sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Traduções da Bíblia e atraso de Portugal

Anónimo - Papa Clemente XI

Na Apresentação, que Frederico Lourenço antepõe ao primeiro volume da sua tradução da Bíblia do grego, é chamada a atenção para uma situação que, ainda hoje, nos ajuda a compreender uma clausura cultural que encerra Portugal num ainda não ultrapassado paroquialismo. O tradutor sublinha que o século XVIII não foi um tempo muito propício para a leitura individual da Bíblia nos países católicos. Em 1713, o papa Clemente XI, na bula Unigenitus (§§ 79,80), estabeleceu como falsa a ideia de que todos os cristãos têm vantagem em ler a Bíblia e explicitou, ainda que o acesso à leitura da Bíblia não deve ser outorgado a qualquer pessoa.  De certa forma, a Bíblia, nos países católicos, entrou para o próprio Índex. Uma das consequências, em Portugal, desta posição papal resultou na interdição de publicar no nosso país, em pleno Século das Luzes, a primeira tradução portuguesa da Bíblia, por João Ferreira de Almeida, levada a cabo ainda no século XVII.

Esta pequena história, aliada à nossa localização periférica na Europa, diz-nos muito sobre a decadência cultural e o fechamento do país, os quais não deixam de se sentir ainda hoje, como, por exemplo, no desprezo com que a direita portuguesa tratou a questão dos quadros de Joan Miró ou, a dificuldade da esquerda, mas também da direita nacional, em valorizar o papel do indivíduo e da sua iniciativa.

A oposição da Igreja Católica à leitura individual da Bíblia tem de imediato duas consequências. Vai atrasar, até aos dias de hoje, três séculos passados, o processo de escolarização dos portugueses. Por muito que certos corifeus do partido da anti-escolarização continuem a indignar-se e a gritar contra a importância dada à educação, a verdade é que o pouco relevo da educação escolar em Portugal, nos últimos 300 anos – as excepções são a I República e o regime democrático pós-25 de Abril –, é uma das causas do nosso persistente atraso. Uma outra consequência não é menos devastadora. A leitura individual da Bíblia poderia ter sido, naqueles dias, um factor de desenvolvimento de uma consciência individual crítica, capaz de autonomia e, por isso mesmo, capaz de iniciativa. Capaz também de cortar com uma cultura de protecção de amigos e famílias (onde se incluem as políticas), quando não de quadrilha. A Igreja Católica mudou de posição, o Estado português começou a levar a sério a educação, mas o tipo da cultura herdada daqueles dias contínua a pesar sobre todos nós.

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