domingo, 8 de maio de 2016

Mercados e niilismo

Giovanni Doménico Tiépolo - La expulsión de los mercaderes del templo (1760)

Dois trabalhos no Público on-line tornam, mais uma vez, patente a natureza niilista das chamadas sociedades de mercado e da ideologia do radicalismo liberal, aquilo a que se dá o nome de neoliberalismo. Num artigo de opinião, Teresa de Sousa questiona, a propósito dos refugiados e das negociatas entre europeus e destes com o senhor Erdogan (cada vez mais impante e menos contido na sua natureza) se os valores se tornaram mercadoria. Numa entrevista, Henriques Gaspar, o juiz presidente do Supremo Tribunal de Justiça, diz não saber o que é isso da justiça estar ao serviço da competitividade e vais mais longe: “Não gosto de utopias neoliberais na justiça”.

Estas duas tomadas de posição acabam por ter o mesmo alvo, a ideia de que tudo se pode reduzir a uma mercadoria (o velho fetichismo da mercadoria) e que todas as relações entre os seres humanos são, em última análise, relações de mercado. A subjugação da política, da ética, da justiça e da religião à dinâmica da economia de mercado é um dos elementos centrais do niilismo – da desvalorização de todos os valores –, onde as nossas sociedades, desde que caíram nas mãos do terceiro estado, não deixam de se afundar. Vale a pena olhar para esse efeito e perceber como ele funciona.

O mercado, com a sua lei da oferta e da procura, tornou claro que nenhuma mercadoria tem um valor absoluto e objectivo. Perceber um determinado bem como mercadoria é compreendê-lo na inexorável relatividade do seu valor. O valor desse bem não depende dele, mas da competição que existe em torno da sua aquisição. Quando o que está em questão são coisas (naturais ou produzidas) o mercado é um bom expediente para resolver a questão prática do preço. O grande problema é quando não se trata de coisas. A questão do velho Marx com o liberalismo clássico, por exemplo, está centrada em torno do trabalho humano. Será que é moralmente digno aceitar que o trabalho dos homens é uma mercadoria entre outras? O problema, hoje em dia, é muito mais complexo do que no tempo de Marx. Não é apenas o trabalho que é compreendido como mercadoria. Tudo se tornou uma mercadoria.

Quando tudo se torna uma mercadoria, quando tudo se interpreta, mesmo que sub-repticiamente, à luz da visão que ordena os mercados na determinação dos preços, a política, a ética, a religião e a justiça perdem todo o seu valor intrínseco. Não valem em si e por si mesmas, mas apenas se houver disputa por elas enquanto bens a usufruir. Numa extraordinária inversão (que, curiosamente, estaria de acordo com a teoria marxiana das relações entre as infra-estruturas económicas e as super-estruturas ideológicas), a utopia neoliberal, como lhe chama o juiz Henriques Gaspar, liberta o mercado da sua submissão à ética, à política e ao direito, tornando-o, ao mercado com a sua lei de relativização de todo os bens, como a fonte última de todos os valores e instituições. A vitória do terceiro estado significa assim a aniquilação potencial de todos os valores. Seja o que for - amizade, justiça, compaixão, instituições jurídico-políticas - só vale a partir da demanda que o mercado faz delas. Por si, não valem rigorosamente nada. E como não valem nada, podem ser objecto de todas as manipulações. O mais puro niilismo.

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