Ernest Biéler - L'Été et les moissons (1918)
Por vezes corria um sopro, o
ar ao de leve tocava as folhas da macieira e enxertava vida nas pedras, brancas
de tanto uso, e dissolvia-se no horizonte. Se o perscrutavam, apenas ouviam o
zunido nos telhados, a música rangia, misteriosa música a do vento sobre as casas.
As pessoas passavam e olhavam, como se ao olhar ouvissem, mas tudo voltava à
apressada calma com que os dias enchiam as horas vagarosas da infância, os olhos,
nunca cansados, perdidos em aventuras. Chegavam naqueles livros de papel reles,
trocados na azáfama com que os leitores preenchiam as tardes, as de verão,
digo, naquela terra morosa e arrastada de uma vida ainda no começo, sem saber
que a sombra da morte regia os dias e as noites. Era uma terra cheia de
sapateiros e latoeiros e tanoeiros e barbeiros, um exército de carpinteiros,
todos eles prontos para o grande combate, dia a dia ele chegava, insinuava-se
aqui e ali, segundo uma lógica, estranha lógica era, nascida das necessidades dos
que por ali viviam, se a morte não os levava.
Ouvi quando disseste: também
farão uma arca de madeira. Mas eles, levados pelo sopro, partiram, foram colher
flores nos campos, depois afastaram-se cobertos de nuvens, presos a névoas e
neblinas, um grande nevoeiro, traçando ruas de azevinho, casas remendadas de
giestas. Afastaram-se uivando, esquecidos da arca de madeira, esquecidos de ti,
não sabendo o nome, pois lho roubaram ao pôr os pés no chão, ao inscreverem no musgo rasgos de solidão. Soletravam
crepúsculos, agitando mãos, se carros passavam deixando-os na poeira, gritando pelas
tarde de paixão, quando a cruz se elevava e corria um sopro, o ar ao de leve
tocava as folhas da macieira e enxertava vida nas pedras brancas, então as
guardavam nos bolsos das calças, uma ainda resta, presa no fundo negro, tão
negro e tão vazio, onde habita o coração.
Assim se afastavam da infância,
levados pelo sopro, pelo desejo que desata os nós que prendem o corpo, tão
submisso à gravidade, à terra que o viu brotar, entre ânsias e o choro que
rasga o mundo e o alerta para que mais alguém, nunca convidado, vai entrar no
grande palco para representar, na arte que for a sua, o papel que lhe cabe. E a
infância tornava-se uma terra estranha onde morriam, um a um, sapateiros,
latoeiros, tanoeiros, barbeiros e carpinteiros, deixando a memória vazia,
apenas preenchidas pelo cheiro das primeiras chuvas, das tangerinas colhidas
pelas mãos e as flores de erva-canária que nascia, e era uma lembrança quase
amarela, quase amarga no fundo da boca, no limiar dos olhos. A arca de madeira
repousava esquecida ao fundo da igreja, de onde os anjos debandaram, levados,
também, eles pelo sopro do desejo, da ânsia por um corpo de carne e sangue, por
uma noite de sexo num quarto esconso, numa viela perdida na solidão.
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