sábado, 27 de agosto de 2016

Diário de um banhista - XI

Lisa Milroy - Beach (1993)

Recordo que O Diário de um banhista foi escrito em 2007, para evitar alguns ataques cardíacos com certas referências do texto.

No outro dia fiquei chocado. Então, não é que os inspectores da ASAE apreenderam 400, ou terão sido 4000?, Bolas-de-Berlim fresquinhas, daquelas mesmo boas para comer em pleno tempo de banhos. Esta preocupação com a saúde pública parece-me uma manobra das capitais escandinavas para aniquilaram as vantagens competitivas de Portugal. Não percebem que tudo isto é uma forma de indústria caseira, diria mesmo que é o nosso verdadeiro artesanato. Depois da alheira de Mirandela, dos múltiplos salpicões, dos chouriços e dos chourições, agora até Bola-de-Berlim está a ser alvo das arbitrariedades dos inspectores a soldo do governo, que por sua vez contemporiza com as pretensões daquela malta esbranquiçada, educada, ecológica e liofilizada, que habita as regiões do norte deste continente que viu nascer o glorioso banhista que eu sou.

Note-se que não quero aqui denegrir a imagem do nosso primeiro-ministro e acusá-lo de ser agente infiltrado das potências nórdicas adeptas da liofilização geral. Não, saliento apenas que o seu espírito pós-moderno, habitado pela epopeia da sociedade do conhecimento e pelo sonho – verdadeiro desígnio pátrio – do choque tecnológico, não o habilita a compreender o desvelo com que nós, portugueses ignaros, amamos os riscos provenientes da manufactura caseira de alimentos. Que interessam as salmonelas, se as bolas são uma arte caseira, feita com as mãos sujas, mas patrióticas, que fazem um bolo plenamente nacional, apesar daquela funesta referência a Berlim? São capazes de me explicar?

É um facto que sou um banhista. Mais, sou o verdadeiro banhista, aquele onde a essência de banhista coincide com a sua própria existência. Mas isso não quer dizer que não seja patriota e não ame aquilo que todos nós portugueses – deixem-me falar no plural – amamos. Solidário com o Portugal autêntico, levemente desgostado com a deriva tecnicizante do Engenheiro, ao levantar-me hoje, eu que sou por natureza indeciso, tomei uma decisão: nada de praia, vou realizar a minha vocação de banhista para outro lado.

E lá fui em demanda do Santo Graal. Entrava e saía, à socapa, de cafés e pastelarias até que chego ao Templo e entro no Santo dos Santos. Era ali que terminava a dorida busca do cálice com o sangue de Cristo. Miro a vitrina, salivo, sinto o coração a palpitar. Uma Bola-de-Berlim, digo em voz de comando. A rapariga não se amedronta com o meu vociferar, sorri, indulgente, quase cativante, e retruque: com ou sem creme? Sorrio também. Sinto-me em casa, no meu Portugal, nada naquela rapariga simples do povo me faz lembrar o Engenheiro Sócrates. Talvez o buço, se o Engenheiro o deixasse crescer, mas não nos desviemos. Com creme, minha amiga – respondo a fazer-me já íntimo –, com creme, que eu sou banhista. Ela não deixou de sorrir e serviu-me uma enorme bola a abarrotar de creme, esplendidamente banhada em óleo – quantas bolas, ó doces bolas, não terá aquele óleo fritado antes desta que irá morrer nas minhas vísceras e contribuir assim para a untuosidade geral do meu querido Portugal.

Ser banhista é mais do que tomar banho, ser banhista é comer Bolas-de-Berlim com creme, ser banhista é ser português sem os desvarios tecnológicos dos engenheiros e dos inspectores que nos engenham e inspectam a cada momento. A ASAE, o governo, o próprio Engenheiro, que fiquem sabendo: resistiremos, não passarão. Que vão para a Finlândia que os deu à luz (como vêem, sou um banhista educado), nós continuaremos com as nossas bolas no sítio que é o delas. (averomundo, 2007/08/11)

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