tornou-se, nos últimos tempos, alvo de chacota pública o afã com que o Presidente da República (PR) distribui condecorações. Uma condecoração é sempre o reconhecimento público de um mérito. Não vou discutir a virtude daqueles que foram contemplados pela enxurrada de medalhas que brotou em Belém. Mais interessante que isso é compreender a mensagem subliminar que o actual PR – ou o seu inconsciente – nos está a enviar.

A generosidade com que reconhece, através da condecoração, inúmeros membros da sociedade portuguesa é o sintoma do desejo que nele habita de, ao sair da presidência, ser reconhecido e amado pelos portugueses. A situação política de Cavaco Silva é desastrosa. O político mais vitorioso, que mais poder teve para conformar os destinos do país, sai de Belém execrado à esquerda, olhado com condescendência à direita, completamente isolado.

Poderíamos dizer que a realidade política e a malevolência humana destrataram Cavaco Silva. Faltaríamos, porém, à verdade. Cavaco Silva está a colher o que semeou em toda a sua longa e vitoriosa vida política. A semente foi a falsa máscara que criou. Explorando a animosidade dos portugueses perante as elites políticas, sempre fez questão de sublinhar que ele não era um político, que não se confundia com os outros, que a sua palavra era o voz da ciência e do saber e não a dos interesses em conflito. Esta mentira funciona enquanto há muito dinheiro para distribuir.

Cavaco sente que o país deseja que ele se vá rapidamente. Esta sensação de abandono é intensificada por uma humilhação política impensável em final de carreira. Não apenas teve de dar poder a um governo que ele não queria e a que se opôs para além do razoável, como esse governo é apoiado por aqueles que ele declarou como párias da democracia portuguesa. O que resta a um PR que acaba derrotado em tudo o que é essencial? Distribuir condecorações a eito, como se assim dissesse aos portugueses que ele – ele acima de todos os outros – merece o que agora não lhe dão. Um acto de compensação, uma súplica de reconhecimento.

quarta-feira, 2 de março de 2016

Eutanásia e religião

Pieter Brueghel, o Velho - O triunfo  da Morte (1562)

No actual debate sobre a eutanásia, um dos argumentos a favor da despenalização diz-nos que a proibição legal da morte medicamente assistida – uma proibição que o viola o estatuto moderno de autonomia da pessoa – só pode ser argumentada por quem tenha uma crença religiosa e a queira impor a terceiros. O argumento, se olhado da perspectiva dos direitos singulares dos indivíduos, parece-me válido. Tenho o direito de dispor da minha vida como entender. Não sou obrigado a seguir a perspectiva daqueles que, por convicção religiosa, crêem que a sua vida foi uma dádiva divina e que não lhes compete tomar decisões sobre a sua duração.

Podemos pensar o problema a partir de outro ponto de vista que não o do conflito entre crentes e não crentes. A questão da existência de Deus é indecidível. Ela pertence ao domínio da fé. Há outra, porém, que deve ser meditada e que não diz respeito à fé ou à sua ausência. Essa questão é a seguinte: tomada do ponto de vista da adaptação e da evolução da espécie humana, qual a função da crença religiosa e do conjunto de imperativos que ela, de forma diversificada, tem imposto aos membros da espécie? Parece-me, embora não tenha nunca estudado o assunto, que a religião tem constituído um dos factores centrais de adaptação da espécie e, consequentemente, do sucesso com que o tem feito.

Ao escrever isto, ocorreu-me uma singular experiência que uma consciência religiosa teria condenado e evitado. Ela tem duas personagens. Em lugar de destaque, Ilya Ivanovich Ivanov, um biólogo russo que trabalhou na inseminação artificial e na hibridação interespecífica. Em lugar sombrio mas não menos merecedor de atenção, Joseph Estaline, o antigo seminarista que se converteu ao marxismo e que foi o mais terrível líder da URSS. O objectivo desta sociedade, que faliu devido ao insucesso do experimento, era a da criação de um homem-macaco a partir da hibridação interespecífica feita por inseminação artificial. O racionalismo científico-tecnológico (a possibilidade de, a partir do conhecimento, criar um novo produto) casou-se com o racionalismo político (o desejo de um sub-humano, pouco dado ao pensamento, para efeitos militares e económicos) para um objectivo que o bom senso considera inaceitável. Este caso ilustra um pensamento que atravessa Os Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, e que se pode resumir no célebre (embora não literal) se Deus não existe, então tudo é permitido. Revela-nos, pelo menos, uma das funções da religião no processo evolutivo e adaptativo da espécie: evitar que tudo seja possível.

O caso das experiência de hibridação de Ilya Ivanovich Ivanov não é analogável ao problema colocado pela eutanásia. No entanto, ele faz descer uma outra luz sobre a utilidade daquilo que poderíamos chamar – num óptica iluminista – o preconceito religioso. Ao dizer-nos que, por motivo de fé, nem tudo é permitido, talvez o que esteja em jogo não seja tanto a crença em Deus ou num além, mas os limites que a própria espécie não deve ultrapassar para a sua própria segurança e capacidade de continuar a sobreviver. Isto não significa que defenda a proibição da eutanásia. Significa apenas que através da religião é ainda a própria espécie, cuja finalidade última, como espécie, é adaptar-se e sobreviver,  que fala e que essa voz, mesmo num caso de direitos individuais, deve ser escutada e haver um esforço de decifração do que diz. Para quê? Para proibir a eutanásia? Não, para compreender o que está em jogo nesse processo e, mais que tudo, evitar que a liberalização da eutanásia abra as portas que levam muito para lá do combate à distanásia. O papel do preconceito religioso, neste tipo de casos, é menos o de impor uma crença e mais o de obrigar à reflexão crítica sobre as motivações presentes neste tipo de projectos.

terça-feira, 1 de março de 2016

A irrupção de um mundo

Paul Gauguin - La recogida del heno (1888)

Olhar este quadro de Gauguin, tendo em consideração o ano da sua execução, abre no espectador uma vertigem. Não me refiro aqui à experiência estética em si mesma, mas à percepção do tempo e da história. Um olhar demasiado centrado no que se manifesta acabará por ficar preso à descrição etnográfica da vida nos campos em finais do século XIX. Se transportarmos, porém, a nossa experiência descobrimos, de imediato, que, na história que se desenrola no quadro, falta a principal personagem de uma cena rural de hoje. Falta a máquina. Tudo no quadro de Gauguin se inscreve num mundo que já tinha terminado. A luminosidade da pintura oculta a sombra que cresce sobre esse mundo, mundo tradicional movido apenas pelo desejo e a necessidade dos homens e o labor dos animais. Podemos imaginar, ao determo-nos nas figuras que parecem descansar da faina, que não é a necessidade de poupar a energia física que as tolhe mas o estranho ruído da maquinaria que, vindo do futuro, cai sobre elas. Olhamos o quadro e uma vertigem nasce em nós, a vertigem gerada na irrupção de um mundo no seio vazio de um outro.