quinta-feira, 14 de julho de 2016

Livro do Êxodo 17. A grande estiagem de Fevereiro

Caspar David Friedrich - Town at Moonrise (1817)

Apagaram-se os lilases quando à porta bateram e a noite se cerrou, tão cerrada e tão negra, ocultando regatos, areias, pedras brancas e lisas, os primeiros passos, ainda precários e sonâmbulos, então os deram. Pelos corredores, os animais degolados passavam enlouquecidos e nas ruas, sempre ventosas e inquietas, projécteis de aço a incendiar silêncios no coração. Os tumultos feriam o peito, o medo o assediava, e por isso tomaram uma pedra e a puseram debaixo dele e logo da boca um canto vagaroso cresceu, inundou de archotes os pátios, ateou bandeiras pelas portas que bateram, empurradas pelas giestas, do silêncio se desprendiam. Na mecânica celeste, nas órbitas, os planetas as desenhavam, tudo se tornara movediço, rota incerta, aterrada fúria nos campos onde o caos silente se estende.

Os dedos despediram-se das mãos e partiram tocando searas, fendendo musgos, abrindo
sulcos de saliva e sangue, sanguíneo sangue era o desses dias, no veludo espesso e invernoso, a vida frágil cobre. Passavam carros nocturnos, expeliam relâmpagos, a velha luz caída dos céus, e deixavam troar os motores acordando a noite, fazendo gritar das crianças a garganta inquieta, a voz, ao brotar na noite, as empalidecia. Um zumbido misturava-se no ar da cidade, era Fevereiro, e as chuvas ainda não haviam descido sobre os telhados de zinco. O betão arfava ressequido e as janelas estremeciam, se mãos cintilantes, ao coscorar na pressa aziaga da dor, não lhes davam por alimento água. Pura, incolor, sem mácula de sabor ou som, água.

Preso ao mastro, um animal olhava a fúria e despedia-se da vida cantando as regras, a tarde lhas dera. Das mãos, os dedos tinha perdido e das flores esquecera os lilases, como se tivessem secado e ressequidos entrassem na noite, hermeticamente fechados, lembrando os animais degolados, na boca dos que cantavam corriam, a gritar inocência, um manto de vergonha lhes cabia. Um estampido soou. Escondidos, abriam-se ao som pela porta do silêncio. Depois, levantavam os pés, em movimento lento, e invadiam, ao erguer-se a lua, as imensa pradarias da saudade. Iam de coração aberto e coberto de pústulas. Os olhos ressequidos esperavam a torrente das lágrimas que, ao chegar, eram recolhidas em pequenos cálices e bebidas até ao fim, um fim final perdido no azedume, a vida sempre o traz, entre pomares de alegria e cumes sombreados de esperança.

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